A PEDRA LISA

 

Naquele tempo, a fazenda da Pedra Lisa não era o carrascal que hoje se contempla com desolação.
No cimo do outeiro, toda caiada de branco, como uma garça alvadia prestes a desferir o voo, constituía para os escravos, um justo motivo de orgulho, quando, de volta das leiras, a descortinavam ao longe, alvejando muito branca, à luz frouxa do ocaso.
Não havia, num raio de dez léguas em redor, outra que fosse tão bem instalada.
Os olhos cobiçosos dos senhores das herdades vizinhas quedavam estarrecidos, admirando-a em silêncio. Sempre que se falava, na roda dos cavaqueadores, em terrenos bem cultivados, lá vinham, em primeira plana, os da Pedra Lisa.
Surpreendê-la à luz clara de uma manhã de sol, era assistir ao espetáculo completo da vida campestre, nas suas várias modalidades.
Escravos desciam o outeiro, com as enxadas ao ombro, em caminho da lavoura, cantando; zagais, de longos cajados e de barjoletas a tiracolo, tangiam o rebanho para o pastoreio, evocando na frauta agreste os gênios incultos dos campos; carreiros em aboios, atrelavam, no curral, os bois pacientes para a faina diária; almocreves, às upas, sobre garranos mal aderençados, congregavam, no terreiro, os muares cadimos, para as longas caminhadas. E toda a fazenda se agitava num movimento incessante de vida e de trabalho.
O engenho de serra, no seu afã contínuo de fender os grossos troncos, rascava, à pressão da água, polvilhando o ar morno de uma poeira fina de madeira serrada.
A cana, premida pelas possantes moendas, tinha contrações espasmódicas de gemidos, abafados, a espaços, pelas canções dolentes dos serviçais do picadeiro.
Nas calhas, rumorejava, defluindo apressada, a garapa espumante.
Das tachas efervescentes, que as escumadeiras afanosas remexiam, elevava-se um cheiro ativo de melado. E o alambique, aos gorgolejos, destilava a aguardente, a mais afamada aguardente da redondeza.
Nas estradas, chiavam os carros, ao passo ronceiro dos bois anafados, povoando de sons fortes e sonoros a calma agreste das matas virgens.
As tropas, chocalhando os guizos barulhentos que afugentavam as aves, subiam as íngremes ladeiras, aprofundando carreiros, em demanda do arraial próximo.
Em torno do bagaço, cheio do zumbido de álulas multicores, que formava, ao lado do engenho, pequenos cômoros, comprimiam0se, azafamadas, as vacas leiteiras, de ubres grandes e pojados, e as ovelhinhas mansas que, à simples voz do pegureiro, seguiam, dóceis e cabisbaixas, para os pascigos verdejantes.
Barbatões anejos desgarravam, abandonando as brenhas versudas, e saíam aos descampados, farejando demoradamente o ar, em espreguiçamentos de moleza, ou arrancavam, em carreira desabalada, corcoveando aos berros, pelos chapadões silenciosos.
Os passarinhos noivavam no beiral da tulha, bem provida e farta, e andavam a fariscar tão despreocupados o terreiro, que não temiam a presença do homem.
A água, correndo na levada, em frisos irisados, sobre leito de cascalhos luzidios, sonorizava as horas taciturnas do descanso.
À tarde, toda a fazenda vibrava ao mesmo tom festivo de vida e de trabalho. Carreiros chegavam, brandindo as longas aguilhadas; almocreves abaçanados, zurzindo as recovas recalcitrantes; pastores pacientes, tangendo, com os compridos báculos, o armento vagaroso; seareiros esbaforidos, de passo lerdo, com os marracos negligentemente pousados ao ombro.
Patrão Velho esperava-os no alpendre, com a sua bonomia proverbial de velho bonachão, para lhes transmitir as ordens relativas ao serviço do dia seguinte. Depois os despedia com as suas melhores bênçãos.
Não havia pai mais solícito para os seus filhos do que patrão para os seus escravos. Mal sabia que algum enfermara – e isso era para ele uma dor sincera e profunda – deixava os seus cômodos e corria desvelado a cuidar dele, passando, às vezes, noites a fio, à sua cabeceira, a propinar-lhe, com extremos verdadeiramente paternais, as mezinhas que a sua longa experiência lhe ditava. E como conhecia bem a arte dos remédios caseiros!...
Não raro se encontrava Patrão Velho a caminhar vagarosamente pelas circunvizinhanças, amparando os convalescentes, a que a debilidade não permitia andarem sem ajuda . E era então um gosto vê-lo assim, todo transfigurado pelo prazer inefável de proporcionar alguma distração aos pobres doentes.
Dizia-se que, em outros tempos, Patrão Velho fora ríspido e cruel para com os escravos, e que aquela mudança de tratamento resultara de uma promessa, feita à esposa moribunda, no leito da agonia. O certo é que ele parecia, pela sua bondade extrema , não ter sido, em toda a sua vida , outra coisa mais que um pai complacente e afetuoso.
Com surpresa de todos, e muitas lágrimas de saudade, uma manhã, Patrão Velho apareceu enregelado, morto, sobre o leito. O que foi, o que não foi, ninguém atinou com a moléstia que o vitimara.
A nova da sua morte espalhou-se rápida e, minutos após, toda a fazenda ecoava aos gemidos lancinantes da escravatura consternada. O que não se chorou nesse dia, santo Deus!
O quarto regorgitava de escravos, na ânsia de, pela última vez, contemplarem aquela face, tão meiga e tão sincera, cujo sorriso era para eles uma bênção de conforto e um estímulo para a vida.
Anciãos [sucumbidos] pelo peso dos anos, com as cabeças de arminho a contrastarem com a cor carregada dos rostos azevichados, cabrochas musculosos, em cujas veias circulava a seiva ardente da juventude; crianças lamurientas que a afluência do povo amedrontava; mucamas desgrenhadas que a desgraça daquele sucesso surpreendera no labor diurno, formavam juntos um concerto doloroso de queixas e gemidos.
Até o gado sentiu a morte de Patrão Velho, até o gado!...
Os bois mugiam sinistramente no silêncio acabrunhador daquela manhã brumosa. Corujas chirriavam, lúgubres.
Órfãos dos seus carinhos, ficavam na terra do exílio, uma filha de criação por nome Marcolina – a luz dos seus olhos –, como todos diziam, e um filho que andava, por esse tempo, a estudar na Corte.
Na impossibilidade de arcar com o pesado ônus da administração – tão inexperiente era – Marcolina escreveu ao irmão que regressasse, quanto antes, à fazenda. Cansado da vida despreocupada de estudante calaceiro, senhor Juquinha achou propícia a ocasião para abandoná-la de uma vez. Pelo que arrumou as malas e partiu.
De coração bom e trato afável, em breve se tornou o ídolo de todos, que viam nele o retrato fiel de Patrão Velho.
O seu governo se não se notabilizou por atos dignos de especial menção, conseguiu, todavia, manter a orientação paterna.
As coisas corriam normalmente na Pedra Lisa, quando se lhe meteu, um dia, em cabeça, ao senhor Juquinha, que se devia casar.
Antes nunca lhe passasse pela mente semelhante ideia!... Se bem pensou, mais depressa realizou o casamento.
Desde então, a fazenda começou a caminhar para trás, para trás, até que deu nesse carrascal arnoso que hoje, desolados, contemplamos. Enchentes, pragas, epidemias, calamidades de toda espécie, surgiram, assolando os campos, vitimando o gado, matando os escravos. As searas, quando as poupava o dilúvio das águas, definhavam roídas por insetos desconhecidos. O gado aboletava-se no curral, a custo se mantendo de pé, com as unhas escorchadas, abertas, a berrar sinistramente ou morria, à míngua de alimento, nos pastos exsicados. Um mal novo derreava o pescoço às galinhas. Onde alguma se deitava, ali mesmo ficava, de asas distendidas, arrepiada, morta. A febre amarela e a varíola desdobravam um véu de luto e de tristeza sobre a senzala silenciosa. Raro era o dia em que um corpo [esgororevinhado], coberto de bostelas não descesse à vala comum. E, às vezes, mais de um no mesmo dia. Os corvos esfaimados pousavam no teto palhiço do lúgubre alojamento dos negros, farejando, ávidos, o cheiro nauseabundo da carne em decomposição. Numa palavra, desde que a esposa do senhor Juquinha assentou pé na fazenda, principiaram a chover as desgraças.
Antes o senhor Juquinha nunca se lembrasse de casar! De mulher como a dele, libera nos Domine. Aquilo era o capeta em forma de gente.
Se o marido, por qualquer circunstância, tinha necessidade de ausentar-se, à volta, era esperado no alpendre pela consorte enciumada, que o minuoseava com uma saraivada de palavrões obscenos. A princípio, o senhor Juquinha replicava e a disputa só se extinguia, quando entrava em cena a demonstração categórica dos pulsos. Mas o senhor moço percebeu logo a inanidade desse argumento. As más línguas já diziam tanta coisa da sua vida privada!... Resolveu-se a calar. Isto serviu de motivo à esposa para mais se assanhar nos seus ataques. Com o tempo, o senhor Juquinha foi0se acostumando, acostumando com o palanfrório desbocado da cara metade (odiada é que era!) até que por fim as suas objurgatórias a incomodavam tanto ou menos que os latidos de vagabunda podenga.
Os escravos tremiam de medo à simples presença da patroa. E os míseros tinham razão. À menor falta, ela os mandava açoutar cruamente, sem dó nem compaixão. Se acontecia ao flagelador, fatigado, diminuir a rigidez dos golpes, ela o incitava com palavras de raiva e de censura:
– Vamos seu palerma. Se não queres que te mande fazer o mesmo, enrija esses músculos e faze esguichar o sangue envenenado dessa peste do diabo! Quero ver-lhe as carnes à ponta do tagante... E não raro ela mesmo se apoderava do chicote e vergastava a pobre vítima.
Aconteceu, certa vez, a uma velha ama deixar cair das mãos, ao soalho, um prato de louça. Em castigo, a senhora manou que lhe aplicassem quinhentas rijas vergastadas. A ordem não foi cumprida à risca, porque a infeliz anciã, combalida já por longa enfermidade, expirou antes que findasse o bárbaro flagício.
Marcolina, pelo seu natural compassivo e maneiras delicadas, sempre pronta a interceder pelos míseros escravos, a desculpá-los em suas faltas, granjeou, desde logo, a mais formal e decidida antipatia da senhora, que lhe não podia perdoar aqueles ares beatíficos de monja. Essa antipatia, sabiam-no todos, era causada unicamente pelo despeito.
A senhora era temida e evitada como se teme e evita um animal feroz, ao passo que Marcolina era o ídolo da casa. Amavam-na as amas como a uma filha dedicada, que mal sabia das suas necessidades, corria, solícita, a remediar-lhas; os anciãos contemplavam nela o anjo benfazejo das senzalas; os crioulinhos saltavam de contentamento, quando a avistavam de longe no terreiro.
Se essas manifestações de simpatia contrariavam a esposa do senhor Juquinha, mais a enfurecia ainda a amizade que este consagrava à infeliz mocinha, coisa aliás muito natural, porque haviam sido criados sob o mesmo teto, como irmãos.
Ansiosa, esperava a senhora um pretexto qualquer para cevar na infortunada jovem o imenso ódio que lhe estava no coração. E foi assim que Marcolina se viu, uma tarde, sem motivo, esbofeteada, na cozinha, em presença de toda a criadagem. Imagine agora o leitor o sofrimento da pobrezinha, que até aquele momento nunca experimentara sequer a dor de um ralho.
Desde esse dia, passou Marcolina a ser uma criada, em tudo semelhante às outras. Tinha obrigações assinaladas que devia cumprir com a máxima pontualidade e exatidão.
E ai! dela, se as não desempenhava no tempo e do modo que lhe era mandado!... Apesar disso, tão boa era que nem uma palavra de queixa ou recriminação lhe saía dos lábios.
Encontrando-a senhor Juquinha, uma vez, a chorar, no corredor, perguntou-lhe, com ternura de irmão, a causa daquela mágoa, o motivo que trazia os seus lindos olhos marejados de lágrimas.
Tanto bastou para que a senhora, que espreitava, enciumada, os menores movimentos de Marcolina, arremetesse, furiosa, contra ela e lhe pespegasse, em pleno rosto, duas sonoras bofetadas.
– Eu bem desconfiava, sua desavergonhada, que me andavas traindo... Agora acabo de convencer-me. Tenho as provas. Presenciei, com meus próprios olhos, a cena infame. É assim, sua não sei que diga, que pagas os benefícios que recebes? Quem havia de dizer que tu, com essa carinha de sonsa... Mas hás de ver quanto te custará o preço desta traição... E o vocabulário fescenino golfou-lhe dos lábios luculentos, numa perluxidade de causar espanto.
Tão imprevista fora a agressão, que o senhor Juquinha, colado ao soalho, atônito, nem tempo tivera para a defender. Em vão, protestou que aquilo era uma infâmia clamorosa, uma calúnia que bradava aos céus...
Mas de que valiam os seus protestos? Só serviram para mais exasperar a consorte, que lhe passou também uma sarabanda, em regra.
À exigência de negócios urgentes, teve o senhor Juquinha de ausentar-se, por alguns dias, da fazenda. Foi esse o tempo escolhido pela esposa, para a bárbara vingança.
Convocou secretamente dois homens da sua confiança, ordenou-lhes que se acoutassem no quarto de torturas, úmido e nauseabundo quarto, que ficava no subterrâneo da fazenda, e logo que aí aparecesse Marcolina, a quem sob pretexto de serviço ia chamar, se atirasse sobre ela , atassem-na bem, montando-lhe guarda.
Esse aposento era destinado à prisão dos escravos delinquentes. Aí passavam meses inteiros, sem lobrigar a luz benfazeja do sol, com alimentação parca e má, expostos ao rigor do inverno, suportando o cheiro enervante de exalações mefíticas, na companhia dos ratos tunantes, dos sapos imundos e morcegos agoirentos, os infelizes que incorriam no desagrado da senhora. Alguns (se) de lá saíam diretamente para a cova. Outros, não menos infortunados, ainda ficavam por ali, algum tempo, arrastando ao sol as carnes intumescidas, hidrópicas, a esperar resignadamente pela morte libertadora.
Ao centro, erguia-se lúgubre, ostentando as negras argolas pendentes, o abominável poste de suplício. Grossos baraços desciam por ele abaixo, esparramando-se em desordem, no chão úmido. O tradicional tronco de ferro descansava pacientemente a um canto. Pelos outros, em confusão, enferrujavam gargalheiras negras, ferropeias sinistras, hórridos anjinhos e híspidas algemas – testemunhas irrefragáveis da sanha brutal dos primitivos senhores da Pedra Lisa .
Do teto acaçapado e fuliginoso, enliçado de teias de aranha, pendiam sogas de couro cru, férulas pesadas e azorragues tricúspides .
Marcolina foi atada , quase nua, exposta aos olhares cúpidos dos homens, com, com os [buços desnartados] a acariciar-lhe os ombros róseos, soltava gemidos de dor, contorcendo os pulsos delicados que o baraço arroxeava. Em torno dela, girovagava, esgarabulhando, a algoz, em atitude hostil.
– Não te disse que me havias de pagar a afronta daquela traição? Não te disse? Pois chegou hoje o dia... Os teus lindos olhos, garanto, não mais hão de seduzir o teu senhor... Que digo? Não mais hão de seduzir a quem quer que seja... E ria, sarcasticamente, batendo as palmas de satisfação.
Desabotoando depois a blusa, tirou do seio um punção agudo , virou e tornou a virá-lo entre os dedos, aos olhos da vítima, bebendo-lhe vagarosamente, no semblante aterrorizado, a impressão de pavor, que lhe causava a contemplação daquele instrumento .
Os alcaiotes que a serviam, alapardaram-se a um canto, horrorizados, a tremer, à luz baça daquele aperto lúgubre . Supersticiosos, como todos os pretos, criam-se em presença de algum gênio tenebroso do mal.
Transfigurada pela sede ardente de vingança, cabelos em desalinho, olhos afuzilando áscuas, tinha a algoz, em verdade, alguma coisa desses trasgos hediondos que, nas horas caladas da noite, povoam a imaginação. Num relance, percebeu-lhe Marcolina o pensamento sinistro.
Num esforço supremo, estirou o corpo para a frente, agitou freneticamente a cabeça e um grito de angústia escapou-se lhe da garganta.
Empunhado pela ríspida algoz, o punção vazava-lhe as célicas pupilas. Dos seus lindos olhos – delícias outrora de Patrão Velho – nada mais restava que duas órbitas vazias e profundas, de onde um humor pulverulento e sanguíneo manava continuamente.
E não parou aí o ódio sanguissedento da fera Górgona. Era preciso que a vingança fosse completa. Os dentes, os lindos dentes tão elogiados de Marcolina – rocais de pérolas a velar-lhe a concha nacarada da boca mimosa – foram extraídos a golpes de profanadora tenaz. Para isso, fora mister ameaçar de morte os homens que lhe recusavam obedecer.
Depois de tal cena de barbaria, satisfeita da sua obra, descerrou a porta, que rangeu soturnamente nos quícios, tornou a fechá-la atrás de si e, como se tudo aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, subiu calma, tranquila as escaleiras da varanda, que um véu de trevas começava a invadir. Deixava à Marcolina o tempo suficiente para se restabelecer e depois apresentá-la-ia ao marido, tal como estava, cega e desdentada. E gozava-se, antecipadamente das caramunhas que ele faria , quando a visse, naquele deplorável estado.
Mas o seu plano sinistro ficou abortado , porque, combalida pelas hemorragias consequentes , Marcolina sucumbiu. E foi com surpresa, que a encontrou, no outro dia, com a cabeça inclinada para o peito, braços caídos flacidamente, hirta, morta.
– Antes assim, ruminou consigo. Não teria mais aquela lambisgoia a obstruir-lhe o caminho...
Cavou-lhe, ela mesma, no chão mádido do aljube, a fria sepultura, deitou nela o corpo da infeliz mártir, atupiu a cova de terra, que socalcada em nível, nem vestígios deixou da escavação passada.
Como o ambiente da estufilha abafasse e o esforço dispendido lhe reclamasse a necessidade de respirar plenamente, saiu ao sol – lindo sol de setembro – sorvendo, em sucessivos haustos, languidamente, vagarosamente, o ar saturado do perfume das flores silvestres.
Borboletas acasaladas tatalavam as asas, trebelhando à luz; abelhas afanadas enchiam o vergel de zumbido de asas; andorinhas, em veraneio, rasgavam a amplidão sonora, galrando festivamente. As ciganas cantavam. Nos descampados , as arapongas retiniam o malho das suas gargantas. Uma aragem macia, entorpecedora, arfava molemente, alisando a cabeleira intonsa das árvores ramalhudas.
Refeitos os pulmões, ao contato acariciante daquele ar rico de oxigênio, a esposa do senhor Juquinha lançou um olhar indiferente à paisagem matinal. Alma feita de ódios e de trevas, não lhe despertou a menor emoção, a beleza surpreendente do painel divino.
Depois encaminhou-se para a escala, ensombrada de trepadeiras, subiu vagarosamente os degraus, ruminando consigo razões falsas, para iludir os reclamos de consciência.
– Não a matara... Por conseguinte, não podia ter remorsos. Castigara-a, é verdade, mas se fosse crime castigar os delinquentes, então... todo o mundo devia estar cheio de remorsos...
Este raciocínio preliminar parece que lhe satisfez aos melindres da consciência, porque, não mais atendendo ao caso, se devotou inteiramente aos serviços domésticos.
O desaparecimento súbito de Marcolina não deixou de levantar suspeitas, que o temor da patroa conteve nos seus justos limites.
Seu Juquinha, de regresso, deu logo pela ausência da moça. Perguntados os criados, não lhe souberam informar. Inquerida a esposa, respondeu com maus modos que Marcolina, cansada de fingir, e já descoberta no seu mau procedimento, resolvera-se, afinal, a abandonar a fazenda. Assim poderia levar folgadamente, às escancaras, longe da presença molesta dos conhecidos, a vida de libertinagem, para que tinha pronunciada inclinação.
Senhor Juquinha, não obstante convencido da pureza de Marcolina, concluiu lá consigo que a fuga era razoável. A gente também se cansa de sofrer. E depois, adeus minhas encomendas, torna-se capaz de tudo, até de fugir de casa...
Decorrida uma semana, não mais se falou nesse acontecimento. Exceto nas senzalas, em que as velhas mucamas choravam sempre inconsolavelmente a ausência de Marcolina.
Um belo dia, as suspeitas que um ou outro timidamente nutria, converteram-se em certeza para todos. Um preto que passara a noite acorrentado no quarto de suplício, contava a toda a gente que vira lá (tão certo como ele estar vivo e são) sinhá Marcolina, cega e desdentada, a jeremiar umas coisas que fazia pena ouvir.
O mistério do desaparecimento tinha agora a sua explicação satisfatória. Sinhá Marcolina estava morta, bem mortinha... De outro modo não se poderia explicar a sua presença naquele lugar.
Desde então, começaram a multiplicar-se as aparições. Afirmaram uns tê-la visto ao alpendre, fronte abatida sobre a almofada, baralhando calmamente os bilros; outros, que ela se lhes mostrara à janela, contemplando, em êxtase, o céu estrelado; outros ainda, que às Ave Maria a haviam encontrado nas aleias ensombradas do pomar.
O que mais surpreendia a todos era a voz langorosa que à noite se elevava do ergástulo sombrio, voz que todos reconheciam ser a de Marcolina, cantando, entre queixas e gemidos, a sua quadrinha predileta:
Alma no corpo não tenho,
Minha existência é fingida,
Sou como o tronco quebrado
Que dá sombra sem ter vida.
Os escravos preferiam a morte a ficarem retidos uma noite no quarto de suplício. Um terror supersticioso dominava-os. Mal anoitecia, acolhiam-se, medrosos, à tepidez de suas palhoças, de onde à noite não havia força que os tirasse. Só pela manhã surgiam fora, para cuidar do serviço diário.
A esposa do senhor Juquinha, perseguida pelo espectro da vítima, lobrigando-a em toda a parte, enlouqueceu. Foi preciso que a encarcerassem. Os seus acessos de loucura eram terríveis. Olhos esgazeados a fagulhar nas trevas, rilhando os dentes, alçava, ameaçadora, os punhos descarnados, e arremessava-se contra um inimigo, que só ela via, ferindo as mãos encarquilhadas nas ripas, que o emboço deixava a descoberto.
Nas senzalas repetiam, persignando-se, as amas:
– Morreu antes do tempo. Anda penando até chegar o seu dia...
As coisas foram piorando , piorando, até que a florescente fazenda da Pedra Lisa deu num carrascal que hoje contemplamos com desolação.
Do meio das ruínas do solar desmoronado, segundo testemunham alguns intimoratos viajantes, ouve-se ainda, nas noites silentes de plenilúnio, acompanhada pela harpa eólia dos ventos, a mesma voz suspirosa cantar doridamente:
______
Alma no corpo não tenho,
Minha existência é fingida,
Sou como o tronco quebrado
Que dá sombra sem ter vida.
Fim.


No manuscrito parece estar escrito muita.

Foram rasuradas as palavras de insetos, que seguiam à palavra alulas.

As palavras sem ajuda substituem a palavra sozinhos, que foi rasurada.

A palavra extrema substitui a palavra comunicativa, que foi rasurada.

A expressão em toda a sua vida, foi acrescentada na entrelinha superior.

A expressão de criação foi acréscimo na entrelinha superior.

Duas linhas foram fortemente rasuradas, tornando-se difícil a sua leitura.

A expressão para a foi substituída por à, rasurando-se a preposição para.

No verso da folha 7, por engano, começou-se novamente a copiar a folha 5, em que consta o fragmento que vai de “a propinar-lhe” até “a percorrer vagarosamente as circunvizinhanças da casa”. Note-se que, apesar de ser cópia do próprio autor, essa segunda versão teria sido diferente.

Rasurou-se o artigo as, sobrepondo-se lhe o demonstrativo esses.

Rasurou-se a palavra Desejo, sobrepondo-se lhe a palavra Quero.

A expressão era temida e evitada como se teme e evita substitui era evitada como se evita, com a sobreposição na entrelinha superior as palavras que lhe foram acrescentadas.

A expressão de longe é um acréscimo na entrelinha superior.

A palavra ainda é um acréscimo na entrelinha superior.

As palavras sequer a dor de um ralho substituem a dor de uma desfeita, com a inserção das palavras sequer e um ralho, sendo estas últimas em substituição às palavras rasuradas.

A palavra cumprir substitui a palavra desempenhar, que foi rasurada.

Sobrepõe à palavra rasurada Mas a expressão Apesar disso, com a vírgula.

A expressão o preço desta substitui o demonstrativo esta, sobrepondo-se na entrelinha superior.

O demonstrativo esse é um acréscimo na entrelinha superior.

O fragmento sob pretexto de serviço é um acréscimo na entrelinha superior.

O pronome ela é um acréscimo na entrelinha superior.

Apesar de acrescentada a palavra se na entrelinha, a frase não foi reorganizada sintaticamente.

Foi rasurada a palavra enferrujam ou enferrujaram que se seguia, antes do ponto final, precedida do travessão.

A palavra tricúspides substitui a palavra trifoliados, que foi rasurada.

As palavras foi atada foram acrescentadas, a lápis, na entrelinha superior.

Trata-se de duas palavras que não foram decifradas.

Esta palavra agudo foi acrescida na entrelinha superior.

À palavra objeto foi sobreposta a palavra instrumento.

Este fragmento à luz baça daquele aperto lúgubre foi acrescido na entrelinha inferior.

A palavra criam, a lápis, na entrelinha superior, substitui a palavra julgam.

As palavras povoam a, a lápis, a primeira, e a tinta a segunda, substituem as palavras [acedemem], na nossa, foros de verdadeira realidade.

A palavra Deixava, a lápis, na entrelinha superior, substitui a palavra Ficava.

A palavra faria substitui a perífrase havia de fazer, que foi rasurada.

A palavra deplorável é acréscimo a lápis na entrelinha superior.

A expressão ficou abortado, a lápis, na entrelinha superior, substitui a expressão rasurada não surtiu efeito.

A expressão combalida pelas, a lápis, na entrelinha superior, substitui a expressão Marcolina, sucumbiu às, que foi rasurada.

As palavras seguintes, Marcolina sucumbiu, foram acrescentadas, a lápis, na entrelinha superior.

A expressão Nos descampados substitui Nas quebradas, em que houve emenda na primeira palavra e rasura da segunda. A palavra descampados está na entrelinha superior.

As palavras ruminando e razões, a lápis, na entrelinha superior,substituem as palavras rasuradas revolvendo e arrazoados, respectivamente.

As palavras os reclamos de substituem, a lápis e na entrelinha superior, o artigo a.

A palavra logo é um acréscimo na entrelinha superior.

As palavras Perguntados os criados, não substituem as palavras rasuradas Perguntou aos criados por ela. Não.

A palavra sempre é um acréscimo a lápis na entrelinha superior.

A palavra é um acréscimo a lápis na entrelinha superior.

A expressão tê-la substitui terem-na, que foi rasurada.

As palavras a haviam encontrado substituem o pronome a encontraram.

Depois dessa quadra, foi rasurada a seguinte frase: “Se a voz lhos não enganava, muito menos a canção, que era a predileta da mocinha.”, sendo rasuradas mais fortemente as palavras lhe (substituída por lhos) e Marcolina, substituída por mocinha.

As palavras uma noite foram acrescidas na entrelinha superior.

A locução à noite é um acréscimo na entrelinha superior.

O autor usa, regularmente, a palavra peior, peiorar etc., ao invés de pior, piorar etc.

 

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011