ISMAEL DE LIMA COUTINHO
O HOMEM E A OBRA
1.
O Homem
1.1.
Homenagens no centenário de nascimento
No dia 12 de maio deste ano [de
2000], o autor do afortunado compêndio Pontos de Gramática Histórica –
professor Ismael de Lima Coutinho – estaria comemorando o seu centenário de
nascimento. Lamentavelmente, não o temos mais entre nós, desde aquela trágica
manhã de 24 de julho de 1965, em que morreu em acidente com o carro que dirigia,
em São João da Boa Vista, estado de São Paulo.
Esse 12 de maio não poderia passar
despercebido a quantos tivemos o privilégio de conviver com essa extraordinária
figura humana, que se impunha naturalmente, sem esforço, à admiração de todos
nós, pelo saber, pela prudência, pela cordialidade – enfim, pelas virtudes que
identificam a nobreza espiritual de certas pessoas. A Academia Brasileira de
Filologia prestou-lhe merecida homenagem em sessão especial no dia 27 de maio,
quando o autor destas linhas falou sobre A Vida e a Obra do Prof. Ismael de
Lima Coutinho. No dia 4 de dezembro, o Instituto de Letras da Universidade
Federal Fluminense, por iniciativa do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, também homenageou o seu ex-titular de língua e literatura latina com
a Jornada Ismael Coutinho de Estudos Diacrônicos numa rica programação
que se estendeu das 9 às 17 horas, com quatro mesas-redondas. Além da
Jornada, deu-se à sala de conferências e eventos culturais do Instituto de
Letras o nome de Sala Ismael Coutinho, com a presença de dois dos sete
filhos do homenageado: o advogado e procurador do Estado, José Tavares Coutinho,
e o médico José Carlos Tavares Coutinho.
Confluência
está indissociavelmente ligada à
figura desse grande mestre através dos professores integrantes da Diretoria do
Instituto de Língua Portuguesa, da Revista, do Conselho Consultivo e de
muitos colaboradores, que se associam às homenagens a quem muito fez pela língua
portuguesa, pela romanística e pelos estudos clássicos.
1.2.
Meu mestre Ismael Coutinho
Conheci o professor Ismael de Lima
Coutinho, ou simplesmente Dr. Ismael, como lhe chamávamos, em 1942, quando fui
seu aluno de português no 4º ano ginasial [9º ano do ensino fundamental], no
Colégio Brasil, em Niterói, então capital do Estado do Rio de Janeiro. Segundo
os programas oficiais vigentes, o 4º ano era destinado ao ensino de gramática
histórica. Dr. Ismael adotou os seus Pontos, já em 2ª edição, 1941, e com
invejável senso didático, aliado à empatia que estabelecia com os alunos,
conseguiu tratar de toda a matéria do compêndio, com a ajuda paralela do latim,
ministrado, para felicidade da turma, pelo professor Horácio Pacheco, excelente
e inesquecível mestre.
No triênio 1943-44-45, continuei seu
aluno, de grego, no curso colegial clássico, que Dr. Ismael ministrou
religiosamente três vezes por semana, à tarde, apesar de sua intensa atividade
docente no ensino oficial e no particular, em Niterói e no então Distrito
Federal, além dos encargos como chefe de Gabinete da Prefeitura de Niterói. Para
ele, o magistério era um sacerdócio, a que se dedicava como um missionário. E o
professor, que forma alunos, foi-se tornando o mestre, que forma discípulos.
Com aquele guia, e atento a seus
conselhos, senti que poderia prosseguir seguro o caminho que já me traçara: ser
professor e cursar letras clássicas. Aumentou-me a motivação o ter conhecido,
por essa época, lá mesmo no Colégio Brasil, outro grande professor de latim e
grego, amigo íntimo do Dr. Ismael – Baltazar Xavier de Andrade e Silva –, de
gratíssima lembrança, que concluía quando eu iniciava, em 1946, o Curso de
Letras Clássicas na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.
Nunca mais me afastei desses dois
exemplos vivos de inteireza moral e dignidade profissional. Em 1949, ainda no
curso de Didática, recebi o maior galardão de minha carreira docente: o convite
do professor Ismael Coutinho para ser seu assistente de língua e literatura
latina na Faculdade Fluminense de Filosofia, de Niterói. De lá até sua morte,
sempre o acompanhei nas programações universitárias, consultei-o sempre e,
muitas vezes – quando me permitiam as atividades docentes em Niterói e no Rio –
ouvi suas arguições em concursos para catedrático ou livre-docente. Devo-lhes,
ainda, a entrada no Círculo dos Cipiões de letras e estudos humanísticos no Rio
de Janeiro: a Livraria Acadêmica, naquele tempo o endereço oficial da filologia.
O leitor há de relevar estas
considerações inevitavelmente em primeira pessoa, como a remoer memórias. É que
ao falar de Ismael Coutinho, antes de entrar nos dados concretos do
curriculum vitae, que sei obrigatórios num artigo como este, prefiro seguir
a fina sensibilidade de Aires da Mata Machado Filho e simplesmente entregar-me
“sem restrições nem ambages, ao suave prazer da admiração”.
Valia a pena transcrever o belo
artigo em que o eminente professor mineiro retrata com rara fidelidade o perfil
do nosso homenageado. Sofreando este desejo, transcrevo alguns trechos.
Ainda mais que o autor, em Ismael
de Lima Coutinho há de estimar-se o homem. Na sua presença, algo misterioso
prendia o interlocutor: talvez a voz que trazia o numeroso coração no metal da
inflexão matizada de quem só sabia falar bem dos outros; talvez o riso franco,
sem reticências nem malícia, senão a mesma alegria a transfundir bondade;
certamente a efusão de simpatia, capaz de influir nos mais arredios e nos menos
afins com a sua grande alma. Da evocação dessa lembrança nutre-se a saudade que
hoje toma conta de seus amigos, que afinal foram quantos de perto o conheceram.
Retidão – eis a outra palavra que
se lhe associa à personalidade.
....................................................................................................
Afinal, por que desvairada razão,
costumamos dizer todo o bem das pessoas conhecidas só depois da sua morte?
Louvor, nessas condições, é triste. Vem misturado com a dor da saudade sem
remédio.
De coração alegre e ânimo leve,
digamos, antes, essas verdades, tanta vez consoladoras de injustiças, a respeito
dos amigos ainda em condições de lhes sentir os efeitos na alma engrandecida.
Humano e justo será entregarmo-nos, sem restrições nem ambages, ao suave prazer
da admiração.
1.3.
Dados Biográficos
No manuscrito autógrafo “Documentos
apresentados ao Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para
provimento da Cátedra de Latim”, de 15 de janeiro de 1962, o professor Ismael
Coutinho apresenta um curriculum vitae sumaríssimo. Trata-se da
documentação exigida para aproveitamento no Serviço Público Federal, quando a
Faculdade Fluminense de Filosofia, instituição particular, foi agregada à
recém-criada Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1960) – hoje
Universidade Federal Fluminense, desde 1965 – e passou a denominar-se Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras.
Das indicações biográficas constam os
seguintes dados:
Nome: Ismael de Lima Coutinho
Filiação: José Coutinho de Carvalho
e Amélia Mascarenhas de Lima Coutinho.
Data de nascimento: 12 de maio de
1900.
Local de nascimento: Paraoquena,
município de Santo Antônio de Pádua, Estado do Rio (sic).
Quanto à formação escolar e
profissional:
Curso Secundário: exames parcelados
feitos no Liceu de Campos e no Ginásio Municipal de Santo Antônio de Pádua
(1918-1927).
Curso Superior: Faculdade Nacional
de Direito da Universidade do Brasil (ano de 1932) – Diploma registrado na
Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Saúde, sob o nº 9034,
Livro D-10, Folha 20.
Surpreende-nos que não haja
referência ao curso do Seminário de São José, de Niterói – o que, porém, não
escapou a D. Hélder Câmara, relator do parecer nº 400/53 do Conselho Nacional de
Educação, que diz in fine: “Sabe-se, no entanto, que Ismael Coutinho tem
curso completo de seminário e pode ensinar latim e literatura latina. Pode ser
aceito”.
Hoje, porém, o biógrafo de Ismael
Coutinho dispõe de rico material inédito, manuscrito, datiloscrito (como alguns
preferem), ou mesmo disperso em jornais e revistas escolares – material doado ao
Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense pela professora Maria
Teresa Coutinho Robert, filha, assistente, e ex-diretora do Instituto. O
precioso acervo está na maior parte arrolado pela professora Ivanise do Socorro
Ferreira Cartier, licenciada em português-francês, que em 1994, ainda monitora
de crítica textual da Dra. Deila Conceição Perez, entregou-se com desvelo a uma
primeira leitura e seleção dos textos. É um levantamento inicial a exigir
releitura mais detida e pesquisa paciente para uma divulgação feita sob
critérios críticos, agora que a crítica textual, introduzida nos cursos de
Letras da UFF pelo professor Maximiano de Carvalho e Silva, conta com
especialistas experientes e de alto nível. Só a pasta C. Discursos e
Palestras contém quarenta e cinco textos e exigirem datação, identificação
de referências históricas etc., importantes para a recomposição do momento
histórico em que foram produzidos.
O acervo permitirá a elaboração de um
memorial do professor Ismael Coutinho, nos moldes do documento que as
instituições de ensino superior em boa hora passaram a exigir em concursos
públicos.
Um dos documentos inéditos mais
importantes é o discurso lido no Instituto de Educação de Niterói, quando o
professor Ismael de Lima Coutinho foi homenageado com a inauguração de seu
retrato no salão nobre. É um comovido agradecimento, em que, homem
discretíssimo, sempre zeloso de sua intimidade, Ismael Coutinho pela primeira
vez, parece-me, descerrou o velário de seu passado
e, de coração aberto, fez um retrospecto de sua vida – uma confissão pública de
encantadora singeleza e sinceridade.
1.4.
Os três momentos de sua vida
Esse depoimento nos permite ver em
sua biografia três momentos fundamentais. O primeiro, em Paraoquena, o
arraialete em que nasceu e viveu até os dezessete anos. O segundo, no Seminário
São José, em Niterói, onde estudou até 1926. O terceiro, daí em diante quando,
egresso do seminário, dedicou-se à família, ao magistério e à vida pública.
Resumirei esse texto, com base na
versão datilografada, de doze páginas, revista pelo autor – versão que não
reproduz integralmente o manuscrito autógrafo. Aspearei sempre as transcrições:
1.4.1.
Infância e juventude em Paraoquena
Ainda criança, aos oito anos, Ismael
Coutinho, o segundo dos cinco irmãos, teve de trabalhar como “vendedor ambulante
de pão” para ajudar a família, em face de uma paralisia pertinaz que acometera
seu pai. A mãe, exemplo de mulher forte, católica, de inabaláveis convicções
religiosas, passou a coser para fora, para não lhes faltar o pão de cada dia.
Ismael Coutinho foi sempre “o seu companheiro fiel, o seu braço direito, nessas
horas de aflição”.
Aos nove anos, outra provação recaiu
sobre a família. Uma noite, foi acordado pelos gritos desesperados do pai, que,
ainda paralítico, não podia fugir do incêndio que lhe chamuscava o leito... “e,
mais um minuto, a grande tragédia estaria consumada.” O menino, com a ajuda dos
vizinhos que acorreram logo, conseguiu salvar o pai. A mãe e os irmãos
salvaram-se também, mas a família perdeu tudo. Por alguns anos, viveu a expensas
de amigos e parentes, e do que podia obter com o seu trabalho.
Porém, depois de cinco anos “de duros
padecimentos, em que a própria lucidez do espírito lhe fora arrebatada pela
terrível doença, que zombou da perícia e saber de não poucos especialistas” –
após cinco anos, o pai começou a melhorar. Ismael Coutinho, aí pelos treze anos,
foi trabalhar na casa comercial de que o pai se tornou sócio-gerente. Aos poucos
foi-se restabelecendo o patrimônio que o incêndio destruíra. Caixeiro da firma,
sua instrução não ia além “das quatro operações e do ditado, com algumas
irreverências ortográficas”.
Decidiu instruir-se mais, e adquiriu, “não sem custo, os livros indispensáveis
ao estudo rudimentar das ciências mais necessárias: gramática, aritmética e
história”. E assim fez sua educação básica, estudando à noite, “depois que
cessava toda a agitação na casa comercial”.
De compleição franzina, alto e muito
magro, as continuadas noites de vigília o deixavam cada vez mais abatido e com a
saúde a exigir cuidados especiais. O pai descobriu tudo e, para protegê-lo,
passou a desligar a luz de seu quarto. O jovem teve de restringir as horas de
leituras noturnas, limitando-se a estudar apenas gramática (“Era uma devorador
de gramáticas”), mesmo assim driblando a vigilância paterna com velas que
escondia debaixo do colchão e acendia para ler, quando o pai desligava a luz.
A vontade inabalável de estudar
venceu, afinal, a resistência do pai e do sócio, que lhe concederam algumas
horas fora do balcão, para frequentar um curso que o professor José Pinto de
Sousa fundara há pouco, ministrando as matérias do curso secundário, inclusive
latim. Esse professor “colendo mestre, cheio de bondade e de sabedoria”,
iniciou-o no latim e ainda melhor o orientou no bom estudo do português,
mostrando-lhe que “a língua não se aprende nas gramáticas, mas nos bons
autores”. Levou-o à leitura, “a princípio dos clássicos, depois dos outros”. De
tal maneira marcou sua formação, que Ismael Coutinho, já um autor consagrado,
diria publicamente: “A ele quero render, neste momento, o meu preito de
gratidão, porque fez de mim aquilo que eu queria ser – modesto professor da
língua nacional”.
De par com livros “profanos”, leu
também “livros religiosos, práticas, sermões, panegíricos” que lhe deixaram no
espírito “uma profunda impressão”. Embora a princípio buscasse nessas páginas
“exclusivamente a boa linguagem”, à leitura de Vieira, Bernardes, Frei Luís de
Sousa, Mont’Alverne, o seu coração “ia-se pouco a pouco penetrando das verdades
cristãs e dos exemplos heroicos da vida dos santos. “Dentro em breve tais
verdades e tais exemplos haveriam de levá-lo à decisão de seguir a vida
religiosa.
1.4.2.
O Seminário de São José
Pelos dezessete anos, embarcou para
Niterói, para ingressar no Seminário de São José.
É o segundo grande momento de sua
vida.
O Seminário de São José plasmou a
formação integral de Ismael Coutinho em “quase um decênio de reclusão”.
Lá, entre as augustas paredes do
Palácio da Soledade, tão cheias de recordações da minha juventude, longe do
bulício do mundo, vivendo só para Deus e para os meus estudos, passei os mais
agradáveis dias da minha vida. Lá retemperei os nervos, fortaleci o coração,
robusteci o cérebro, para os duros combates que tive de sustentar cá fora.
Orações, leituras, acurado estudo de
latim e grego... tudo isto com o privilégio de ter sido um dos filhos
espirituais e secretário particular de dom Agostinho Benassi, o admirável pastor
de almas, conhecido e amado em Niterói por sua piedade. A ele Ismael Coutinho se
refere como “um santo cujo nome deve acordar, no seio da família católica
fluminense, uma profunda saudade e ser sempre pronunciado com os joelhos em
terra”... “foi ele, este santo bispo, que não conhecia obstáculos à sua caridade
cristã, quem me abriu as portas do seu Seminário e que me revelou, na prática de
todas as virtudes, que a santidade ainda existe na terra”.
De trabalhos específicos de sua
formação sacerdotal só encontramos três. São dissertações sobre teses da
doutrina católica, tais como “phoenomena diabólica” (magnetismo,
espiritismo e hipnotismo); a análise conveniente do Actus Fidei e como
chegar à fé; e a infalibilidade do papa decorrente de sua autoridade como Sumo
Pontífice. Os três têm o julgamento “summa laus”, o conceito de
excelência.
No seminário não esmoreceu o velho
desejo de ser “professor da língua nacional” do jovem “devorador de gramáticas”,
assíduo leitor dos bons autores. Ao contrário, dispondo de condições
excepcionais para estudar, o seminarista intensificou suas leituras sobre a
língua portuguesa, como comprovam cadernos de anotações diversas, de Notas de
português e de Poemas e Artigos publicados, do tempo do Seminário São
José, 1922 e 1924. O último reúne – além de seis sonetos e três textos em prosa
(às vezes com o pseudônimo de João das Chagas) – reúne, dizíamos, quatro
pequenos artigos de crítica a afirmações de Cândido de Figueiredo em O que se
não deve dizer, publicados em O Município, jornal de Lavras (MG), em
1924. Esse jornal registra em 20/01/1924: “Há dias que nossa cidade tem o prazer
de hospedar o inteligente jovem Ismael Coutinho... o distinto moço vem cursando
com raro brilhantismo o Seminário de Niterói...”.
O “inteligente jovem” seminarista
costumava passar férias em Lavras, na casa da irmã mais velha, casada com um
engenheiro da Rede Sul-Mineira de Viação. Pouco antes de ordenar-se, com sérios
problemas de saúde e não se julgando “um daqueles pauci electi, a quem o
Divino Mestre confere virtudes especiais para o ministério santo”, Ismael
Coutinho decidiu deixar o seminário. Mesmo “egresso do santuário”, não lhe
faltou a mão protetora de dom Agostinho Benassi, que o recomendou por carta ao
diretor do Colégio Sílvio Leite, no Distrito Federal, e assegurou ao
ex-seminarista o primeiro emprego no magistério, em 1927-1928.
1.4.3.
Fora do Seminário
É o terceiro momento, o momento
definitivo, em que Ismael Coutinho realiza sua vida no plano familiar, no
magistério e nas funções públicas que exerceu. Em qualquer dessas feições, ele
exerceu seu apostolado com a formação que trouxe do seminário, e sempre íntegro,
quero dizer inteiro, o mesmo sempre, como chefe de família, como professor, como
homem público.
Casou-se em 22 de maio de 1929, em
Aparecida do Norte (SP), com dona Catarina Tavares de Lacerda, a partir daí
Catarina Tavares Coutinho, da família Tavares de Lacerda, proprietária da pensão
onde o jovem professor e acadêmico de direito se hospedava em Niterói. Desde
essa data, dona Mimi foi a companheira inseparável de trinta e seis anos de
dedicação e amor, cujos frutos são hoje, sete filhos, trinta e dois netos e
quarenta bisnetos. Estava ao seu lado naquela trágica manhã de 24 de julho de
1965. Conseguiu salvar-se e viveu oitenta e oito anos, até 30 de março de 1992,
quando morreu, em Niterói.
1.5.
Vocação para o magistério. Carreira docente
Embora fosse bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais, Ismael Coutinho nunca advogou. Sua vocação era o
magistério, e magistério não como “simples missão social”, e sim como “um
verdadeiro apostolado”. É uma afirmação constante tanto nos discursos de
paraninfo, quanto nos discursos de inauguração de grupos escolares como
Secretário de Educação.
Iniciou sua carreira docente – já
dissemos – no Distrito Federal, no Colégio Sílvio Leite, onde trabalhou dois
anos (1927-1928). Voltou a Santo Antônio de Pádua e lecionou português, latim e
filosofia no famoso colégio do professor Lavaquial Biosca. Em 1928 conquistou em
concurso público uma cadeira de português no Liceu de Humanidades de Campos
(RJ). Em 1930 transferiu-se de Campos para Niterói, como catedrático de
português e literatura no Liceu de Humanidades Nilo Peçanha e Escola Normal.
Já residente em Niterói desde 1929,
aqui lecionou em vários colégios particulares: Colégio Brasil, Colégio
Bittencourt Silva, Instituto de Humanidades (depois Colégio José Clemente), e
Colégio Icaraí. Em 1936/37 foi aprovado no concurso para professor do Ensino
Técnico Secundário do Distrito Federal. Ao se aposentar, em 1962, era professor
de português e latim no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
No ensino superior, foi um dos
incentivadores da criação da Faculdade Fluminense de Filosofia, de Niterói, e
seu primeiro diretor, como consta da “Ata da 1ª Reunião da Congregação da
Faculdade Fluminense de Filosofia”, realizada em 12 de abril de 1947. Tendo sido
nomeado Secretário de Educação e Saúde, comunicou à congregação a
impossibilidade de assumir a direção, propondo o nome do professor Durval de
Almeida Batista Pereira para substituí-lo. Ao deixar a Secretaria de Educação, a
pedido e em caráter irrevogável, assumiu plenamente a cadeira de língua e
literatura latina, que lecionou até 1965.
1.5.1.
Participação em Comissões Examinadoras
Este item merece destaque nas
atividades docentes de Ismael Coutinho.
Além de participar de bancas
examinadoras de concurso para professor do ensino secundário oficial, o
professor Ismael Coutinho, pelo prestígio e respeito que conquistou no meio
universitário, integrou também muitas comissões examinadoras de concursos para
catedrático e livre-docente.
Era de ouvir sua arguição segura,
profunda, mas sem ostentações, sempre serena. Lia minuciosamente as teses,
anotava-as e redigia em tiras de papel almaço seus comentários, sempre ricos de
informações, às vezes preciosas achegas, muitas até hoje dentro das teses. Com
os candidatos de alto nível sabia manter um diálogo de igual padrão. Aos menos
doutos, generoso, oferecia-lhes oportunidade de sobressaírem, de modo que sua
presença era tranquilizadora, por seu equilíbrio, sua prudência e pelo respeito
à pessoa do candidato.
No curriculum vitae de 1962,
relacionou as seguintes comissões:
1) de Filosofia da Universidade do Brasil (1945);
2) Concurso para a Livre-Docência da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil (1948);
3) Concurso para a Cátedra de História da Literatura Latina
da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado de Minas Gerais
(1956);4) Concurso para Livre-Docência de Filologia Românica da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1957);
5) Concurso para a Cátedra de Língua Portuguesa da Faculdade
de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1959);
6) Concurso para a Cátedra de Filologia Românica da
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1958);
7) Concurso para a Cátedra de Filologia Românica da
Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1960);
8) Concurso para a Cátedra de [Latim, Português?] do Liceu
Nilo Peçanha, de Niterói (1941);
9) Concurso para a Cátedra de Português do Liceu de
Humanidades de Campos – RJ (1945);
10) Concurso para a Cátedra de Português do Colégio Pedro
II, Rio (1958);
11) Concurso para a Cátedra de Latim do Colégio Pedro II,
Rio de Janeiro (1950).
Esta relação está incompleta, pois
sabemos de várias outras participações. Também as datas nem sempre coincidem com
as que constam das teses.
Aos especialistas, aos que convivem
com o magistério e, sobretudo, àqueles que assistiram a esses concursos, a lista
apresentada é significativa. Como, porém, Confluência alcança um público
diversificado, que inclui jovens estudantes de graduação e pós-graduação em
Letras, vale a pena relacionar as obras examinadas, como, pelo menos, uma
contribuição à historiografia dos estudos filológicos e linguísticos no Brasil –
promissora linha de pesquisa que já conta alguns trabalhos de valor. Algumas das
teses, em sua forma original, ou com alterações adequadas à publicação, ainda
hoje são de consulta obrigatória, ou mesmo a única referência sobre o assunto.
Cito as que consultei, dando-lhes
numeração correspondente à dos concursos:
1) Ernesto Faria. Persio – estudo literário e
lexicográfico (1945);
2) Joaquim Matoso Câmara Jr. Contribuição para uma
estilística da língua portuguesa;
3) Aída Costa. Influências helênicas no teatro de Plauto
(A “Aulularia”), (1954);
4) Matilde Matarazzo Gargiulo. A “Questão da Língua
Italiana” no século XVI, (1954);
5) Albino da Bem Veiga. Virgeu de Consolaçon (1959);
6.1) Augusto Magne. O mais antigo documento da língua
francesa (1955);
6.2) Serafim Pereira da Silva Neto. O problema do latim
pré-românico (1955);
7) Heinrich A. W. Bunse. Aspectos linguísticos e
etnográficos no município de São José do Norte (1959);
10.1) Carlos Henrique da Rocha Lima.
Uma preposição portuguesa (Aspectos do uso da preposição “a” na
língua literária moderna) (1954);
10.2) Evanildo Bechara.
Estudos sobre os meios de expressão do pensamento concessivo em português
(1954);
10.3) Olmar Guterres da Silveira. A “Grammatica” de
Fernão D’Oliveyra – Apreciação – Texto reproduzido da 1ª edição, 1936
(1954);
10.4) Petrônio Mota. Raul Pompeia e “o Atheneu” (Ensaio
de interpretação psicanalítica e estilística) (1954);
10.5) Vittorio Bergo. Aspectos lógicos, analógicos e
estilísticos da transitividade verbal (1954);
11.1) Carlos Juliano Torres Pastorino. De pestilate in
Lucreci poemate (1950);
11.2) Dioclécio Leite Macedo (D. Hilário Leite Macedo, OSB).
Ensaio sobre as figuras retóricas do “Apologeticum” de Q. S. F. Tertuliano
(1950);
11.3) Sílvio Elia. Os elementos osco-umbros no
vocabulário latino (1950).
Não consta da relação o concurso para
Doutoramento em Letras Clássicas (Língua e Literatura Grega) na Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em que foi aprovada a
professora doutora Guida Nedda Barata Parreiras Horta, com a tese As imagens
de S. João Crisóstomo, na Homilia sobre o incompreensível (1958). Sé
encontramos a arguição, invariavelmente redigida em tiras de papel almaço.
Também não encontramos outras teses, algumas importantíssimas, que sabemos
examinadas pelo professor Ismael. É provável que estejam na Coleção Ismael
Coutinho, título dado à sua preciosa biblioteca, adquirida pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, na administração do autor deste artigo
(1966-1968), hoje integrante da Biblioteca Central da UFF no campus do
Gragoatá, em Niterói.
1.6.
Administração pública: um exercício de cidadania
No final da Resposta a um Crítico
(II) (Prof. Mansur Guérios), diz Ismael Coutinho: “Estive, é fato, alguns
anos afastado das “lides magisteriais”, pagando o tributo filial de fluminense à
administração de meu Estado...” (op. cit., p. 55-56).
Este tributo foi, a meu ver, um
penoso exercício de cidadania para um homem que, confessadamente, gostava de
ficar no seu canto, com sua família, com seus livros; ou, então, gostava de dar
aulas, de conviver com seus alunos.
Foi chefe de gabinete da Prefeitura
de Niterói no tempo do Prefeito [João Francisco de Almeida] Brandão Júnior
[1941-1944]; foi secretário de educação e saúde (1947) no governo do coronel
Edmundo de Macedo Soares e Silva; foi presidente do Conselho Estadual de
Educação (1958).
No exercício desses cargos, não traiu
o perfil, conhecido de todos, de respeito à criatura humana, de defesa
intransigente da verdade. Tudo isso está patente nos discursos em que deixou seu
ideário sobre educação, dignidade profissional, democracia, defesa da família,
responsabilidade do governo para com o povo, direitos dos pais e liberdade dos
filhos, patriotismo, papel do livro na defesa da cultura, importância da
formação didática (ele era autodidata!), etc., etc.
Apesar de conotações políticas que
esses cargos oficiais inevitavelmente carreiam, Ismael Coutinho muitas vezes se
opôs a certas soluções “políticas”. Amicus Plato, sed amica veritas.
Entre Platão e a verdade, não tinha dúvidas. Foi assim, por exemplo, com um
deputado estadual, a quem escreveu uma carta enérgica de quatro folhas
datilografadas, em 5 de agosto de 1947, rebatendo acusações que julgou
infundadas ao secretário de educação. É um texto importante, de que
transcrevemos dois pequenos trechos:
Antes de pingar o ponto final nesta
já tão estirada carta, quero cientificá-lo... de que não tenho grande apego ao
cargo de secretário, embora seja ele tão elevado, que nunca sonhei de um dia vir
a ocupá-lo, digo-o sem falsa modéstia. Entretanto nele me acho investido pela
nímia bondade desse homem providencial [o coronel Edmundo de Macedo Soares e
Silva...].
Aqui, por conseguinte, estou e
continuarei a estar, enquanto lhe merecer a confiança. Mas de uma coisa sou
extremamente cioso e dela jamais abrirei mão – da minha dignidade. Não tenho
fortuna, se é que se entende por fortuna apenas o dinheiro e a posse de bens
materiais. A única riqueza que possuo é o patrimônio de um nome honrado que
herdei desde o berço, e pretendo legar aos meus filhos, indene de qualquer eiva.
Não admira que Ismael Coutinho viesse
a pedir demissão, em caráter irrevogável, apesar de insistentes recusas do
governador, e voltasse às suas aulas.
1.7.
Associações Culturais
Ismael Coutinho era membro e fundador
da Academia Brasileira de Filologia, desde 26 de agosto de 1944, onde ocupava a
cadeira número 15, cujo patrono é Júlio Ribeiro.
Na Academia Fluminense de Letras ocupou a cadeira número 42, patronímica do
bispo Francisco Lemos de Faria Pereira Coutinho. Pertenceu ainda à Sociedade
Brasileira de Romanistas.
1.8.
Colaboração em Revistas
Nos anos dourados dos estudos
filológicos, aí pela década de 50, foi colaborador da Revista Brasileira de
Filologia, da Livraria Acadêmica, tendo figurado entre os diretores (a
partir da morte do professor Serafim da Silva Neto), em companhia de Antenor
Nascentes, Joaquim Matoso Câmara Jr. e Sílvio Elia (vol. 6, tomo I, junho,
1961). Também escreveu na Revista Filológica e em Escola Secundária,
revista do Ministério da Educação e Cultura.
Suas publicações estão citadas
adiante.
1.9.
Aquela trágica manhã...
Aposentado, Dr. Ismael gostava de
sair estrada afora com dona Mimi, para visitar os filhos e os muitos netos que
enchiam de alegria o coração dos avós, numa lua de mel itinerante que, afinal, o
merecido otium cum dignitate lhes propiciara.
Naquela manhã de 24 de julho, de
tristíssima lembrança, – horrendum dictu! – perdemos o mestre
inesquecível.
Divulgada a tragédia, a imprensa do
estado do Rio de Janeiro e de outros estados publicou ampla matéria sobre a vida
e a obra do professor Ismael Coutinho. O Dr. Clóvis Robert, seu genro e
admirador, reuniu, com extremo cuidado, um vasto noticiário, de que nos estamos
valendo. Eis a relação dos jornais: O Fluminense, Niterói (RJ); Diário
Fluminense; Diário de Notícias, Rio (RJ); A Cidade de S. João,
São João da Boa Vista (SP); Diário de S. Paulo; Jornal do Commercio, Rio;
Correio Fluminense, Niterói; O Diário, Belo Horizonte (MG); A
Comarca, Mogi-Mirim (SP); Tribuna do Povo, Araras (SP); Correio da
Manhã, Niterói; A Folha, Pinhal (SP); Niterói Católico; O Alarma,
Itaperuna (RJ); Lar Católico, Juiz de Fora (MG). Também o Boletim
da Sociedade de Língua Portuguesa, de Lisboa, nº 8-9, agosto-setembro de
1965, registra na primeira página seu voto de pesar.
Consta, ainda, da “Memória do Prof.
Ismael Coutinho” organizada por Clóvis Robert, a correspondência dirigida à
família por instituições oficiais e particulares, por amigos e colegas
brasileiros e estrangeiros, por alunos e ex-alunos, e por familiares. Em todos
os textos, a palavra de conforto e o invariável testemunho de apreço à cultura e
à retidão de caráter de Ismael Coutinho.
Foram-lhe prestadas grandes
homenagens pela alta administração do Estado e do Município:
1) o governador, general Paulo Francisco Torres, decretou
que o Instituto de Educação de Niterói passaria a se chamar Instituto de
Educação “Professor Ismael Coutinho” (Decreto nº 11.913, de 26/07/1965);
2) a Assembleia Legislativa dedicou o expediente da sessão
de 3 de agosto “à memória do insigne Prof. Ismael Coutinho”;
3) o Poder Judiciário, através do presidente do tribunal do
júri, Dr. Jovino Machado Jordão, emitiu um extenso voto de pesar, publicado no
Correio Fluminense de 01/08/1965;
4) o prefeito municipal de Niterói, Dr. Emílio Abunahman,
deu o nome de rua Professor Ismael Coutinho à “artéria que dá acesso para a
Faculdade de Filosofia, com início na rua Dr. Celestino” (Decreto nº 1602 de
23/07/1966);
5) mais recentemente (11/06/1982), a câmara municipal de
Santo Antônio de Pádua concedeu o Diploma de Medalha de Honra ao Mérito Visconde
da Silva Figueira “Ao Ex.mo Sr. Prof. Ismael de Lima Coutinho, “in
memoriam”, por sua valiosa participação em vários setores de nosso
Município”.
Do vasto noticiário, é justo destacar
o de O Fluminense, mesmo quando o tempo foi tornando menos sofrido o
terrível golpe. Esmerou-se a seção Prosa e Verso na publicação das
matérias que Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa souberam dosar com
fina sensibilidade e apurado senso jornalístico. Da edição de 01/08/1965, por
exemplo, constam: o artigo de Marcos Almir Madeira, Verbo e coração
vernáculos (Ismael Coutinho ou o livro e o lar), trechos inéditos do
homenageado e depoimentos de especialistas e intelectuais: Albertina Fortuna,
Antenor Nascentes, Artur Torres, Aurélio Buarque de Holanda, Cândido Jucá
(filho), Durval Batista Pereira, Francisco Bittencourt Silva, Guilherme Duque
Estrada de Morais.
Em outro texto pretendo relacionar os
artigos e pronunciamentos mais extensos, que sirvam de fontes de referência a
estudos sobre Ismael Coutinho.
Outras homenagens são de instituições
ou associações culturais a que Ismael Coutinho pertencera, como as da Academia
Brasileira de Filologia, na sessão ordinária de 07/08/1965 e na especial de
28/08/1965; e a do Conselho Estadual de Educação.
A Academia Brasileira de Filologia
realizou em 28 de agosto de 1965, no salão nobre do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro, uma sessão especial dedicada a seu ilustre membro e fundador. O autor
deste artigo, falando como ex-aluno, mal pôde ler seu texto “Meu mestre Ismael
Coutinho”, publicado em O Fluminense de 09/10/1965. Lembra-se, porém, de
que o orador oficial, acadêmico Modesto de Abreu, emocionadíssimo, ao evocar uma
amizade iniciada em 1926, chegou a confessar que, embora não afeito a orações,
sentia vontade de rezar pelo amigo falecido. Naquele salão nobre, onde tantas
vezes o professor Ismael Coutinho se fez admirar por suas arguições, naquele
salão nobre, parecíamos sentir-lhe a presença, ouvir-lhe a voz paternal, serena.
E a sessão se arrastava penosamente num doloroso réquiem. A lâmpada, que há
pouco se apagara, todos ainda a sentíamos quente dentro de nós.
Trinta e cinco anos depois, no
centenário de nascimento de Ismael de Lima Coutinho, a Academia Brasileira de
Filologia comemorou com aleluias a vida e a obra do saudoso homenageado. Agora,
sim, podíamos todos exultar como num cântico de ação de graças, e dizer, sem
falsa retórica, que Ismael Coutinho, a exemplo de São Paulo, cristãmente
“combateu o bom combate, terminou sua carreira e guardou a fé”.
Certamente já recebeu sua coroa de
justiça.
1.10.
Um Ismael Coutinho desconhecido
Não estaria concluído o retrato de
corpo inteiro do Homem sem uma faceta que só agora conhecemos.
A leitura do acervo do Instituto de
Letras revela-nos uma outra feição, até agora não referida, do professor Ismael
Coutinho: a feição literária. A princípio, relutamos em acrescentar este item,
por só termos notícia de poesias ismaelinas pela professora Maria Teresa
Coutinho Robert, algumas ditas de cor. Julgávamos tratar-se desses cometimentos
literários que todos um dia perpetramos, como poetas bissextos, para familiares,
amigos íntimos, ou para nós mesmos.
Ocorre, porém, que desde seminarista,
aí por 1922 – 1923 – 1924, Ismael Coutinho escreveu, em Niterói, e publicou no
já citado O Município, de Lavras (MG), sonetos e pequenos textos em
prosa, às vezes com o pseudônimo de João das Chagas.
No referido caderno de “Poemas e
Artigos publicados”, encontram-se as seguintes publicações: a) sonetos: “Minha
Mãe”, “Natal”, “Soror Teresinha”, “Retorno” (publicado
em “Lira”, Resende – RJ), “A cigarra” e “Conselhos Paternos”;
b) em prosa: “Ruínas” (João das Chagas) e “Almas Penadas” (idem).
Datados de dezembro de 1926, todos
compostos em Belo Horizonte, há cinco poemas manuscritos: “Quando o teu vulto
passa”, “A H. L. F.”, “Esfinge”, “Amor e Receio” e um
soneto sem título. Há composições poéticas posteriores, datadas (08/05/927), ou
não.
Bem mais recente (de Belo Horizonte,
05/02/1957), é o poema que “o vovô Baé” escreveu para a primeira neta, “À minha
netinha Branca”.
Não pude consultar outros preciosos
cadernos de poesias, guardados pela família como se guardam relíquias.
Além do que foi dito, o João das
Chagas chegou a planejar um livro com o título de Contos Ingênuos, com
índice, de que encontramos seis textos: “O Negro Eugênio” (escrito
especialmente para “O Jornal”), “O Velho Tropeiro”, “O Benedito”,
“Tio Jacinto”, “O Santo Eremita” e “A Pedra Lisa”..
2.
A Obra
Em artigo publicado em 1966, o autor
destas linhas escreveu o seguinte: “A obra de Ismael Coutinho, contrastando
flagrantemente com a sua intensa atividade cultural, é pequena... Nem é Ismael
Coutinho, na história dos estudos filológicos no Brasil, um exemplo isolado
desses mestres que ensinaram muito, mas pouco escreveram”.
Leodegário A. de Azevedo Filho foi mais feliz, ao dizer, em 1975, que a “obra
que nos deixou não é extensa, embora intensa”.
É que, de modo geral, pensa-se apenas
nos Pontos de Gramática Histórica, sua obra-mestra. A leitura dos artigos
dispersos, aqui relacionados, e de alguns textos inéditos já referidos naquele
artigo de 1966 ou acrescentados agora – que pretendo reunir numa próxima
publicação – dará ao leitor condições de ajuizar bem da extensão e da
intensidade da obra do professor Ismael de Lima Coutinho, obra, fique bem claro,
de natureza linguístico-filológica, ou relacionada a estudos clássicos.
2.1.
Publicações
2.1.1.
Livros e Teses
1927-
Método de análise lógica.
Rio de Janeiro: Tipografia Aurora, H.
Santiago. Reimpressão em 1928, data registrada na capa, mantendo-se,
porém, na folha de rosto a data de 1927.
1928-
As criações internas do idioma.
Tese sorteada para o
concurso à 1ª Cadeira de Português do Liceu de Humanidades de Campos (RJ). Rio
de Janeiro: Tipografia Aurora, H. Santiago (mimeo.).
1928-
A crase. Tese de livre escolha, apresentada à Congregação do Liceu de
Humanidades de Campos (RJ), para concurso à 1ª Cadeira de Português. Rio de
Janeiro: Tipografia Aurora, H. Santiago (mimeo.).
1936-
Pontos de gramática histórica.
Niterói: Papelaria e Livraria
Acadêmica. É, com alterações, a matéria dos sete itens introdutórios da edição
de 1938, números 1-62.
1938-
Pontos de gramática histórica.
São Paulo: Companhia Editora
Nacional. Esta edição mereceu duas recensões críticas, de Sousa da Silveira e de
José Pedro Machado, que vão transcritas parcialmente, adiante.
A obra teve sucessivas edições, a
saber:
1941, 2ª edição, melhorada. Companhia Editora Nacional, São
Paulo. O autor fez algumas alterações como, entre outras: retirou os sinais
convencionais; suprimiu do capítulo Constituição do Léxico Português
“Elementos Gregos”, nº 119, p. 74-84; substituiu no capítulo Fonética
fisiológica, o item “Grupo vocálico”, por “Semivogais”, enriquecendo
o atual nº 198; transcreveu o Decreto-Lei nº 292, de 23/03/1938 (“Regras para
acentuação gráfica”), do Ministro Gustavo Capanema; na bibliografia incluiu
as obras recentes de Serafim da Silva Neto.
1954, 3ª edição, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro. Passa a
integrar a Bibliografia Brasileira de Filologia, com o título, na capa, de
Gramática Histórica.
1958, 4ª edição, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro.
Retomou, com alterações, os “Elementos Gregos” do léxico português e acrescentou
o capítulo sobre perfeitos fortes. Registre-se a contribuição de Antônio Geraldo
da Cunha, “jovem e brilhante filólogo”, na revisão das provas tipográficas. Esta
edição foi recenseada magnificamente por Joaquim Matoso Câmara Jr., texto que
transcrevemos integralmente adiante.
1962, 5ª edição, revista e aumentada, Livraria Acadêmica,
Rio de Janeiro. É a última em vida do autor, que diz no prefácio ter procurado
autenticar as “numerosas citações”, e ter feito “alguns acrescentamentos e
correções”.
1967, 6ª edição, organizada e apresentada por Rosalvo do
Valle, Livraria Acadêmica. Rio de Janeiro.
1976, 7ª edição, revista; organizada e prefaciada por Carlos
Eduardo Falcão Uchôa, Ao Livro Técnico S/A, Rio de Janeiro. É o primeiro volume
da Coleção Linguística e Filologia. Hoje, a obra está em 17ª edição,
publicada também por Ao Livro Técnico.
Esse livro afortunado mereceu, de
alguns especialistas, crítica muito elogiosa, como, de outros, crítica menos
favorável, a que o autor deu respostas extensas, que registramos a seguir.
2.1.2.
Artigos, Recensões, Prefácios e Respostas a críticas
As publicações que conhecíamos datam
dos anos 40. Agora, porém, temos de recuar até 1924, em face de pequenos artigos
esparsos que encontramos no jornal O Município, de Lavras (MG), como já
foi dito, e que outras contribuições de 1931, de que também só agora tomamos
conhecimento.
1924- Desfazendo um equívoco
– artigo em que retifica a
afirmação de Cândido de Figueiredo sobre o étimo de “Mariano”: “Mariano,
propriamente falando, é adjetivo de Maria”. Diz Ismael Coutinho: “Maria teve sua
vulgarização com o advento do cristianismo. Mariano, porém, já circulava
antes do aparecimento do cristianismo; portanto, a conclusão lógica é que
Mariano não se deriva de Maria, mas de Mário. “Frades marianos”,
“congregação Mariana”, está dito. A derivação aqui é clara, logo denotada pelo
intuito religioso dessas fundações. Maria é a sua protetora, dela tiram o nome”.
(O Município, 03/02/1924)
1924- Motivos frágeis
– artigo em que aponta
fragilidades e inconsistências dos motivos alegados por Cândido de Figueiredo
sobre a correta pronúncia de vocábulos como “rapsódia”, “palinódia”, “prosódia”,
“salmódia” etc. E conclui assim: “Eu, por mim, se fosse consultado sobre a
palavra rapsódia, responderia que se pronuncia rapsódia, pelo simples motivo de
ser a pronúncia de toda a gente, que é, segundo o velho conceito de Horácio, a
quem pertence o direito de falar: Jus et mos loquendi” (O Município,
03/02/1924)
1924-
Em torno de uma pronúncia – artigo em que defende a pronúncia
“Quilôa”, contra “Quíloa”, proposta por Cândido de Figueiredo. Transcrevo o
final: “Devemos pronunciar Quíloa ou Quilôa? Pronunciem lá como
quiserem. Eu vou na onda com os que pronunciam Quilôa. Estou errado? Não
importa. Enquanto não vierem razões mais fortes...” (O Município,
10/02/1924)
1924- Em torno de uma derivação
– discute a afirmação de
Cândido de Figueiredo de que “devemos escrever letra e não lettra,
porque a palavra nos veio do latim litera, que se deriva de litura,
com pequena modificação.” Depois de citar Forcellini (Lexicon Totius
latinitatis), Prisciano, Scaliger, Vossius e Burgraff, discutindo
“conjecturas formuladas”, conclui: “Exponha-se como certo o que é certo e como
controvertido o que está sob controvérsia.” (O Município, 24/02/1924)
1931-
Em Ideal, “Revista mensal de Ciências, Artes, Letras, Mundanismo etc. –
Publicada sob os auspícios dos Professores do Colégio Brasil”, de Niterói (RJ),
o professor Ismael Coutinho assinava uma seção intitulada Consultório
Linguístico, em que respondia a consulentes. A revista tinha como
redator-chefe o professor Sílvio Júlio de Albuquerque Lima, eminente hispanista
e futuro catedrático de História da América da Faculdade Nacional de Filosofia
da Universidade do Brasil. Só encontramos três números (julho, agosto e
setembro-outubro de 1931).
Parece-nos que a revista prosseguiu,
a julgar por um texto manuscrito de doze páginas, sem data, redigido para o
Consultório Linguístico, em resposta ao mesmo consulente, um tal “Sr.
Lúcio”.
1931-
Em Nova Geração,
“Órgão dos corpos docente
e discente do Liceu ‘Nilo Peçanha’ e Escola Normal de Niterói”, ano 1, número 1,
p. 3-4, em Nótulas de Linguagem há um pitoresco artigo a propósito de
“greve” e “parede” (“fazer parede”), rico de informações semânticas com base em
Darmesteter, que o professor Ismael Coutinho termina assim: “Ao pechisbeque
francês, preferimos o ouro velho do nosso parede”. Infelizmente, não
temos notícia de outros números de Nova Geração.
A partir de 1941, as publicações são
conhecidas:
1941- Uma achega etimológica.
In: Miscelânea de
estudos em honra de Antenor Nascentes, Rio, 1941, p. 61-64. A propósito da
etimologia de acabrunhar.
1941- Réplica oportuna.
In: Revista Filológica,
ano II, maio, nº 6, Rio, p. 46-54. Resposta a críticas da professora
Albertina Fortuna Barros sobre a formação do infinitivo “pôr’. A professora
respondeu com Tréplica oportuna.
1941- Dois vocábulos aparentados.
In: Revista Filológica,
nº 10, setembro, Rio, p. 15-17. Sobre a etimologia de borco e
emborcar.
1941 Um vocábulo de difícil
etimologia.
In: Revista Filológica, nº 11,
outubro, Rio. Sobre a origem de faro.
1954- Os gramáticos latinos.
In: Anuário da
Faculdade Fluminense de Filosofia, Niterói (RJ), p. 111-118. Estudo
reproduzido, por intermediação do professor Artur de Almeida Torres, em
Revista de Portugal, XXX, 1965.
1955- A propósito de minha
Gramática Histórica.
In: Revista Brasileira
de Filologia, vol. 1, tomo 1, junho, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p.
27-51. Resposta a críticas do professor Silveira Bueno, publicadas no Jornal
de Filologia, 5º número, São Paulo, 1954.
1955- Resposta a um crítico.
In: Revista Filológica,
nº 4, ano I da II fase, agosto e setembro, Rio de Janeiro, p. 45-58.
Primeira parte da resposta a críticas do professor Mansur Guérios, publicadas na
revista Letras, órgão da Faculdade de Filosofia da Universidade do
Paraná, nº 2, agosto, 1954.
1955-
Recensão crítica: “Angelo Monteverdi – Manuele di avviamento
agli studi romanzi: Le lingue romanze, casa ed. Francesco
Vallardi, Millano, 1952, in 8º, 256 ps”. In: Revista Brasileira de Filologia,
vol. I, tomo 2, dezembro, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p. 217-219.
1956-
Recensão crítica: “Albert Blaise – Manuel du latin Chrétien,
Strasbourg, 1955, 221 págs. In 8º”. In: Revista Brasileira de Filologia,
vol. 2, tomo I junho. Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p. 127-129.
1956- Resposta a um crítico (II).
Final da resposta ao professor Mansur Guérios. In: Revista Filológica,
ano II da II fase, 1º semestre, Rio de Janeiro, p. 43-56.
1958- Prefácio de Bíblia
Medieval Portuguesa – I Histórias d’abreviado Testamento Velho, segundo Meestre
das Histórias Scolasticas.
Texto apurado por Serafim
da Silva Neto, INL, Rio de Janeiro, p. 5-9. O prefácio está datado de 28 de
agosto de 1954.
1959- Sugestões Metodológicas
para a Execução do Ensino de Português.
In: Escola Secundária, nº 11, dezembro. Revista da CADES
(Campanha do Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário), MEC, Rio de
Janeiro, p. 54-64.
1964- A desinência do acusativo
do singular do Indo-Europeu.
In: Romanitas, ano II, Vol. 2, Rio de Janeiro, p. 41-45.
1966- Prefácio de O Modernismo
brasileiro e a língua portuguesa,
de Luís Carlos Lessa,
Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, p. VI-IX. O prefácio está datado de
17/12/1964.
2.2.
Trabalhos inéditos datados
1952- Recensão crítica de
“Gladstone Chaves de Melo Iniciação à Filologia Portuguesa,
Organização Simões, 1951
Rio”.
1964-
Estremunhado – Estudo em que propõe para “estremunhar” o étimo
stramoniare de stramonium, “estramônio”, “veneno enérgico cujos
efeitos se denunciam por uma sonolência letárgica que se combate especialmente
com vinagre e outros ácidos”.
1964- A vida amorosa de Horácio
– conferência lida na
Sociedade Brasileira de Romanistas.
1964-
O “z” no antigo latim. Estudo em que defende a existência
do “z” no latim arcaico, invocando, diante do silêncio da maioria dos gramáticos
latinos, o testemunho de Vélio Longo e Marciano Capela; Algumas inscrições; o
etrusco, o osco-
-umbro e o falisco; e modernos estudos de fonética, ortografia e epigrafia
latinas.
2.3.
Trabalhos inéditos não datados
1- Parricida –
Discute sete hipóteses sobre a origem do elemento pari- ou parri-,
já que o elemento final –cida, da família de caedo, “matar”, não
oferece dificuldades.
2 - História de uma palavra.
A propósito da etimologia de persona, focalizando o problema no latim
e nas línguas românicas, menos o romeno, que não conhece o vocábulo.
3 - Parassíntese.
Texto manuscrito, de cinco folhas, em que se refere ao não acolhimento pela
Nomenclatura Gramatical Brasileira do termo “parassintético”, e estuda esse
processo de formação vocabular.
4 - Resposta,
incompleta, a José Pedro Machado, referida adiante.
5 - Consultório Linguístico.
Manuscrito de treze páginas como resposta a um consulente sobre porque e
por que.
6 - Em torno de uma origem.
Notas sobre a etimologia de “nojo”.
7 - Notas sobre a etimologia de
“escorregar”, “estro” e “escalfar”.
8 - Aula inaugural de período
letivo sobre o conceito de Gramática, seu lugar no ensino da língua e a melhor
orientação a seguir.
9 - Recensão crítica de Fontes do
Latim Vulgar, de Serafim da Silva Neto, 1ª edição, ABC, Rio, 1938.
10- Recensão crítica de Desfile
de Cigarras, poesias de A. Tavares de Lacerda, Editora Pongetti,
Rio.
11- Sobre a diferenciação
linguística entre Brasil e Portugal. Manuscrito de doze páginas em
que tece comentários à quarta conferência “do erudito Sr. Lagden” [Henrique
Lagden], ora concordando, ora discordando de suas considerações.
Nos últimos anos, o professor Ismael
Coutinho vinha trabalhando intensamente no texto da Andria, de Terêncio,
que seria sua tese para a antiga cátedra de língua e literatura latina. Há um
rico material sobre fatos gramaticas e estilísticos da obra, sobre vocabulário e
muitas anotações à métrica de Terêncio. Lamentavelmente, os latinistas têm de se
contentar com essas anotações e comentários esparsos.
2.4.
Sua Obra-Mestra
Para concluir este item sobre a obra,
não posso deixar sem merecido destaque a repercussão de sua obra-mestra, com os
elogios e as críticas que recebeu. Com relação ao bom acolhimento dos Pontos
de Gramática Histórica, transcrevo três recensões críticas, parcial ou
integralmente.
2.4.1.
Recensão crítica de Sousa da Silveira
A primeira é a do mestre de todos
nós, Sousa da Silveira, publicada na Revista de Cultura, ano XII – 1938,
Vol. 4 – junho/de-zembro, Rio de Janeiro, p. 266-269. Omito as observações
pormenorizadas.
Em lindo volume de 358 páginas de
nítida impressão e combinação de tipos agradabilíssima à vista mais exigente,
temos, da Companhia Editora Nacional, mais um lindo trabalho sobre a língua
portuguesa, útil a alunos e a professores.
Contém os pontos de gramática
histórica do programa do Colégio Pedro II, com alguns acréscimos que o autor
julgou oportunos, e que, a meu ver, valorizaram bastante o livro quanto à sua
finalidade didática.
Tenho lido, de alguns anos a esta
parte, escritos de professores ou candidatos a professores de português em que
se nota apreciável substância linguística ou filológica, mas péssima redação: a
falta de gosto, o desleixo mesmo, a incorreção, o desprezo das boas normas da
língua escrita avultam, prejudicando bastante, com esta falha artística, o
mérito científico do trabalho. Tive a satisfação de verificar que tal não é o
caso do presente compêndio escolar do professor Coutinho: neste, a boa doutrina
transmite-se em boa linguagem portuguesa.
Não há ninguém, creio eu, que tendo
de dar nova edição de um trabalho de certo fôlego, como é o do professor
Coutinho, não se veja obrigado a dar-lhe alguns retoques. Com o intuito de
ajudar o autor nessa nobre tarefa, sem esgotar a lista dos pontos que eu lhe
poderia indicar como necessitados de revisão, aqui lhe chamo a atenção para os
seguintes:
...........................................................................................................
A impressão geral que me deixou a
leitura do volume do professor Ismael Coutinho foi excelente. Penso que –
doutrina segura, erudição discreta (coisa bem rara!), clareza, linguagem fluente
e correta, equilíbrio, encadeamento lógico na exposição – são qualidades que o
tornam dos mais belos e dos mais recomendáveis que, no gênero, se têm publicado
entre nós.
N prólogo da 2ª edição, 1941, Ismael
Coutinho externou seu reconhecimento às críticas de Sousa da Silveira:
Entre os mestres nacionais, que
escreveram então sobre o trabalho é justo salientar aqui, de público, o nosso
reconhecimento ao professor Sousa da Silveira que, sem sanha ou cólera, antes
com a bondade paternal dos que muito sabem, nos fez judiciosas observações e
reparos de que nos aproveitamos na presente edição.
2.4.2.
Recensão crítica de José Pedro Machado
A segunda é a resenha do filólogo e
lexicógrafo português José Pedro Machado, publicada no Boletim de Filologia,
tomo VI, fascículos 3-4, Lisboa, 1940 (embora datada de agosto de 1939), p.
477-481. Esta referência, além de noticiar a repercussão favorável da obra em
Portugal, tem o objetivo de divulgar a existência de um texto inédito do
professor Ismael Coutinho: uma resposta manuscrita, incompleta, de dez folhas,
não sei se enviada ao filólogo português.
Eis alguns trechos dessa longa
resenha:
De há muito que se faz sentir a
falta de um trabalho em língua portuguesa onde, além dos assuntos relacionados
com a gramática histórica, se trate também dos da linguística geral.
Essa falta ainda mais é para
lastimar se pensarmos num “manual” onde os principiantes se possam familiarizar,
embora levemente, com os grandes nomes, com os grandes problemas.
Julgo que foi de certo modo para
suprimir essa lacuna que o professor Coutinho publicou o presente trabalho, que
também é o resultado das lições por ele professadas nos estabelecimentos de
ensino onde exerceu a sua atividade.
“Nasceu ele de simples notas
manuscritas, rubricadas ao sabor do programa oficial sem ordem nem ligação”.
Este trabalho já granjeou alguma
popularidade entre os estudantes portugueses. Ainda bem, porque o merece.
Essa popularidade mostra como há
muito a esperar do gênero, que aparece já algo desenvolvido nesta obra.
Oxalá que alguém olhe com carinho
para ele.
Oxalá também que os mestres saibam
auxiliar os estudantes no seu caminho para a compreensão e a concatenação de
muitas ideias que andam no ar e que nem todos as apresentam, uns por as
ignorarem, outros por partidarismo que muito cheira a século XVIII.
Oxalá!
Como é natural, a obra do professor
Coutinho tem passos com os quais não estou em acordo absoluto.
Vou passar a examinar alguns
.............................................................
Em resumo: Os Pontos de
Gramática Histórica do professor Ismael de Lima Coutinho devem ser lidos por
todos.
O seu Autor é pessoa de elevada
cultura e de grande capacidade de síntese, o que é raro nos estudiosos deste
gênero. Pena é que sua largueza de vistas (com a qual, como disse, concordo em
absoluto) não esteja ainda suficientemente espalhada no Brasil e em Portugal e
que a sua atividade escolar não lhe permitisse o aperfeiçoamento de certas
deficiências, como repetições, deslizes doutrinários etc.
O professor Coutinho parece-me que
é daqueles estudiosos de quem muito esperamos. Se se contar com mais alguns nas
suas condições (por poucos que sejam) em breve alguma cousa se fará de novo.
Uma última impressão sobre os
Pontos: parece-me que seria necessário olhar com um pouco mais de atenção
para o português arcaico, não só sob os pontos de vista fonético, morfológico e
sintático, mas em especial para o ortográfico.
2.4.3.
Recensão crítica de Joaquim Matoso Câmara Jr.
A última é a recensão do professor
Joaquim Matoso Câmara Jr., valiosa apreciação por ser a visão crítica de um
linguista que também tratou da história da língua, mas sob a ótica do
estruturalismo, em História e Estrutura da Língua Portuguesa, Padrão, Rio
de Janeiro, 1975, livro que será talvez aquele “sucedâneo de orientação
estrutural” dos Pontos de Gramática Histórica, de que sentia falta o
professor Carlos Eduardo Falcão Uchôa no estudo introdutório da 7ª edição da
obra de Ismael Coutinho.
Eis a íntegra da resenha, publicada
na revista A Cigarra, que recebi do professor Uchôa:
Ismael Lima Coutinho é uma das
nossas figuras mais respeitáveis nos estudos da filologia portuguesa. Para eles
traz, além de um grande conhecimento específico, os seus predicados de latinista
e helenista e um amplo domínio bibliográfico, facilitado pela sua capacidade de
leitura fluente em alemão, o que lhe dá acesso direto à rica literatura de
linguística e filologia românica nesse idioma. A isto se alia grande lucidez e
ponderação intelectual, de par com não menos probidade e exação no trabalho.
Assim, a sua “Gramática
Histórica”, na feição que adquiriu a partir da 3ª edição, é um guia
excelente para os estudantes universitários, os professores secundários de
português e os leitores interessados em filologia. Situa-se em alto nível, e, em
cotejo com as obras clássicas de Cornu, Hubner, Nunes e Edwin Williams, se tem
menor aprofundamento da matéria em certos pontos, compensa-o por uma visão mais
ampla e uma base mais explícita de linguística geral. Acresce a exposição clara,
metódica e atraente, muito superior à apresentação compacta de Cornu, ao estilo
difuso e descosido de Nunes e à secura de formulação de Hubner e Williams.
Também gostaríamos de
reconhecer-lhe sobre aquelas obras a vantagem de um enfocamento novo, de base
estruturalista e funcionalista; mas Ismael de Lima Coutinho não tomou para
divisa a frase vergiliana – “Tentanda via est”. Preferiu o caminho, já
bem palmilhado, aberto pelas elucubrações neogramáticas. Daí, só em nota (e de
maneira muito rápida e incompleta, que nem leva em conta a escola
norte-americana) o referir-se marginalmente ao conceito de fonema, sem procurar
aproveitá-lo no texto, numa aplicação que lhe estaria sugerida, por exemplo, na
“Economie...” de Martinet e na “Entwickelung...” de Helmut Lüdke, trabalhos que
não inclui em sua Bibliografia.
É, porém, uma regra salutar, no
trato dos livros, a de não exigir de uma boa obra aquilo que ela não pretendeu
nos dar e apenas julgá-la pelo que ela quis ser.
Louvemos, portanto, sem maiores
restrições, esta “Gramática Histórica”, que soube ser tão ricamente
informativa, bem orientada, bem planejada e segura dentro do quadro tradicional
em que voluntariamente se colocou.
2.4.4.
Polêmicas. “Santo Ismael”
Podíamos pingar aqui o ponto final
deste já estirado artigo. Porém, o leitor de algumas respostas de Ismael
Coutinho a críticas à sua Gramática Histórica estranhará o tom polêmico,
a destoar da imagem que se formou do “Santo Ismael”, como diziam seus confrades
da Academia Brasileira de Filologia, e do perfil que traçamos do Homem. O
próprio Ismael Coutinho confessou em mais de um texto ser “por índole, avesso a
polêmicas”. Neste que estou consultando – um manuscrito aí da década de 30 – diz
ipsis verbis:
A experiência atesta que, nessas
contendas, nem sempre os litigantes são movidos pelo desejo de chegar à verdade.
O que neles frequentemente se observa é a luta de paixões contrariadas, dos
interesses em jogo, obnubilando por tal maneira a razão, que lhe não permitem
ver, com serenidade, o lado de que está a verdade.
Mais de vinte anos depois, em 1955,
na resposta ao professor Silveira Bueno, a mesma atitude:
Em retribuição ao seu procedimento
comigo, procurei ser urbano com S. Ex.ª. Tive a preocupação de não o magoar em
nenhum passo de minha resposta. A verdade tem em si mesma força bastante para
levar a convicção aos espíritos. Não são necessários outros expedientes. Se uma
ou outra expressão me saíram mais fortes, creia-me S. Ex.ª que as deve atribuir
antes ao estado de ânimo de quem julga um dever inalienável a defesa do
patrimônio de suas ideias, do que ao propósito deliberado de molestar ou
atingir, mesmo de leve, a pessoa do crítico.
As polêmicas entre nós,
infelizmente, quase sempre descambam para o terreno das descomposturas e das
retaliações pessoais. Como se dizer desaforos e atassalhar a honra alheia fossem
argumentos capazes de dispor alguém a aceitar uma tese ou ponto de vista!...
Educadores, cumpre-nos ser serenos, e não, oferecer à mocidade o espetáculo
degradante de paixões recalcadas. Combatamos os erros, se é que os há, mas
amemos, acima de tudo, os homens, consoante o conselho de Santo Agostinho: “Diligite
homines, se interficite errores...”
O juízo crítico sobre o mérito das
questões levantadas caberá a quem se dispuser a ler as críticas e as respostas.
Afinal, a manifestação livre de opinião é um direito que temos de admitir. O
ponto que desejo ressaltar é que o professor Ismael Coutinho considerava “um
dever inalienável a defesa do patrimônio de suas ideias”, sem o propósito de
atingir “a pessoa do crítico” – o que adquire dimensão especial quando se trata
de um homem que, comprovadamente, fez de sua vida um exemplo de fidelidade à
formação que recebeu, de dignidade profissional e, sobretudo, de amor à verdade.
Seus críticos reconheceram-no. De
dois deles leio agora testemunhos de grandeza e de isenção. Um, o professor
Mansur Guérios, em carta de 21 de março de 1956, lastimando “continuar a
discordar do amigo” em alguns tópicos, diz:
Creia-me, prezado colega, creia-me
que a breve apreciação aos seus “Pontos” na revista “Letras” não
teve absolutamente a intenção de menosprezar a obra, nem tampouco, de
desconsiderar a sua pessoa, que muito prezo e honro, com amizade que vem desde
há anos. Sinto muitíssimo eu haja chocado o amigo, mas insisto em declarar-lhe
não esconder malícia naquelas observações.
O outro testemunho e da professora
Albertina Fortuna, em documento de 18 de agosto de 1965:
O episódio da crítica que me fez
Ismael Coutinho me tornou mais grata a esse professor...
... a última vez que lhe falei foi
para ouvi-lo dizer-me que estava preparando um trabalho (creio que sobre a obra
de Terêncio), para concorrer ao concurso na Faculdade.
Achei-o extraordinário. Com mais de
60 anos, o professor ilustre, que não precisava de esforço para ser considerado
e ouvido por todos, ainda estudava, trabalhava para produzir algo útil, ainda
zelava pela dignidade do seu espírito e pelo bom nome entre os intelectuais
fluminenses e brasileiros.
Quanto ao autor deste artigo, não lhe
desagrada esse tom polêmico, porventura menos santo de Ismael de Lima Coutinho;
talvez porque assim o ache mais humano, mais próximo de sua humana fraqueza, já
que não pôde ser seu discípulo em todas as virtudes, nem pôde viver uma vida
summa cum laude, como seu mestre.
3.
Conclusão
Ismael de Lima Coutinho, “dono de
sólida cultura, que procurava esconder através de espontânea e límpida modéstia”,
tornou-se admirado, e querido, como professor e como cidadão – por sua decidida
vocação para o magistério, que exercia como sacerdócio e pelo exemplo de
cidadania que marcou sua passagem em funções administrativas no serviço público
estadual e municipal.
Deixou sobre isso muitos inéditos de
grande importância para um juízo mais seguro de suas ideias e para a compreensão
do contexto histórico em que foram escritos: um homem de formação humanística,
sempre atento às inovações e mudanças de seu tempo.
Quanto ao Homem, os testemunhos acima
referidos não deixam dúvidas sobre a extraordinária figura humana que era.
Com relação à Obra, Ismael de Lima
Coutinho tornou-se conhecido como o autor dos Pontos de Gramática Histórica,
ainda hoje de grande aceitação nos meios universitários, ao lado da
História e Estrutura da Língua Portuguesa, de Joaquim Matoso Câmara Jr.,
porventura seu sucedâneo estruturalista. Mas é preciso considerar a contribuição
linguístico-filológica, dispersa em revistas especializadas ou inédita, que
arrolamos neste artigo e pretendemos reunir em publicação, talvez não muito
distante.
Esperamos que o leitor da
Gramática Histórica, com os subsídios que lhe oferecemos neste preito ao seu
autor, além de se beneficiar do conteúdo da obra, exposto com clareza e
agradável linguagem didática, também se beneficie do exemplo que nos legou o
professor Ismael Coutinho de dignidade profissional, de constância nos estudos,
de preservação da cultura humanística e de culto à língua portuguesa,
considerada em todos os seus períodos históricos e em todas as suas variedades.
Rosalvo do Valle
(UFF)
NOTAS:
Segundo Matilde Slaibi Conti, em seu discurso de posse na Academia
Niteroiense de Letras, de cuja cadeira Ismael de Lima Coutinho é o
patrono, “Wanderlino Teixeira Leite Netto relata em seu livro
A Dança das Cadeiras:
‘Conhecedor dos modelos literários como poucos e da língua portuguesa
como raros; dedicou sua vida à defesa do idioma pátrio. Foi alfabetizado
por Lourença Guimarães, grande educadora do norte fluminense’.” Esse
discurso está disponibilizada na página
http://www.nagib.net/variedades_artigos_texto.asp?tipo=41&area=3&id=433
Talvez desconhecedor do veio artístico de que também se nutria Ismael de
Lima Coutinho, “Renato
de Lacerda, o poeta que Rio Bonito deu ao Brasil, num soneto, assim
descreve Ismael Coutinho, como lembra a acadêmica
Matilde Slaibi Conti, no discurso referido em nota anterior:
Simpático, corpulento, corado
de pele fina e boca bem pequena
é professor há muito consagrado
pela cultura de eloquência plena.
O idioma pátrio ensina com agrado
esta do Lácio, língua tão amena
belezas apontando entusiasmado
enquanto os erros com vigor condena.
Aulas, livros, discursos, conferências
tem dado em pedagógicas sequências
no portentoso mundo juvenil.
Assim, com patriotismo trabalhando,
o nível de instrução vai elevando
para a suprema glória do Brasil.”
Disponível em: <http://www.nagib.net/variedades_artigos_texto.asp?tipo=41&area=3&id=433>.
Acesso em: 21-01-2011.
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