ALMAS PENADAS

 

Já, por certo, leitor, ouviste falar nas célebres aparições de almas do outro mundo, que a imaginação fecunda dos nossos sertanejos descobre em cada porteira que se levanta no leito dos caminhos, em cada moita que se insula ao contato das outras árvores, em cada encruzilhada que se bifurca, em cada cruz que dilata os seus toscos braços a suplicar do viandante a esmola de uma prece.
Coisas espantosas, coisas de arrepiar o cabelo, se ouvem pelos sertões, contadas sob os mais seguros juramentos, entrecortadas, a cada momento, pelas interjeições de uso comuníssimo entre os sertanejos: "Cruz" Credo" Ave Maria!"
A tropa marchava lentamente ao longo da estrada, no seu passo habitual, ao som compassado e monótono da campainha que tintinabulava suspensa do pescoço da madrinha.
Um dilúvio de sangue coloria as nuvens esbranquiçadas que orlavam a túnica do horizonte, para o lado do poente. Era a agonia do sol.
A um assobio mais forte dos tropeiros, as mulas arrancaram num trote apressado.
Era preciso que chegássemos ao rancho, antes que a noite nos surpreendesse. Dele distávamos seguramente uns oito quilômetros. Atravessávamos agora uma pequena floresta, formada de poucas, mas gigantescas árvores, ao estrídulo zangarreio das cigarras. Os pássaros já se haviam acolhido aos seus ninhos. Apenas, uma ou outra juriti retardatária soltava, suspirosa, às brisas perfumadas da tarde, as endechas sentidas da sua viuvez abandonada.
Era a hora solene do Angelus, hora da tristeza e da saudade.
A alma do tropeiro sente-se nesta hora invadida de um sentimento novo, que ele mesmo não sabe explicar, um misto de alegria e de saudade. Alegria da viagem, porque é viajando que o tropeiro se julga feliz; saudade dos filhos e da mulher que deixou atrás, sem saber quando o seu mister, que é para ele um sacerdócio, lhe permitirá vê-los. O coração se lhe enternece e não obstante o cansaço da imensa caminhada do dia, o tropeiro canta, para espantar as mágoas, como ele diz, na sua linguagem bárbara, mas cheia de poesia, canções de tal poder evocativo e de uma unção tão doce, que as lágrimas nos rebentam dos olhos. Parece que lhe anda na voz a própria alma calada pelos espinhos acerados da saudade. Pobre tropeiro!
Já os curiangos giravam, mirabolavam, aqui e ali, anunciando com o seu pio nostálgico e lúgubre de ave das trevas, a aproximação da noite. Esta chegou, com todo o esplendor de sua majestade olímpica, desenrolando as dobras do seu manto de veludo, recamado de pequeninas pérolas, sobre a crista das montanhas. Chegou mesmo ao tempo em que ganhávamos o rancho.
Com certeza, o leitor já conhece esses improvisados ranchos, erigidos à beira das estradas, para abrigo dos tropeiros.
Quatro roliços esteios, sustentando um teto de sapé, com duas divisões apenas; uma, de estuque, ao fundo, destinada ao descanso dos tropeiros; outra, voltada para o caminho, sem paredes, servindo de depósito para os arreios.
Há um momento em que todos se empenham com ardor igual no trabalho: é no descarregamento das azêmolas. Desapertam-se correias, afastam-se cangalhas, tiram-se cabrestos e tudo é colocado, com regularidade e ordem, no interior do rancho. Aceso o fogo, coisa imprescindível em tais circunstâncias, com gravetos chapotados ali mesmo, começaram os tropeiros a preparar a ceia, que constou, exclusivamente, de carne seca, queijo e uma pouca de farinha. Havia entre eles um, por nome Manoel Tropeiro, velho capataz da fazenda, homem destemido, mas cheio de superstições, que conhecia muitos casos de aparição de almas do outro mundo.
Eu, que ardia em desejos de ouvi-lo, finda a ceia, supliquei-lhe que nos contasse alguma história de almas do outro mundo.
O velho não gostou do pedido, tal como lhe foi formulado. Aquele história soou aos seus ouvidos como alguma coisa de fantástico, que ia tirar, aos seus casos, toda a veracidade que ele lhes emprestava.
Notei-lhe esse movimento instintivo de aborrecimento e logo corrigi:
– Um caso de aparição de almas, bem verídico, desses que o senhor sabe...
Recobrou logo o bom humor habitual. Era o ponto vulnerável do Manoel Tropeiro. Gostava de ser ouvido. Esboçasse o ouvinte, no meio da narrativa, um sorriso de incredulidade e o Manoel Tropeiro logo estourava em invectivas contra ele: Que fosse para o diabo! Que se não acreditava, para que lhe foi pedir que contasse! Que nunca mentiu em sua vida! Que detestava mais a mentira do que a lepra! Que tinha graça, ele, um homem de barba branca, a contar histórias de Carochinha!
Ouvi-lo, porém, com atenção, convicto do que ele contava, era um prazer singular para o Manoel Tropeiro. Desfazia-se todo em circunstâncias de lugar e de tempo; detinha-se em descrever as cenas mais variadas, com uma facilidade de causar admiração; descia às mínimas particularidades; era infatigável.
O pequeno auditório, composto de cinco pessoas, acocorado sobre os calcanhares, esperava ansioso, a palavra autorizada do velho tropeiro.
Manoel repassou, um instante, pela memória, os casos mais sensacionais de aparição, e, feita a escolha, começou a narrativa.
João das Chagas
(Continua.)


Vão aqui as primeiras páginas do conto que o autor publicou no jornal Município, de Lavras – MG, que estão no número que saiu no dia 17 de fevereiro de 1924, com a indicação de que continuaria no próximo número.
Não tivemos acesso ao restante do conto.

 

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