HOMENAGEADO DO XV CNLF
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

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ISMAEL DE LIMA COUTINHO
O HOMEM E A OBRA[1]

 

1.   O Homem

1.1.  Homenagens no centenário de nascimento

No dia 12 de maio deste ano [de 2000], o autor do afortunado compêndio Pontos de Gramática Histórica – professor Ismael de Lima Coutinho – estaria comemorando o seu centenário de nascimento. Lamentavelmente, não o temos mais entre nós, desde aquela trágica manhã de 24 de julho de 1965, em que morreu em acidente com o carro que dirigia, em São João da Boa Vista, estado de São Paulo.

Esse 12 de maio não poderia passar despercebido a quantos tivemos o privilégio de conviver com essa extraordinária figura humana, que se impunha naturalmente, sem esforço, à admiração de todos nós, pelo saber, pela prudência, pela cordialidade – enfim, pelas virtudes que identificam a nobreza espiritual de certas pessoas. A Academia Brasileira de Filologia prestou-lhe merecida homenagem em sessão especial no dia 27 de maio, quando o autor destas linhas falou sobre A Vida e a Obra do Prof. Ismael de Lima Coutinho. No dia 4 de dezembro, o Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, por iniciativa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, também homenageou o seu ex-titular de língua e literatura latina com a Jornada Ismael Coutinho de Estudos Diacrônicos numa rica programação que se estendeu das 9 às 17 horas, com quatro mesas-redondas. Além da Jornada, deu-se à sala de conferências e eventos culturais do Instituto de Letras o nome de Sala Ismael Coutinho, com a presença de dois dos sete filhos do homenageado: o advogado e procurador do Estado, José Tavares Coutinho, e o médico José Carlos Tavares Coutinho.

Confluência está indissociavelmente ligada à figura desse grande mestre através dos professores integrantes da Diretoria do Instituto de Língua Portuguesa, da Revista, do Conselho Consultivo e de muitos colaboradores, que se associam às homenagens a quem muito fez pela língua portuguesa, pela romanística e pelos estudos clássicos.

 

1.2.  Meu mestre Ismael Coutinho

Conheci o professor Ismael de Lima Coutinho, ou simplesmente Dr. Ismael, como lhe chamávamos, em 1942, quando fui seu aluno de português no 4º ano ginasial [9º ano do ensino fundamental], no Colégio Brasil, em Niterói, então capital do Estado do Rio de Janeiro. Segundo os programas oficiais vigentes, o 4º ano era destinado ao ensino de gramática histórica. Dr. Ismael adotou os seus Pontos, já em 2ª edição, 1941, e com invejável senso didático, aliado à empatia que estabelecia com os alunos, conseguiu tratar de toda a matéria do compêndio, com a ajuda paralela do latim, ministrado, para felicidade da turma, pelo professor Horácio Pacheco, excelente e inesquecível mestre.

No triênio 1943-44-45, continuei seu aluno, de grego, no curso colegial clássico, que Dr. Ismael ministrou religiosamente três vezes por semana, à tarde, apesar de sua intensa atividade docente no ensino oficial e no particular, em Niterói e no então Distrito Federal, além dos encargos como chefe de Gabinete da Prefeitura de Niterói. Para ele, o magistério era um sacerdócio, a que se dedicava como um missionário. E o professor, que forma alunos, foi-se tornando o mestre, que forma discípulos.

Com aquele guia, e atento a seus conselhos, senti que poderia prosseguir seguro o caminho que já me traçara: ser professor e cursar letras clássicas. Aumentou-me a motivação o ter conhecido, por essa época, lá mesmo no Colégio Brasil, outro grande professor de latim e grego, amigo íntimo do Dr. Ismael – Baltazar Xavier de Andrade e Silva –, de gratíssima lembrança, que concluía quando eu iniciava, em 1946, o Curso de Letras Clássicas na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Nunca mais me afastei desses dois exemplos vivos de inteireza moral e dignidade profissional. Em 1949, ainda no curso de Didática, recebi o maior galardão de minha carreira docente: o convite do professor Ismael Coutinho para ser seu assistente de língua e literatura latina na Faculdade Fluminense de Filosofia, de Niterói. De lá até sua morte, sempre o acompanhei nas programações universitárias, consultei-o sempre e, muitas vezes – quando me permitiam as atividades docentes em Niterói e no Rio – ouvi suas arguições em concursos para catedrático ou livre-docente. Devo-lhes, ainda, a entrada no Círculo dos Cipiões de letras e estudos humanísticos no Rio de Janeiro: a Livraria Acadêmica, naquele tempo o endereço oficial da filologia.

O leitor há de relevar estas considerações inevitavelmente em primeira pessoa, como a remoer memórias. É que ao falar de Ismael Coutinho, antes de entrar nos dados concretos do curriculum vitae, que sei obrigatórios num artigo como este, prefiro seguir a fina sensibilidade de Aires da Mata Machado Filho e simplesmente entregar-me “sem restrições nem ambages, ao suave prazer da admiração”.

Valia a pena transcrever o belo artigo em que o eminente professor mineiro retrata com rara fidelidade o perfil do nosso homenageado. Sofreando este desejo, transcrevo alguns trechos.[2]

Ainda mais que o autor, em Ismael de Lima Coutinho há de estimar-se o homem. Na sua presença, algo misterioso prendia o interlocutor: talvez a voz que trazia o numeroso coração no metal da inflexão matizada de quem só sabia falar bem dos outros; talvez o riso franco, sem reticências nem malícia, senão a mesma alegria a transfundir bondade; certamente a efusão de simpatia, capaz de influir nos mais arredios e nos menos afins com a sua grande alma. Da evocação dessa lembrança nutre-se a saudade que hoje toma conta de seus amigos, que afinal foram quantos de perto o conheceram.

Retidão – eis a outra palavra que se lhe associa à personalidade.

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Afinal, por que desvairada razão, costumamos dizer todo o bem das pessoas conhecidas só depois da sua morte? Louvor, nessas condições, é triste. Vem misturado com a dor da saudade sem remédio.

De coração alegre e ânimo leve, digamos, antes, essas verdades, tanta vez consoladoras de injustiças, a respeito dos amigos ainda em condições de lhes sentir os efeitos na alma engrandecida. Humano e justo será entregarmo-nos, sem restrições nem ambages, ao suave prazer da admiração.

 

1.3.  Dados Biográficos

No manuscrito autógrafo “Documentos apresentados ao Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para provimento da Cátedra de Latim”, de 15 de janeiro de 1962, o professor Ismael Coutinho apresenta um curriculum vitae sumaríssimo. Trata-se da documentação exigida para aproveitamento no Serviço Público Federal, quando a Faculdade Fluminense de Filosofia, instituição particular, foi agregada à recém-criada Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1960) – hoje Universidade Federal Fluminense, desde 1965 – e passou a denominar-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Das indicações biográficas constam os seguintes dados:

Nome: Ismael de Lima Coutinho

Filiação: José Coutinho de Carvalho e Amélia Mascarenhas de Lima Coutinho.

Data de nascimento: 12 de maio de 1900.

Local de nascimento: Paraoquena, município de Santo Antônio de Pádua, Estado do Rio (sic).

Quanto à formação escolar e profissional:

Curso Secundário: exames parcelados feitos no Liceu de Campos e no Ginásio Municipal de Santo Antônio de Pádua (1918-1927).

Curso Superior: Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (ano de 1932) – Diploma registrado na Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Saúde, sob o nº 9034, Livro D-10, Folha 20.

Surpreende-nos que não haja referência ao curso do Seminário de São José, de Niterói – o que, porém, não escapou a D. Hélder Câmara, relator do parecer nº 400/53 do Conselho Nacional de Educação, que diz in fine: “Sabe-se, no entanto, que Ismael Coutinho tem curso completo de seminário e pode ensinar latim e literatura latina. Pode ser aceito”.

Hoje, porém, o biógrafo de Ismael Coutinho dispõe de rico material inédito, manuscrito, datiloscrito (como alguns preferem), ou mesmo disperso em jornais e revistas escolares – material doado ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense pela professora Maria Teresa Coutinho Robert, filha, assistente, e ex-diretora do Instituto. O precioso acervo está na maior parte arrolado pela professora Ivanise do Socorro Ferreira Cartier, licenciada em português-francês, que em 1994, ainda monitora de crítica textual da Dra. Deila Conceição Perez, entregou-se com desvelo a uma primeira leitura e seleção dos textos. É um levantamento inicial a exigir releitura mais detida e pesquisa paciente para uma divulgação feita sob critérios críticos, agora que a crítica textual, introduzida nos cursos de Letras da UFF pelo professor Maximiano de Carvalho e Silva, conta com especialistas experientes e de alto nível. Só a pasta C. Discursos e Palestras contém quarenta e cinco textos e exigirem datação, identificação de referências históricas etc., importantes para a recomposição do momento histórico em que foram produzidos.

O acervo permitirá a elaboração de um memorial do professor Ismael Coutinho, nos moldes do documento que as instituições de ensino superior em boa hora passaram a exigir em concursos públicos.

Um dos documentos inéditos mais importantes é o discurso lido no Instituto de Educação de Niterói, quando o professor Ismael de Lima Coutinho foi homenageado com a inauguração de seu retrato no salão nobre. É um comovido agradecimento, em que, homem discretíssimo, sempre zeloso de sua intimidade, Ismael Coutinho pela primeira vez, parece-me, descerrou o velário de seu passado[3] e, de coração aberto, fez um retrospecto de sua vida – uma confissão pública de encantadora singeleza e sinceridade.


 

1.4.  Os três momentos de sua vida

Esse depoimento nos permite ver em sua biografia três momentos fundamentais. O primeiro, em Paraoquena, o arraialete em que nasceu e viveu até os dezessete anos. O segundo, no Seminário São José, em Niterói, onde estudou até 1926. O terceiro, daí em diante quando, egresso do seminário, dedicou-se à família, ao magistério e à vida pública.

Resumirei esse texto, com base na versão datilografada, de doze páginas, revista pelo autor – versão que não reproduz integralmente o manuscrito autógrafo. Aspearei sempre as transcrições:

 

1.4.1.  Infância e juventude em Paraoquena

Ainda criança, aos oito anos, Ismael Coutinho, o segundo dos cinco irmãos, teve de trabalhar como “vendedor ambulante de pão” para ajudar a família, em face de uma paralisia pertinaz que acometera seu pai. A mãe, exemplo de mulher forte, católica, de inabaláveis convicções religiosas, passou a coser para fora, para não lhes faltar o pão de cada dia. Ismael Coutinho foi sempre “o seu companheiro fiel, o seu braço direito, nessas horas de aflição”.

Aos nove anos, outra provação recaiu sobre a família. Uma noite, foi acordado pelos gritos desesperados do pai, que, ainda paralítico, não podia fugir do incêndio que lhe chamuscava o leito... “e, mais um minuto, a grande tragédia estaria consumada.” O menino, com a ajuda dos vizinhos que acorreram logo, conseguiu salvar o pai. A mãe e os irmãos salvaram-se também, mas a família perdeu tudo. Por alguns anos, viveu a expensas de amigos e parentes, e do que podia obter com o seu trabalho.

Porém, depois de cinco anos “de duros padecimentos, em que a própria lucidez do espírito lhe fora arrebatada pela terrível doença, que zombou da perícia e saber de não poucos especialistas” – após cinco anos, o pai começou a melhorar. Ismael Coutinho, aí pelos treze anos, foi trabalhar na casa comercial de que o pai se tornou sócio-gerente. Aos poucos foi-se restabelecendo o patrimônio que o incêndio destruíra. Caixeiro da firma, sua instrução não ia além “das quatro operações e do ditado, com algumas irreverências ortográficas”[4]. Decidiu instruir-se mais, e adquiriu, “não sem custo, os livros indispensáveis ao estudo rudimentar das ciências mais necessárias: gramática, aritmética e história”. E assim fez sua educação básica, estudando à noite, “depois que cessava toda a agitação na casa comercial”.

De compleição franzina, alto e muito magro, as continuadas noites de vigília o deixavam cada vez mais abatido e com a saúde a exigir cuidados especiais. O pai descobriu tudo e, para protegê-lo, passou a desligar a luz de seu quarto. O jovem teve de restringir as horas de leituras noturnas, limitando-se a estudar apenas gramática (“Era uma devorador de gramáticas”), mesmo assim driblando a vigilância paterna com velas que escondia debaixo do colchão e acendia para ler, quando o pai desligava a luz.

A vontade inabalável de estudar venceu, afinal, a resistência do pai e do sócio, que lhe concederam algumas horas fora do balcão, para frequentar um curso que o professor José Pinto de Sousa fundara há pouco, ministrando as matérias do curso secundário, inclusive latim. Esse professor “colendo mestre, cheio de bondade e de sabedoria”, iniciou-o no latim e ainda melhor o orientou no bom estudo do português, mostrando-lhe que “a língua não se aprende nas gramáticas, mas nos bons autores”. Levou-o à leitura, “a princípio dos clássicos, depois dos outros”. De tal maneira marcou sua formação, que Ismael Coutinho, já um autor consagrado, diria publicamente: “A ele quero render, neste momento, o meu preito de gratidão, porque fez de mim aquilo que eu queria ser – modesto professor da língua nacional”.

De par com livros “profanos”, leu também “livros religiosos, práticas, sermões, panegíricos” que lhe deixaram no espírito “uma profunda impressão”. Embora a princípio buscasse nessas páginas “exclusivamente a boa linguagem”, à leitura de Vieira, Bernardes, Frei Luís de Sousa, Mont’Alverne, o seu coração “ia-se pouco a pouco penetrando das verdades cristãs e dos exemplos heroicos da vida dos santos. “Dentro em breve tais verdades e tais exemplos haveriam de levá-lo à decisão de seguir a vida religiosa.

 

1.4.2.  O Seminário de São José

Pelos dezessete anos, embarcou para Niterói, para ingressar no Seminário de São José.

É o segundo grande momento de sua vida.

O Seminário de São José plasmou a formação integral de Ismael Coutinho em “quase um decênio de reclusão”.

Lá, entre as augustas paredes do Palácio da Soledade, tão cheias de recordações da minha juventude, longe do bulício do mundo, vivendo só para Deus e para os meus estudos, passei os mais agradáveis dias da minha vida. Lá retemperei os nervos, fortaleci o coração, robusteci o cérebro, para os duros combates que tive de sustentar cá fora.

Orações, leituras, acurado estudo de latim e grego... tudo isto com o privilégio de ter sido um dos filhos espirituais e secretário particular de dom Agostinho Benassi, o admirável pastor de almas, conhecido e amado em Niterói por sua piedade. A ele Ismael Coutinho se refere como “um santo cujo nome deve acordar, no seio da família católica fluminense, uma profunda saudade e ser sempre pronunciado com os joelhos em terra”... “foi ele, este santo bispo, que não conhecia obstáculos à sua caridade cristã, quem me abriu as portas do seu Seminário e que me revelou, na prática de todas as virtudes, que a santidade ainda existe na terra”.

De trabalhos específicos de sua formação sacerdotal só encontramos três. São dissertações sobre teses da doutrina católica, tais como “phoenomena diabólica” (magnetismo, espiritismo e hipnotismo); a análise conveniente do Actus Fidei e como chegar à fé; e a infalibilidade do papa decorrente de sua autoridade como Sumo Pontífice. Os três têm o julgamento “summa laus”, o conceito de excelência.

No seminário não esmoreceu o velho desejo de ser “professor da língua nacional” do jovem “devorador de gramáticas”, assíduo leitor dos bons autores. Ao contrário, dispondo de condições excepcionais para estudar, o seminarista intensificou suas leituras sobre a língua portuguesa, como comprovam cadernos de anotações diversas, de Notas de português e de Poemas e Artigos publicados, do tempo do Seminário São José, 1922 e 1924. O último reúne – além de seis sonetos e três textos em prosa (às vezes com o pseudônimo de João das Chagas) – reúne, dizíamos, quatro pequenos artigos de crítica a afirmações de Cândido de Figueiredo em O que se não deve dizer, publicados em O Município, jornal de Lavras (MG), em 1924. Esse jornal registra em 20/01/1924: “Há dias que nossa cidade tem o prazer de hospedar o inteligente jovem Ismael Coutinho... o distinto moço vem cursando com raro brilhantismo o Seminário de Niterói...”.

O “inteligente jovem” seminarista costumava passar férias em Lavras, na casa da irmã mais velha, casada com um engenheiro da Rede Sul-Mineira de Viação. Pouco antes de ordenar-se, com sérios problemas de saúde e não se julgando “um daqueles pauci electi, a quem o Divino Mestre confere virtudes especiais para o ministério santo”, Ismael Coutinho decidiu deixar o seminário. Mesmo “egresso do santuário”, não lhe faltou a mão protetora de dom Agostinho Benassi, que o recomendou por carta ao diretor do Colégio Sílvio Leite, no Distrito Federal, e assegurou ao ex-seminarista o primeiro emprego no magistério, em 1927-1928.

 

1.4.3.  Fora do Seminário

É o terceiro momento, o momento definitivo, em que Ismael Coutinho realiza sua vida no plano familiar, no magistério e nas funções públicas que exerceu. Em qualquer dessas feições, ele exerceu seu apostolado com a formação que trouxe do seminário, e sempre íntegro, quero dizer inteiro, o mesmo sempre, como chefe de família, como professor, como homem público.

Casou-se em 22 de maio de 1929, em Aparecida do Norte (SP), com dona Catarina Tavares de Lacerda, a partir daí Catarina Tavares Coutinho, da família Tavares de Lacerda, proprietária da pensão onde o jovem professor e acadêmico de direito se hospedava em Niterói. Desde essa data, dona Mimi foi a companheira inseparável de trinta e seis anos de dedicação e amor, cujos frutos são hoje, sete filhos, trinta e dois netos e quarenta bisnetos. Estava ao seu lado naquela trágica manhã de 24 de julho de 1965. Conseguiu salvar-se e viveu oitenta e oito anos, até 30 de março de 1992, quando morreu, em Niterói.

 

1.5.  Vocação para o magistério. Carreira docente

Embora fosse bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, Ismael Coutinho nunca advogou. Sua vocação era o magistério, e magistério não como “simples missão social”, e sim como “um verdadeiro apostolado”. É uma afirmação constante tanto nos discursos de paraninfo, quanto nos discursos de inauguração de grupos escolares como Secretário de Educação.

Iniciou sua carreira docente – já dissemos – no Distrito Federal, no Colégio Sílvio Leite, onde trabalhou dois anos (1927-1928). Voltou a Santo Antônio de Pádua e lecionou português, latim e filosofia no famoso colégio do professor Lavaquial Biosca. Em 1928 conquistou em concurso público uma cadeira de português no Liceu de Humanidades de Campos (RJ). Em 1930 transferiu-se de Campos para Niterói, como catedrático de português e literatura no Liceu de Humanidades Nilo Peçanha e Escola Normal.

Já residente em Niterói desde 1929, aqui lecionou em vários colégios particulares: Colégio Brasil, Colégio Bittencourt Silva, Instituto de Humanidades (depois Colégio José Clemente), e Colégio Icaraí. Em 1936/37 foi aprovado no concurso para professor do Ensino Técnico Secundário do Distrito Federal. Ao se aposentar, em 1962, era professor de português e latim no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.

No ensino superior, foi um dos incentivadores da criação da Faculdade Fluminense de Filosofia, de Niterói, e seu primeiro diretor, como consta da “Ata da 1ª Reunião da Congregação da Faculdade Fluminense de Filosofia”, realizada em 12 de abril de 1947. Tendo sido nomeado Secretário de Educação e Saúde, comunicou à congregação a impossibilidade de assumir a direção, propondo o nome do professor Durval de Almeida Batista Pereira para substituí-lo. Ao deixar a Secretaria de Educação, a pedido e em caráter irrevogável, assumiu plenamente a cadeira de língua e literatura latina, que lecionou até 1965.

 

1.5.1.  Participação em Comissões Examinadoras

Este item merece destaque nas atividades docentes de Ismael Coutinho.

Além de participar de bancas examinadoras de concurso para professor do ensino secundário oficial, o professor Ismael Coutinho, pelo prestígio e respeito que conquistou no meio universitário, integrou também muitas comissões examinadoras de concursos para catedrático e livre-docente.

Era de ouvir sua arguição segura, profunda, mas sem ostentações, sempre serena. Lia minuciosamente as teses, anotava-as e redigia em tiras de papel almaço seus comentários, sempre ricos de informações, às vezes preciosas achegas, muitas até hoje dentro das teses. Com os candidatos de alto nível sabia manter um diálogo de igual padrão. Aos menos doutos, generoso, oferecia-lhes oportunidade de sobressaírem, de modo que sua presença era tranquilizadora, por seu equilíbrio, sua prudência e pelo respeito à pessoa do candidato.

No curriculum vitae de 1962, relacionou as seguintes comissões:

1) de Filosofia da Universidade do Brasil (1945);

2) Concurso para a Livre-Docência da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1948);

3) Concurso para a Cátedra de História da Literatura Latina da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado de Minas Gerais (1956);4) Concurso para Livre-Docência de Filologia Românica da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1957);

5) Concurso para a Cátedra de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1959);

6) Concurso para a Cátedra de Filologia Românica da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1958);

7) Concurso para a Cátedra de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1960);

8) Concurso para a Cátedra de [Latim, Português?] do Liceu Nilo Peçanha, de Niterói (1941);

9) Concurso para a Cátedra de Português do Liceu de Humanidades de Campos – RJ (1945);

10) Concurso para a Cátedra de Português do Colégio Pedro II, Rio (1958);

11) Concurso para a Cátedra de Latim do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro (1950).

Esta relação está incompleta, pois sabemos de várias outras participações. Também as datas nem sempre coincidem com as que constam das teses.

Aos especialistas, aos que convivem com o magistério e, sobretudo, àqueles que assistiram a esses concursos, a lista apresentada é significativa. Como, porém, Confluência alcança um público diversificado, que inclui jovens estudantes de graduação e pós-graduação em Letras, vale a pena relacionar as obras examinadas, como, pelo menos, uma contribuição à historiografia dos estudos filológicos e linguísticos no Brasil – promissora linha de pesquisa que já conta alguns trabalhos de valor. Algumas das teses, em sua forma original, ou com alterações adequadas à publicação, ainda hoje são de consulta obrigatória, ou mesmo a única referência sobre o assunto.

Cito as que consultei, dando-lhes numeração correspondente à dos concursos:

1) Ernesto Faria. Persio – estudo literário e lexicográfico (1945);

2) Joaquim Matoso Câmara Jr. Contribuição para uma estilística da língua portuguesa;

3) Aída Costa. Influências helênicas no teatro de Plauto (A “Aulularia”), (1954);

4) Matilde Matarazzo Gargiulo. A “Questão da Língua Italiana” no século XVI, (1954);

5) Albino da Bem Veiga. Virgeu de Consolaçon (1959);

6.1) Augusto Magne. O mais antigo documento da língua francesa (1955);

6.2) Serafim Pereira da Silva Neto. O problema do latim pré-românico (1955);

7) Heinrich A. W. Bunse. Aspectos linguísticos e etnográficos no município de São José do Norte (1959);

10.1) Carlos Henrique da Rocha Lima. Uma preposição portuguesa (Aspectos do uso da preposição “a” na língua literária moderna) (1954)[5];

10.2) Evanildo Bechara. Estudos sobre os meios de expressão do pensamento concessivo em português (1954)[6];

10.3) Olmar Guterres da Silveira. A “Grammatica” de Fernão D’Oliveyra – Apreciação – Texto reproduzido da 1ª edição, 1936 (1954);

10.4) Petrônio Mota. Raul Pompeia e “o Atheneu” (Ensaio de interpretação psicanalítica e estilística) (1954);

10.5) Vittorio Bergo. Aspectos lógicos, analógicos e estilísticos da transitividade verbal (1954);

11.1) Carlos Juliano Torres Pastorino. De pestilate in Lucreci poemate (1950);

11.2) Dioclécio Leite Macedo (D. Hilário Leite Macedo, OSB). Ensaio sobre as figuras retóricas do “Apologeticum” de Q. S. F. Tertuliano (1950);

11.3) Sílvio Elia. Os elementos osco-umbros no vocabulário latino (1950).

Não consta da relação o concurso para Doutoramento em Letras Clássicas (Língua e Literatura Grega) na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em que foi aprovada a professora doutora Guida Nedda Barata Parreiras Horta, com a tese As imagens de S. João Crisóstomo, na Homilia sobre o incompreensível (1958). Sé encontramos a arguição, invariavelmente redigida em tiras de papel almaço. Também não encontramos outras teses, algumas importantíssimas, que sabemos examinadas pelo professor Ismael. É provável que estejam na Coleção Ismael Coutinho, título dado à sua preciosa biblioteca, adquirida pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na administração do autor deste artigo (1966-1968), hoje integrante da Biblioteca Central da UFF no campus do Gragoatá, em Niterói.

 

1.6.  Administração pública: um exercício de cidadania

No final da Resposta a um Crítico (II) (Prof. Mansur Guérios), diz Ismael Coutinho: “Estive, é fato, alguns anos afastado das “lides magisteriais”, pagando o tributo filial de fluminense à administração de meu Estado...” (op. cit., p. 55-56).

Este tributo foi, a meu ver, um penoso exercício de cidadania para um homem que, confessadamente, gostava de ficar no seu canto, com sua família, com seus livros; ou, então, gostava de dar aulas, de conviver com seus alunos.

Foi chefe de gabinete da Prefeitura de Niterói no tempo do Prefeito [João Francisco de Almeida] Brandão Júnior [1941-1944]; foi secretário de educação e saúde (1947) no governo do coronel Edmundo de Macedo Soares e Silva; foi presidente do Conselho Estadual de Educação (1958).

No exercício desses cargos, não traiu o perfil, conhecido de todos, de respeito à criatura humana, de defesa intransigente da verdade. Tudo isso está patente nos discursos em que deixou seu ideário sobre educação, dignidade profissional, democracia, defesa da família, responsabilidade do governo para com o povo, direitos dos pais e liberdade dos filhos, patriotismo, papel do livro na defesa da cultura, importância da formação didática (ele era autodidata!), etc., etc.

Apesar de conotações políticas que esses cargos oficiais inevitavelmente carreiam, Ismael Coutinho muitas vezes se opôs a certas soluções “políticas”. Amicus Plato, sed amica veritas. Entre Platão e a verdade, não tinha dúvidas. Foi assim, por exemplo, com um deputado estadual, a quem escreveu uma carta enérgica de quatro folhas datilografadas, em 5 de agosto de 1947, rebatendo acusações que julgou infundadas ao secretário de educação. É um texto importante, de que transcrevemos dois pequenos trechos:

Antes de pingar o ponto final nesta já tão estirada carta, quero cientificá-lo... de que não tenho grande apego ao cargo de secretário, embora seja ele tão elevado, que nunca sonhei de um dia vir a ocupá-lo, digo-o sem falsa modéstia. Entretanto nele me acho investido pela nímia bondade desse homem providencial [o coronel Edmundo de Macedo Soares e Silva...].

Aqui, por conseguinte, estou e continuarei a estar, enquanto lhe merecer a confiança. Mas de uma coisa sou extremamente cioso e dela jamais abrirei mão – da minha dignidade. Não tenho fortuna, se é que se entende por fortuna apenas o dinheiro e a posse de bens materiais. A única riqueza que possuo é o patrimônio de um nome honrado que herdei desde o berço, e pretendo legar aos meus filhos, indene de qualquer eiva.

Não admira que Ismael Coutinho viesse a pedir demissão, em caráter irrevogável, apesar de insistentes recusas do governador, e voltasse às suas aulas.

 

1.7.  Associações Culturais

Ismael Coutinho era membro e fundador da Academia Brasileira de Filologia, desde 26 de agosto de 1944, onde ocupava a cadeira número 15, cujo patrono é Júlio Ribeiro[7]. Na Academia Fluminense de Letras ocupou a cadeira número 42, patronímica do bispo Francisco Lemos de Faria Pereira Coutinho. Pertenceu ainda à Sociedade Brasileira de Romanistas.

 

1.8.  Colaboração em Revistas

Nos anos dourados dos estudos filológicos, aí pela década de 50, foi colaborador da Revista Brasileira de Filologia, da Livraria Acadêmica, tendo figurado entre os diretores (a partir da morte do professor Serafim da Silva Neto), em companhia de Antenor Nascentes, Joaquim Matoso Câmara Jr. e Sílvio Elia (vol. 6, tomo I, junho, 1961). Também escreveu na Revista Filológica e em Escola Secundária, revista do Ministério da Educação e Cultura.

Suas publicações estão citadas adiante.

 

1.9.  Aquela trágica manhã...

Aposentado, Dr. Ismael gostava de sair estrada afora com dona Mimi, para visitar os filhos e os muitos netos que enchiam de alegria o coração dos avós, numa lua de mel itinerante que, afinal, o merecido otium cum dignitate lhes propiciara.

Naquela manhã de 24 de julho, de tristíssima lembrança, – horrendum dictu! – perdemos o mestre inesquecível.

Divulgada a tragédia, a imprensa do estado do Rio de Janeiro e de outros estados publicou ampla matéria sobre a vida e a obra do professor Ismael Coutinho. O Dr. Clóvis Robert, seu genro e admirador, reuniu, com extremo cuidado, um vasto noticiário, de que nos estamos valendo. Eis a relação dos jornais: O Fluminense, Niterói (RJ); Diário Fluminense; Diário de Notícias, Rio (RJ); A Cidade de S. João, São João da Boa Vista (SP); Diário de S. Paulo; Jornal do Commercio, Rio; Correio Fluminense, Niterói; O Diário, Belo Horizonte (MG); A Comarca, Mogi-Mirim (SP); Tribuna do Povo, Araras (SP); Correio da Manhã, Niterói; A Folha, Pinhal (SP); Niterói Católico; O Alarma, Itaperuna (RJ); Lar Católico, Juiz de Fora (MG). Também o Boletim da Sociedade de Língua Portuguesa, de Lisboa, nº 8-9, agosto-setembro de 1965, registra na primeira página seu voto de pesar.

Consta, ainda, da “Memória do Prof. Ismael Coutinho” organizada por Clóvis Robert, a correspondência dirigida à família por instituições oficiais e particulares, por amigos e colegas brasileiros e estrangeiros, por alunos e ex-alunos, e por familiares. Em todos os textos, a palavra de conforto e o invariável testemunho de apreço à cultura e à retidão de caráter de Ismael Coutinho.

Foram-lhe prestadas grandes homenagens pela alta administração do Estado e do Município:

1) o governador, general Paulo Francisco Torres, decretou que o Instituto de Educação de Niterói passaria a se chamar Instituto de Educação “Professor Ismael Coutinho” (Decreto nº 11.913, de 26/07/1965);

2) a Assembleia Legislativa dedicou o expediente da sessão de 3 de agosto “à memória do insigne Prof. Ismael Coutinho”;

3) o Poder Judiciário, através do presidente do tribunal do júri, Dr. Jovino Machado Jordão, emitiu um extenso voto de pesar, publicado no Correio Fluminense de 01/08/1965;

4) o prefeito municipal de Niterói, Dr. Emílio Abunahman, deu o nome de rua Professor Ismael Coutinho à “artéria que dá acesso para a Faculdade de Filosofia, com início na rua Dr. Celestino” (Decreto nº 1602 de 23/07/1966);

5) mais recentemente (11/06/1982), a câmara municipal de Santo Antônio de Pádua concedeu o Diploma de Medalha de Honra ao Mérito Visconde da Silva Figueira “Ao Ex.mo Sr. Prof. Ismael de Lima Coutinho, “in memoriam”, por sua valiosa participação em vários setores de nosso Município”.[8]

Do vasto noticiário, é justo destacar o de O Fluminense, mesmo quando o tempo foi tornando menos sofrido o terrível golpe. Esmerou-se a seção Prosa e Verso na publicação das matérias que Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa souberam dosar com fina sensibilidade e apurado senso jornalístico. Da edição de 01/08/1965, por exemplo, constam: o artigo de Marcos Almir Madeira, Verbo e coração vernáculos (Ismael Coutinho ou o livro e o lar), trechos inéditos do homenageado e depoimentos de especialistas e intelectuais: Albertina Fortuna, Antenor Nascentes, Artur Torres, Aurélio Buarque de Holanda, Cândido Jucá (filho), Durval Batista Pereira, Francisco Bittencourt Silva, Guilherme Duque Estrada de Morais.

Em outro texto pretendo relacionar os artigos e pronunciamentos mais extensos, que sirvam de fontes de referência a estudos sobre Ismael Coutinho.

Outras homenagens são de instituições ou associações culturais a que Ismael Coutinho pertencera, como as da Academia Brasileira de Filologia, na sessão ordinária de 07/08/1965 e na especial de 28/08/1965; e a do Conselho Estadual de Educação.

A Academia Brasileira de Filologia realizou em 28 de agosto de 1965, no salão nobre do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, uma sessão especial dedicada a seu ilustre membro e fundador. O autor deste artigo, falando como ex-aluno, mal pôde ler seu texto “Meu mestre Ismael Coutinho”, publicado em O Fluminense de 09/10/1965. Lembra-se, porém, de que o orador oficial, acadêmico Modesto de Abreu, emocionadíssimo, ao evocar uma amizade iniciada em 1926, chegou a confessar que, embora não afeito a orações, sentia vontade de rezar pelo amigo falecido. Naquele salão nobre, onde tantas vezes o professor Ismael Coutinho se fez admirar por suas arguições, naquele salão nobre, parecíamos sentir-lhe a presença, ouvir-lhe a voz paternal, serena. E a sessão se arrastava penosamente num doloroso réquiem. A lâmpada, que há pouco se apagara, todos ainda a sentíamos quente dentro de nós.

Trinta e cinco anos depois, no centenário de nascimento de Ismael de Lima Coutinho, a Academia Brasileira de Filologia comemorou com aleluias a vida e a obra do saudoso homenageado. Agora, sim, podíamos todos exultar como num cântico de ação de graças, e dizer, sem falsa retórica, que Ismael Coutinho, a exemplo de São Paulo, cristãmente “combateu o bom combate, terminou sua carreira e guardou a fé”.

Certamente já recebeu sua coroa de justiça.

 

1.10. Um Ismael Coutinho desconhecido

Não estaria concluído o retrato de corpo inteiro do Homem sem uma faceta que só agora conhecemos.

A leitura do acervo do Instituto de Letras revela-nos uma outra feição, até agora não referida, do professor Ismael Coutinho: a feição literária. A princípio, relutamos em acrescentar este item, por só termos notícia de poesias ismaelinas pela professora Maria Teresa Coutinho Robert, algumas ditas de cor. Julgávamos tratar-se desses cometimentos literários que todos um dia perpetramos, como poetas bissextos, para familiares, amigos íntimos, ou para nós mesmos.

Ocorre, porém, que desde seminarista, aí por 1922 – 1923 – 1924, Ismael Coutinho escreveu, em Niterói, e publicou no já citado O Município, de Lavras (MG), sonetos e pequenos textos em prosa, às vezes com o pseudônimo de João das Chagas.

No referido caderno de “Poemas e Artigos publicados”, encontram-se as seguintes publicações: a) sonetos: “Minha Mãe”, “Natal”, “Soror Teresinha”, “Retorno” (publicado em “Lira”, Resende – RJ), “A cigarra” e “Conselhos Paternos”; b) em prosa: “Ruínas” (João das Chagas) e “Almas Penadas” (idem).

Datados de dezembro de 1926, todos compostos em Belo Horizonte, há cinco poemas manuscritos: “Quando o teu vulto passa”, “A H. L. F.”, “Esfinge”, “Amor e Receio” e um soneto sem título. Há composições poéticas posteriores, datadas (08/05/927), ou não.

Bem mais recente (de Belo Horizonte, 05/02/1957), é o poema que “o vovô Baé” escreveu para a primeira neta, “À minha netinha Branca”.

Não pude consultar outros preciosos cadernos de poesias, guardados pela família como se guardam relíquias.

Além do que foi dito, o João das Chagas chegou a planejar um livro com o título de Contos Ingênuos, com índice, de que encontramos seis textos: “O Negro Eugênio” (escrito especialmente para “O Jornal”), “O Velho Tropeiro”, “O Benedito”, “Tio Jacinto”, “O Santo Eremita” e “A Pedra Lisa”.. [15]

 

2.       A Obra

Em artigo publicado em 1966, o autor destas linhas escreveu o seguinte: “A obra de Ismael Coutinho, contrastando flagrantemente com a sua intensa atividade cultural, é pequena... Nem é Ismael Coutinho, na história dos estudos filológicos no Brasil, um exemplo isolado desses mestres que ensinaram muito, mas pouco escreveram”.[9] Leodegário A. de Azevedo Filho foi mais feliz, ao dizer, em 1975, que a “obra que nos deixou não é extensa, embora intensa”[10].

É que, de modo geral, pensa-se apenas nos Pontos de Gramática Histórica, sua obra-mestra. A leitura dos artigos dispersos, aqui relacionados, e de alguns textos inéditos já referidos naquele artigo de 1966 ou acrescentados agora – que pretendo reunir numa próxima publicação – dará ao leitor condições de ajuizar bem da extensão e da intensidade da obra do professor Ismael de Lima Coutinho, obra, fique bem claro, de natureza linguístico-filológica, ou relacionada a estudos clássicos.

 

2.1.  Publicações

2.1.1.  Livros e Teses

1927-  Método de análise lógica. Rio de Janeiro: Tipografia Aurora, H. Santiago. Reimpressão em 1928, data registrada na capa, mantendo-se, porém, na folha de rosto a data de 1927.

1928-  As criações internas do idioma. Tese sorteada para o concurso à 1ª Cadeira de Português do Liceu de Humanidades de Campos (RJ). Rio de Janeiro: Tipografia Aurora, H. Santiago (mimeo.).

1928-  A crase. Tese de livre escolha, apresentada à Congregação do Liceu de Humanidades de Campos (RJ), para concurso à 1ª Cadeira de Português. Rio de Janeiro: Tipografia Aurora, H. Santiago (mimeo.).

1936-  Pontos de gramática histórica. Niterói: Papelaria e Livraria Acadêmica. É, com alterações, a matéria dos sete itens introdutórios da edição de 1938, números 1-62.

1938-  Pontos de gramática histórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Esta edição mereceu duas recensões críticas, de Sousa da Silveira e de José Pedro Machado, que vão transcritas parcialmente, adiante.

A obra teve sucessivas edições, a saber:

1941, 2ª edição, melhorada. Companhia Editora Nacional, São Paulo. O autor fez algumas alterações como, entre outras: retirou os sinais convencionais; suprimiu do capítulo Constituição do Léxico Português “Elementos Gregos”, nº 119, p. 74-84; substituiu no capítulo Fonética fisiológica, o item “Grupo vocálico”, por “Semivogais”, enriquecendo o atual nº 198; transcreveu o Decreto-Lei nº 292, de 23/03/1938 (“Regras para acentuação gráfica”), do Ministro Gustavo Capanema; na bibliografia incluiu as obras recentes de Serafim da Silva Neto.

1954, 3ª edição, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro. Passa a integrar a Bibliografia Brasileira de Filologia, com o título, na capa, de Gramática Histórica.

1958, 4ª edição, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro. Retomou, com alterações, os “Elementos Gregos” do léxico português e acrescentou o capítulo sobre perfeitos fortes. Registre-se a contribuição de Antônio Geraldo da Cunha, “jovem e brilhante filólogo”, na revisão das provas tipográficas. Esta edição foi recenseada magnificamente por Joaquim Matoso Câmara Jr., texto que transcrevemos integralmente adiante.

1962, 5ª edição, revista e aumentada, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro. É a última em vida do autor, que diz no prefácio ter procurado autenticar as “numerosas citações”, e ter feito “alguns acrescentamentos e correções”.

1967, 6ª edição, organizada e apresentada por Rosalvo do Valle, Livraria Acadêmica. Rio de Janeiro.

1976, 7ª edição, revista; organizada e prefaciada por Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Ao Livro Técnico S/A, Rio de Janeiro. É o primeiro volume da Coleção Linguística e Filologia. Hoje, a obra está em 17ª edição, publicada também por Ao Livro Técnico.

Esse livro afortunado mereceu, de alguns especialistas, crítica muito elogiosa, como, de outros, crítica menos favorável, a que o autor deu respostas extensas, que registramos a seguir.

 

2.1.2.  Artigos, Recensões, Prefácios e Respostas a críticas

As publicações que conhecíamos datam dos anos 40. Agora, porém, temos de recuar até 1924, em face de pequenos artigos esparsos que encontramos no jornal O Município, de Lavras (MG), como já foi dito, e que outras contribuições de 1931, de que também só agora tomamos conhecimento.

1924-  Desfazendo um equívoco[11]artigo em que retifica a afirmação de Cândido de Figueiredo sobre o étimo de “Mariano”: “Mariano, propriamente falando, é adjetivo de Maria”. Diz Ismael Coutinho: “Maria teve sua vulgarização com o advento do cristianismo. Mariano, porém, já circulava antes do aparecimento do cristianismo; portanto, a conclusão lógica é que Mariano não se deriva de Maria, mas de Mário. “Frades marianos”, “congregação Mariana”, está dito. A derivação aqui é clara, logo denotada pelo intuito religioso dessas fundações. Maria é a sua protetora, dela tiram o nome”. (O Município, 03/02/1924)

1924-  Motivos frágeis – artigo em que aponta fragilidades e inconsistências dos motivos alegados por Cândido de Figueiredo sobre a correta pronúncia de vocábulos como “rapsódia”, “palinódia”, “prosódia”, “salmódia” etc. E conclui assim: “Eu, por mim, se fosse consultado sobre a palavra rapsódia, responderia que se pronuncia rapsódia, pelo simples motivo de ser a pronúncia de toda a gente, que é, segundo o velho conceito de Horácio, a quem pertence o direito de falar: Jus et mos loquendi” (O Município, 03/02/1924)

1924Em torno de uma pronúncia – artigo em que defende a pronúncia “Quilôa”, contra “Quíloa”, proposta por Cândido de Figueiredo. Transcrevo o final: “Devemos pronunciar Quíloa ou Quilôa? Pronunciem lá como quiserem. Eu vou na onda com os que pronunciam Quilôa. Estou errado? Não importa. Enquanto não vierem razões mais fortes...” (O Município, 10/02/1924)

1924-  Em torno de uma derivação – discute a afirmação de Cândido de Figueiredo de que “devemos escrever letra e não lettra, porque a palavra nos veio do latim litera, que se deriva de litura, com pequena modificação.” Depois de citar Forcellini (Lexicon Totius latinitatis), Prisciano, Scaliger, Vossius e Burgraff, discutindo “conjecturas formuladas”, conclui: “Exponha-se como certo o que é certo e como controvertido o que está sob controvérsia.” (O Município, 24/02/1924)

1931-  Em Ideal, “Revista mensal de Ciências, Artes, Letras, Mundanismo etc. – Publicada sob os auspícios dos Professores do Colégio Brasil”, de Niterói (RJ), o professor Ismael Coutinho assinava uma seção intitulada Consultório Linguístico, em que respondia a consulentes. A revista tinha como redator-chefe o professor Sílvio Júlio de Albuquerque Lima, eminente hispanista e futuro catedrático de História da América da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Só encontramos três números (julho, agosto e setembro-outubro de 1931).

Parece-nos que a revista prosseguiu, a julgar por um texto manuscrito de doze páginas, sem data, redigido para o Consultório Linguístico, em resposta ao mesmo consulente, um tal “Sr. Lúcio”.

1931-  Em Nova Geração, “Órgão dos corpos docente e discente do Liceu ‘Nilo Peçanha’ e Escola Normal de Niterói”, ano 1, número 1, p. 3-4, em Nótulas de Linguagem há um pitoresco artigo a propósito de “greve” e “parede” (“fazer parede”), rico de informações semânticas com base em Darmesteter, que o professor Ismael Coutinho termina assim: “Ao pechisbeque francês, preferimos o ouro velho do nosso parede”. Infelizmente, não temos notícia de outros números de Nova Geração.

A partir de 1941, as publicações são conhecidas:

1941-  Uma achega etimológica. In: Miscelânea de estudos em honra de Antenor Nascentes, Rio, 1941, p. 61-64. A propósito da etimologia de acabrunhar.

1941-  Réplica oportuna. In: Revista Filológica, ano II, maio, nº 6, Rio, p. 46-54. Resposta a críticas da professora Albertina Fortuna Barros sobre a formação do infinitivo “pôr’. A professora respondeu com Tréplica oportuna.

1941-  Dois vocábulos aparentados. In: Revista Filológica, nº 10, setembro, Rio, p. 15-17. Sobre a etimologia de borco e emborcar.

1941   Um vocábulo de difícil etimologia. In: Revista Filológica, nº 11, outubro, Rio. Sobre a origem de faro.

1954-  Os gramáticos latinos[12]. In: Anuário da Faculdade Fluminense de Filosofia, Niterói (RJ), p. 111-118. Estudo reproduzido, por intermediação do professor Artur de Almeida Torres, em Revista de Portugal, XXX, 1965.

1955-  A propósito de minha Gramática Histórica. In: Revista Brasileira de Filologia, vol. 1, tomo 1, junho, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p. 27-51. Resposta a críticas do professor Silveira Bueno, publicadas no Jornal de Filologia, 5º número, São Paulo, 1954.

1955-  Resposta a um crítico. In: Revista Filológica, nº 4, ano I da II fase, agosto e setembro, Rio de Janeiro, p. 45-58. Primeira parte da resposta a críticas do professor Mansur Guérios, publicadas na revista Letras, órgão da Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná, nº 2, agosto, 1954.

1955-  Recensão crítica: “Angelo Monteverdi – Manuele di avviamento agli studi romanzi: Le lingue romanze, casa ed. Francesco Vallardi, Millano, 1952, in 8º, 256 ps”. In: Revista Brasileira de Filologia, vol. I, tomo 2, dezembro, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p. 217-219.

1956-  Recensão crítica: “Albert Blaise – Manuel du latin Chrétien, Strasbourg, 1955, 221 págs. In 8º”. In: Revista Brasileira de Filologia, vol. 2, tomo I junho. Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, p. 127-129.

1956-  Resposta a um crítico (II). Final da resposta ao professor Mansur Guérios. In: Revista Filológica, ano II da II fase, 1º semestre, Rio de Janeiro, p. 43-56.

1958-  Prefácio de Bíblia Medieval Portuguesa – I Histórias d’abreviado Testamento Velho, segundo Meestre das Histórias Scolasticas. Texto apurado por Serafim da Silva Neto, INL, Rio de Janeiro, p. 5-9. O prefácio está datado de 28 de agosto de 1954.

1959-  Sugestões Metodológicas para a Execução do Ensino de Português. In: Escola Secundária, nº 11, dezembro. Revista da CADES (Campanha do Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário), MEC, Rio de Janeiro, p. 54-64.

1964-  A desinência do acusativo do singular do Indo-Europeu. In: Romanitas, ano II, Vol. 2, Rio de Janeiro, p. 41-45.

1966-  Prefácio de O Modernismo brasileiro e a língua portuguesa, de Luís Carlos Lessa, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, p. VI-IX. O prefácio está datado de 17/12/1964.

 

2.2.  Trabalhos inéditos datados

1952-  Recensão crítica de “Gladstone Chaves de Melo Iniciação à Filologia Portuguesa, Organização Simões, 1951 Rio”.

1964-  Estremunhado – Estudo em que propõe para “estremunhar” o étimo stramoniare de stramonium, “estramônio”, “veneno enérgico cujos efeitos se denunciam por uma sonolência letárgica que se combate especialmente com vinagre e outros ácidos”.

1964-  A vida amorosa de Horácioconferência lida na Sociedade Brasileira de Romanistas.

1964-  O “z” no antigo latim. Estudo em que defende a existência do “z” no latim arcaico, invocando, diante do silêncio da maioria dos gramáticos latinos, o testemunho de Vélio Longo e Marciano Capela; Algumas inscrições; o etrusco, o osco-
-umbro e o falisco; e modernos estudos de fonética, ortografia e epigrafia latinas.

 

2.3.  Trabalhos inéditos não datados

1-   Parricida Discute sete hipóteses sobre a origem do elemento pari- ou parri-, já que o elemento final –cida, da família de caedo, “matar”, não oferece dificuldades.

2 -  História de uma palavra. A propósito da etimologia de persona, focalizando o problema no latim e nas línguas românicas, menos o romeno, que não conhece o vocábulo.

3 -  Parassíntese. Texto manuscrito, de cinco folhas, em que se refere ao não acolhimento pela Nomenclatura Gramatical Brasileira do termo “parassintético”, e estuda esse processo de formação vocabular.

4 -  Resposta, incompleta, a José Pedro Machado, referida adiante.

5 -  Consultório Linguístico. Manuscrito de treze páginas como resposta a um consulente sobre porque e por que.

6 -  Em torno de uma origem. Notas sobre a etimologia de “nojo”.

7 -  Notas sobre a etimologia de “escorregar”, “estro” e “escalfar”.

8 -  Aula inaugural de período letivo sobre o conceito de Gramática, seu lugar no ensino da língua e a melhor orientação a seguir.

9 -  Recensão crítica de Fontes do Latim Vulgar, de Serafim da Silva Neto, 1ª edição, ABC, Rio, 1938.

10- Recensão crítica de Desfile de Cigarras, poesias de A. Tavares de Lacerda, Editora Pongetti, Rio.

11- Sobre a diferenciação linguística entre Brasil e Portugal. Manuscrito de doze páginas em que tece comentários à quarta conferência “do erudito Sr. Lagden” [Henrique Lagden], ora concordando, ora discordando de suas considerações.

Nos últimos anos, o professor Ismael Coutinho vinha trabalhando intensamente no texto da Andria, de Terêncio, que seria sua tese para a antiga cátedra de língua e literatura latina. Há um rico material sobre fatos gramaticas e estilísticos da obra, sobre vocabulário e muitas anotações à métrica de Terêncio. Lamentavelmente, os latinistas têm de se contentar com essas anotações e comentários esparsos.

 

2.4.  Sua Obra-Mestra

Para concluir este item sobre a obra, não posso deixar sem merecido destaque a repercussão de sua obra-mestra, com os elogios e as críticas que recebeu. Com relação ao bom acolhimento dos Pontos de Gramática Histórica, transcrevo três recensões críticas, parcial ou integralmente.

 

2.4.1.  Recensão crítica de Sousa da Silveira

A primeira é a do mestre de todos nós, Sousa da Silveira, publicada na Revista de Cultura, ano XII – 1938, Vol. 4 – junho/de-zembro, Rio de Janeiro, p. 266-269. Omito as observações pormenorizadas.

Em lindo volume de 358 páginas de nítida impressão e combinação de tipos agradabilíssima à vista mais exigente, temos, da Companhia Editora Nacional, mais um lindo trabalho sobre a língua portuguesa, útil a alunos e a professores.

Contém os pontos de gramática histórica do programa do Colégio Pedro II, com alguns acréscimos que o autor julgou oportunos, e que, a meu ver, valorizaram bastante o livro quanto à sua finalidade didática.

Tenho lido, de alguns anos a esta parte, escritos de professores ou candidatos a professores de português em que se nota apreciável substância linguística ou filológica, mas péssima redação: a falta de gosto, o desleixo mesmo, a incorreção, o desprezo das boas normas da língua escrita avultam, prejudicando bastante, com esta falha artística, o mérito científico do trabalho. Tive a satisfação de verificar que tal não é o caso do presente compêndio escolar do professor Coutinho: neste, a boa doutrina transmite-se em boa linguagem portuguesa.

Não há ninguém, creio eu, que tendo de dar nova edição de um trabalho de certo fôlego, como é o do professor Coutinho, não se veja obrigado a dar-lhe alguns retoques. Com o intuito de ajudar o autor nessa nobre tarefa, sem esgotar a lista dos pontos que eu lhe poderia indicar como necessitados de revisão, aqui lhe chamo a atenção para os seguintes:

...........................................................................................................

A impressão geral que me deixou a leitura do volume do professor Ismael Coutinho foi excelente. Penso que – doutrina segura, erudição discreta (coisa bem rara!), clareza, linguagem fluente e correta, equilíbrio, encadeamento lógico na exposição – são qualidades que o tornam dos mais belos e dos mais recomendáveis que, no gênero, se têm publicado entre nós.

N prólogo da 2ª edição, 1941, Ismael Coutinho externou seu reconhecimento às críticas de Sousa da Silveira:

Entre os mestres nacionais, que escreveram então sobre o trabalho é justo salientar aqui, de público, o nosso reconhecimento ao professor Sousa da Silveira que, sem sanha ou cólera, antes com a bondade paternal dos que muito sabem, nos fez judiciosas observações e reparos de que nos aproveitamos na presente edição.

 

2.4.2.  Recensão crítica de José Pedro Machado

A segunda é a resenha do filólogo e lexicógrafo português José Pedro Machado, publicada no Boletim de Filologia, tomo VI, fascículos 3-4, Lisboa, 1940 (embora datada de agosto de 1939), p. 477-481. Esta referência, além de noticiar a repercussão favorável da obra em Portugal, tem o objetivo de divulgar a existência de um texto inédito do professor Ismael Coutinho: uma resposta manuscrita, incompleta, de dez folhas, não sei se enviada ao filólogo português.

Eis alguns trechos dessa longa resenha:

De há muito que se faz sentir a falta de um trabalho em língua portuguesa onde, além dos assuntos relacionados com a gramática histórica, se trate também dos da linguística geral.

Essa falta ainda mais é para lastimar se pensarmos num “manual” onde os principiantes se possam familiarizar, embora levemente, com os grandes nomes, com os grandes problemas.

Julgo que foi de certo modo para suprimir essa lacuna que o professor Coutinho publicou o presente trabalho, que também é o resultado das lições por ele professadas nos estabelecimentos de ensino onde exerceu a sua atividade.

“Nasceu ele de simples notas manuscritas, rubricadas ao sabor do programa oficial sem ordem nem ligação”.

Este trabalho já granjeou alguma popularidade entre os estudantes portugueses. Ainda bem, porque o merece.

Essa popularidade mostra como há muito a esperar do gênero, que aparece já algo desenvolvido nesta obra.

Oxalá que alguém olhe com carinho para ele.

Oxalá também que os mestres saibam auxiliar os estudantes no seu caminho para a compreensão e a concatenação de muitas ideias que andam no ar e que nem todos as apresentam, uns por as ignorarem, outros por partidarismo que muito cheira a século XVIII.

Oxalá!

Como é natural, a obra do professor Coutinho tem passos com os quais não estou em acordo absoluto.

Vou passar a examinar alguns .............................................................

Em resumo: Os Pontos de Gramática Histórica do professor Ismael de Lima Coutinho devem ser lidos por todos.

O seu Autor é pessoa de elevada cultura e de grande capacidade de síntese, o que é raro nos estudiosos deste gênero. Pena é que sua largueza de vistas (com a qual, como disse, concordo em absoluto) não esteja ainda suficientemente espalhada no Brasil e em Portugal e que a sua atividade escolar não lhe permitisse o aperfeiçoamento de certas deficiências, como repetições, deslizes doutrinários etc.

O professor Coutinho parece-me que é daqueles estudiosos de quem muito esperamos. Se se contar com mais alguns nas suas condições (por poucos que sejam) em breve alguma cousa se fará de novo.

Uma última impressão sobre os Pontos: parece-me que seria necessário olhar com um pouco mais de atenção para o português arcaico, não só sob os pontos de vista fonético, morfológico e sintático, mas em especial para o ortográfico.

 

2.4.3.  Recensão crítica de Joaquim Matoso Câmara Jr.

A última é a recensão do professor Joaquim Matoso Câmara Jr., valiosa apreciação por ser a visão crítica de um linguista que também tratou da história da língua, mas sob a ótica do estruturalismo, em História e Estrutura da Língua Portuguesa, Padrão, Rio de Janeiro, 1975, livro que será talvez aquele “sucedâneo de orientação estrutural” dos Pontos de Gramática Histórica, de que sentia falta o professor Carlos Eduardo Falcão Uchôa no estudo introdutório da 7ª edição da obra de Ismael Coutinho.

Eis a íntegra da resenha, publicada na revista A Cigarra, que recebi do professor Uchôa:

Ismael Lima Coutinho é uma das nossas figuras mais respeitáveis nos estudos da filologia portuguesa. Para eles traz, além de um grande conhecimento específico, os seus predicados de latinista e helenista e um amplo domínio bibliográfico, facilitado pela sua capacidade de leitura fluente em alemão, o que lhe dá acesso direto à rica literatura de linguística e filologia românica nesse idioma. A isto se alia grande lucidez e ponderação intelectual, de par com não menos probidade e exação no trabalho.

Assim, a sua “Gramática Histórica”, na feição que adquiriu a partir da 3ª edição, é um guia excelente para os estudantes universitários, os professores secundários de português e os leitores interessados em filologia. Situa-se em alto nível, e, em cotejo com as obras clássicas de Cornu, Hubner, Nunes e Edwin Williams, se tem menor aprofundamento da matéria em certos pontos, compensa-o por uma visão mais ampla e uma base mais explícita de linguística geral. Acresce a exposição clara, metódica e atraente, muito superior à apresentação compacta de Cornu, ao estilo difuso e descosido de Nunes e à secura de formulação de Hubner e Williams.

Também gostaríamos de reconhecer-lhe sobre aquelas obras a vantagem de um enfocamento novo, de base estruturalista e funcionalista; mas Ismael de Lima Coutinho não tomou para divisa a frase vergiliana – “Tentanda via est”. Preferiu o caminho, já bem palmilhado, aberto pelas elucubrações neogramáticas. Daí, só em nota (e de maneira muito rápida e incompleta, que nem leva em conta a escola norte-americana) o referir-se marginalmente ao conceito de fonema, sem procurar aproveitá-lo no texto, numa aplicação que lhe estaria sugerida, por exemplo, na “Economie...” de Martinet e na “Entwickelung...” de Helmut Lüdke, trabalhos que não inclui em sua Bibliografia.

É, porém, uma regra salutar, no trato dos livros, a de não exigir de uma boa obra aquilo que ela não pretendeu nos dar e apenas julgá-la pelo que ela quis ser.

Louvemos, portanto, sem maiores restrições, esta “Gramática Histórica”, que soube ser tão ricamente informativa, bem orientada, bem planejada e segura dentro do quadro tradicional em que voluntariamente se colocou.

 

2.4.4.  Polêmicas. “Santo Ismael”

Podíamos pingar aqui o ponto final deste já estirado artigo. Porém, o leitor de algumas respostas de Ismael Coutinho a críticas à sua Gramática Histórica estranhará o tom polêmico, a destoar da imagem que se formou do “Santo Ismael”, como diziam seus confrades da Academia Brasileira de Filologia, e do perfil que traçamos do Homem. O próprio Ismael Coutinho confessou em mais de um texto ser “por índole, avesso a polêmicas”. Neste que estou consultando – um manuscrito aí da década de 30 – diz ipsis verbis:

A experiência atesta que, nessas contendas, nem sempre os litigantes são movidos pelo desejo de chegar à verdade. O que neles frequentemente se observa é a luta de paixões contrariadas, dos interesses em jogo, obnubilando por tal maneira a razão, que lhe não permitem ver, com serenidade, o lado de que está a verdade.

Mais de vinte anos depois, em 1955, na resposta ao professor Silveira Bueno, a mesma atitude:

Em retribuição ao seu procedimento comigo, procurei ser urbano com S. Ex.ª. Tive a preocupação de não o magoar em nenhum passo de minha resposta. A verdade tem em si mesma força bastante para levar a convicção aos espíritos. Não são necessários outros expedientes. Se uma ou outra expressão me saíram mais fortes, creia-me S. Ex.ª que as deve atribuir antes ao estado de ânimo de quem julga um dever inalienável a defesa do patrimônio de suas ideias, do que ao propósito deliberado de molestar ou atingir, mesmo de leve, a pessoa do crítico.

As polêmicas entre nós, infelizmente, quase sempre descambam para o terreno das descomposturas e das retaliações pessoais. Como se dizer desaforos e atassalhar a honra alheia fossem argumentos capazes de dispor alguém a aceitar uma tese ou ponto de vista!... Educadores, cumpre-nos ser serenos, e não, oferecer à mocidade o espetáculo degradante de paixões recalcadas. Combatamos os erros, se é que os há, mas amemos, acima de tudo, os homens, consoante o conselho de Santo Agostinho: “Diligite homines, se interficite errores...[13]

O juízo crítico sobre o mérito das questões levantadas caberá a quem se dispuser a ler as críticas e as respostas. Afinal, a manifestação livre de opinião é um direito que temos de admitir. O ponto que desejo ressaltar é que o professor Ismael Coutinho considerava “um dever inalienável a defesa do patrimônio de suas ideias”, sem o propósito de atingir “a pessoa do crítico” – o que adquire dimensão especial quando se trata de um homem que, comprovadamente, fez de sua vida um exemplo de fidelidade à formação que recebeu, de dignidade profissional e, sobretudo, de amor à verdade.

Seus críticos reconheceram-no. De dois deles leio agora testemunhos de grandeza e de isenção. Um, o professor Mansur Guérios, em carta de 21 de março de 1956, lastimando “continuar a discordar do amigo” em alguns tópicos, diz:

Creia-me, prezado colega, creia-me que a breve apreciação aos seus “Pontos” na revista “Letras” não teve absolutamente a intenção de menosprezar a obra, nem tampouco, de desconsiderar a sua pessoa, que muito prezo e honro, com amizade que vem desde há anos. Sinto muitíssimo eu haja chocado o amigo, mas insisto em declarar-lhe não esconder malícia naquelas observações.

O outro testemunho e da professora Albertina Fortuna, em documento de 18 de agosto de 1965:

O episódio da crítica que me fez Ismael Coutinho me tornou mais grata a esse professor...

... a última vez que lhe falei foi para ouvi-lo dizer-me que estava preparando um trabalho (creio que sobre a obra de Terêncio), para concorrer ao concurso na Faculdade.

Achei-o extraordinário. Com mais de 60 anos, o professor ilustre, que não precisava de esforço para ser considerado e ouvido por todos, ainda estudava, trabalhava para produzir algo útil, ainda zelava pela dignidade do seu espírito e pelo bom nome entre os intelectuais fluminenses e brasileiros.

Quanto ao autor deste artigo, não lhe desagrada esse tom polêmico, porventura menos santo de Ismael de Lima Coutinho; talvez porque assim o ache mais humano, mais próximo de sua humana fraqueza, já que não pôde ser seu discípulo em todas as virtudes, nem pôde viver uma vida summa cum laude, como seu mestre.

 

3.     Conclusão

Ismael de Lima Coutinho, “dono de sólida cultura, que procurava esconder através de espontânea e límpida modéstia”[14], tornou-se admirado, e querido, como professor e como cidadão – por sua decidida vocação para o magistério, que exercia como sacerdócio e pelo exemplo de cidadania que marcou sua passagem em funções administrativas no serviço público estadual e municipal.

Deixou sobre isso muitos inéditos de grande importância para um juízo mais seguro de suas ideias e para a compreensão do contexto histórico em que foram escritos: um homem de formação humanística, sempre atento às inovações e mudanças de seu tempo.

Quanto ao Homem, os testemunhos acima referidos não deixam dúvidas sobre a extraordinária figura humana que era.

Com relação à Obra, Ismael de Lima Coutinho tornou-se conhecido como o autor dos Pontos de Gramática Histórica, ainda hoje de grande aceitação nos meios universitários, ao lado da História e Estrutura da Língua Portuguesa, de Joaquim Matoso Câmara Jr., porventura seu sucedâneo estruturalista. Mas é preciso considerar a contribuição linguístico-filológica, dispersa em revistas especializadas ou inédita, que arrolamos neste artigo e pretendemos reunir em publicação, talvez não muito distante.

Esperamos que o leitor da Gramática Histórica, com os subsídios que lhe oferecemos neste preito ao seu autor, além de se beneficiar do conteúdo da obra, exposto com clareza e agradável linguagem didática, também se beneficie do exemplo que nos legou o professor Ismael Coutinho de dignidade profissional, de constância nos estudos, de preservação da cultura humanística e de culto à língua portuguesa, considerada em todos os seus períodos históricos e em todas as suas variedades.

 

Rosalvo do Valle (UFF)

NOTAS:


[1] Artigo extraído do número 20 – 2º semestre de 2000, da Confluência: Revista do Instituto de Língua Portuguesa, p. 9 a 35.

[2] Aires da Mata Machado Filho. Ismael de Lima Coutinho. In: O Diário, Belo Horizonte (MG), 5/08/65.

[3] Bela metáfora do professor Rosalvo, que não será bem interpretada por que não souber que “velário” é aquela grande tela que separa o palco da plateia, no teatro.

[4] Segundo Matilde Slaibi Conti, em seu discurso de posse na Academia Niteroiense de Letras, de cuja cadeira Ismael de Lima Coutinho é o patrono, “Wanderlino Teixeira Leite Netto relata em seu livro A Dança das Cadeiras: ‘Conhecedor dos modelos literários como poucos e da língua portuguesa como raros; dedicou sua vida à defesa do idioma pátrio. Foi alfabetizado por Lourença Guimarães, grande educadora do norte fluminense’.” Esse discurso está disponibilizada na página http://www.nagib.net/variedades_artigos_texto.asp?tipo=41&area=3&id=433

[5] Essa tese foi publicada em cd-rom e disponibilizada virtualmente, no ano passado (2010), como parte da homenagem a Carlos Henrique da Rocha Lima. Veja-a AQUI.

[6] Também essa tese de Evanildo Bechara foi publicada pelo CiFEFiL, em um cd-rom com as Cinco Teses de Evanildo Bechara. Confira AQUI.

[7] Com a sua morte, foi sucedido por Matilde Matarazzo Gargiulo; depois, por Raimundo Barbadinho Neto e, agora, por José Mario Botelho.

[8] Talvez desconhecedor do veio artístico de que também se nutria Ismael de Lima Coutinho, “Renato de Lacerda, o poeta que Rio Bonito deu ao Brasil, num soneto, assim descreve Ismael Coutinho, como lembra a acadêmica Matilde Slaibi Conti, no discurso referido em nota anterior:

Simpático, corpulento, corado
de pele fina e boca bem pequena
é professor há muito consagrado
pela cultura de eloquência plena.

O idioma pátrio ensina com agrado
esta do Lácio, língua tão amena
belezas apontando entusiasmado
enquanto os erros com vigor condena.

Aulas, livros, discursos, conferências
tem dado em pedagógicas sequências
no portentoso mundo juvenil.

Assim, com patriotismo trabalhando,
o nível de instrução vai elevando
para a suprema glória do Brasil.”

Disponível em: <http://www.nagib.net/variedades_artigos_texto.asp?tipo=41&area=3&id=433>. Acesso em: 21-01-2011.

[9] VALLE, Rosalvo do. Professor Ismael de Lima Coutinho. Estudos Linguísticos: Revista Brasileira de Linguística Teórica e Aplicada, vol. 1, São Paulo, julho, 1966, p. 37-40.

[10] AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Homenagem a Ismael de Lima Coutinho. In: 7º Congresso Brasileiro de Língua e Literatura. Rio de Janeiro: Novacultura, 1975, p. 9.

[11] Reeditado, na Confluência, nº 20, 2000, p. 36-37

[12] Novamente reeditado em Confluência, nº 20, 2000, p. 38-44, com o título Os Estudos Gramaticais Latinos.

[13] A propósito de minha Gramática Histórica. Revista Brasileira de Filologia, 1955, p. 51.

[14] ELIA, Sílvio. Filólogos brasileiros. In: Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 14/03/1971.

[15]Conseguimos acesso a dois livros manuscritos de poesias de Ismael Coutinho, praticamente prontos para edição, que estamos preparando para publicação na época do congresso. Veja os manuscritos em Bosquejos e Silhuetas. [N.E.]