O BENEDITO

 

Era franzino, esguio, pálido. Tinha o ar doentio das crianças que nascem de casais já velhos e passam a vida a lutar contra os apertos da miséria. Pai, não o chegara a conhecer. Não possuía irmãos. A mãe, uma tuberculosa, pouco tempo sobrevivera ao seu nascimento. Três anos, se tanto. Era pequeno, mas lembrava-se bem. Fora por um dia de setembro, de sol claro, cheio de flores e da alacridade esfuziante dos pássaros, que ela, num adeus sentido, fechara para sempre os olhos. Na terra, só lhe ficou a avó, uma velhinha engelhada, cujos cabelos imitavam a brancura imaculada do arminho.
Apesar da sua pobreza laboriosa, mas honrada, – a velha cosia para viver – tomou a seu cargo o cuidado do orfãozinho.
À proporção que ele ia crescendo, ministrava-lhe, carinhosa, as mais salutares lições e conselhos, que mais tarde haviam de habilitá-lo a ganhar, honradamente, o seu pão cotidiano.
Quando andava aí pelos sete anos, a avó propôs-lhe um negócio lucrativo. Ela guardava umas pequenas economias que as suas trabalhosas costuras lhe haviam deixado. Com elas, compraria cocos e açúcar, faria uns doces, que o netinho devia levar à rua para vender. Vendidos, lhe daria uma porcentagem.
Benedito aceitou a proposta, com entusiasmo.
No outro dia, saiu, com efeito, com a bandejinha de doces, na palma da mão, apregoando, na sua voz arrastada de criança anêmica, as finas cocadas que as mãos asseadas da tia Rosalina haviam feito. Todos sabiam que, em negócios de asseio, a tia Rosalina era intransigente. Por isso compravam, sem escrúpulos, as cocadinhas frescas, frescas e boas, que o Benedito lhes oferecia. Em breve, estava com a bandeja vazia. E foi com uma alegria doida, que o Benedito correu a casa, para noticiar o fato à avó.
No dia seguinte, nova bandeja que se esvaziou, com a mesma rapidez da precedente.
Das cocadas, passou tia Rosalina aos doces de leite, de cidra, de banana, marmelo, goiaba. E a freguesia, não mais se contentando com o que saía à rua, fazia suas encomendas diretamente à tia Rosalina. Tantos eram os pedidos que a velha, para os satisfazer, se via em grandes apuros.
Benedito ajuntou um pequeno pecúlio, que as novas vendas, dia a dia, aumentavam. Comprara já umas roupinhas novas, um chapéu novo, umas botinas também novas. Até botinas comprara o Benedito! É verdade que ainda as não calçara, conservando-as, por precaução contra possíveis larápios, bem escondidinhas, no fundo do baú.
A festa não estava longe. Era o dia que escolhera para esticá-las. E todo se deliciava com a expectativa de espanto dos seus companheiros de rua, quando o vissem com aquelas duas joias nos pés, rinchadeiras como não havia outras, a passear no adro da igreja. Para essa ocasião, reservara também uma fatiota nova, talhada de feitio a pôr água na boca dos almofadinhas da vila. Ao menos, assim pensava ele.
Chegou, por fim, o dia tão ansiosamente esperado por Benedito. Chegou e passou como os outros dias. Benedito envergou o seu terno novo, cheirando ainda aos alinhavos recentes, calçou as suas botinas rinchadeiras, andou de tabuleiro em tabuleiro, de mãos nos bolsos como um rico homem, a pagar doces para os conhecidos, e não se desdenhou mesmo de arriscar alguns minguados cobres no caipira. Arriscou e ganhou.
Daquela insípida festa, só lhe ficou o gosto pelo jogo. Até então, não sabia o que vinha a ser aquilo, nunca jogara.
Inexperiente como era, e animado, de mais a mais, pela sorte que lhe sorria animadora, descobriu, logo, no jogo, um meio fácil de enriquecer. Descobriu e entregou-se-lhe de alma e corpo. Primeiro ao caipira, depois à roleta, por último ao baralho.
O hábito do jogo operou nele uma transformação completa. Já não era o mesmo menino, serviçal e meigo, de outros tempos. A criança gárrula de outrora desaparecera; em seu lugar, ficara aquele estafermo, de ar concentrado, sempre metido consigo mesmo.
A ambição de ganhar levou-o à frequência de uma sociedade corrupta, às casas de reputação duvidosa, onde se dizem as coisas mais torpes, com a maior sem-cerimônia do mundo, entre goles de aguardente baixa. Em tais lugares, costumava, às vezes, a passar grande parte da noite.
Foi estranhando-lhe a súbita mudança de proceder, e desconfiada do que poderia ocasioná-la, que tia Rosalina, carinhosa como todas as avós, se resolveu a dar-lhe alguns conselhos. Longe dela o desejo de molestá-lo. Se lhe falava, era unicamente para seu bem. Julgava-o um rapazinho de juízo, não obstante admoestava-o a que tomasse muito cuidado com as companhias. E a velhinha contava, chorosa, inúmeros casos de meninos bons que, ao depois, se transformaram em bandidos da pior espécie, pela falta de escrúpulo em escolher os companheiros.
– Não tinha ouvido falar no Fortunato, o perigoso salteador que todos temiam? Pois ela o conhecera rapaz honesto, empregado de uma acreditada casa comercial. Foram as más companhias que o desviaram da linha reta do dever...
Benedito escutava-a, calado. Amava muito a avó, para afligi-la com respostas ásperas. Todavia, não gostava das suas advertências. Sabia perfeitamente o que estava fazendo.
Nessa noite, voltou mais tarde para casa. Quando bateu à porta, já os galos cantavam. A avó que velava, solícita, à sua espera, quase desmaiou de dor, quando o viu entrar roto, com as roupas sujas de lama a atestar as quedas que dera pelas ruas, o ar apatetado de quem não entende nada do que se está passando com ele, as pernas infirmes, bamboleantes, num sorriso alvar na boca babugenta, a praguejar ainda por cima umas coisas tão feias, que teriam posto de pé os seus cabelos, se ela, precavida, os não conservasse bem enrolados e seguros a grampos, no alto da cabeça.
Foi, pois, com lágrimas nos olhos, que ela o repreendeu:
– Aquilo não podia continuar assim. Que se emendasse, do contrário seria forçada a expulsá-lo de casa. Em sua família, graças a Deus, nunca sucedera semelhante coisa. Soubera criar os filhos. Se lhes não dera muita instrução, criara-os, todavia, honestos e laboriosos. Bêbados, é que ninguém lhes poderia chamar...
Ao recolher-se, essa noite, ao seu pequeno quarto, sozinha com o seu desgosto, a velha parecia mais enrugada, mais curva; alvejavam-lhe mais brancos os cabelos ralos. É que, naquele momento fatídico, assistira à morte de sua derradeira esperança.
Arrancai a tábua de salvação das mãos do nauta, que luta no turbilhão das ondas rugidoras, e vereis como ele desfalece imediatamente. A esperança é uma espécie de tábua salvadora a que nos apegamos na vida. Se ela nos foge, o desânimo invade-nos, o entusiasmo arrefece e a estrada que, animosos, trilhávamos, sorrindo às flores desabrochadas pelas margens, transforma-se para nós em um leito fragoso de urzes e abrolhos.
Aquele neto era, para a velha, a sua alegria única, todo o seu sonho de felicidade. Nele esperava descansar, futuramente, das suas passadas fadigas. Nos seus devaneios inofensivos, sonhava já com uma casinha própria, ensombrada de trepadeiras, muito asseada, com um quarto para si, outro para o Benedito, uma sala de jantar bem arejada, ótima cozinha. Ao centro da sala, uma mesa de verniz, forrada de alvíssima toalha de algodão, sobre que disporia, à tarde, os pratos de louça, indo sentar-se pacientemente à soleira da porta, aberta sobre o jardim, para aguardar a chegada do neto. Não se arreceava de que ele viesse fatigado, sem fome. Para isso tinha recursos, que sabia preparar bons caldos, coisas de meter água na boca de toda a gente.
Foi assistindo ao desmoronamento de todos esses castelos, que tia Rosalina se recolheu ao quarto, aquela noite, mais enrugada, mas branca, mais velha.
Benedito, mal a avó se retirara, estendeu-se, de fio comprido, ali para um canto, e pegou no sono. Reservara as explicações para o dia seguinte, que, naquele momento, estava a não poder mais consigo, de tanto sono.
Ainda bem não dormira uma hora, quando ouviu gritos abafados de socorro. A voz parecia da avó. Aplicou bem o ouvido. Não se enganara. Era mesmo dela. Estremunhado, tonto mais do sono que da bebedeira, pôs-se de pé, cambaleando. O corpo inteiro lhe doía. Nem que tivesse tomado uma formidável tunda de pau, lhe doeria tanto.
Acostumado a ver nas trevas, lançou o olhar em torno, orientando-se. Os gritos chegavam-lhe agora mais distintos. No pressentimento de que alguma desgraça a ameaçava, encaminhou-se, resolutamente, para a câmara da avó. Impeliu a porta que estava apenas cerrada e, à luz dúbia de uma lamparina de querosene, viu destacar-se, sinistramente, diante dele , a figura anguloso de um homem, exigindo, de faca em punho, da velha aterrorizada, que lhe revelasse o sítio onde guardava as suas economias.
Benedito não perdeu tempo. Avançou corajosamente para ele. E, à luz fúnebre daquele recinto sombrio, dois corpos trágicos se estreitaram numa luta desigual: – o heroísmo de uma criança a desafiar a cólera de um bandido. Ouviu-se o baque seco de um corpo no soalho, seguido da fuga precipitada de um vulgo a esgueirar-se, sorrateiro, pela porta entreaberta. Benedito tombara, vencido. Animoso e denodado, tentou ainda levantar-se, para correr em perseguição do gatuno, mas as forças o abandonaram, e ele rolou pesadamente no soalho.
Mal voltada a si do susto por que passara, tia Rosalina ergue-se, cautelosa, do canto a que, aproveitando a intervenção do neto se acoutara, para fugir à sanha do malvado. /ergue-se e dá com Benedito, que ela supunha ainda bêbado, estirado no pavimento.
À vista da avó, o mísero sentiu remorsos das suas ingratidões. E foi com sincero arrependimento que lhe pediu perdão:
– A avozinha me perdoe os desgostos que lhe tenho dado...
Falava numa voz arrastada, langue, que ia, a pouco e pouco, perdendo o timbre natural, morrendo-lhe num longo e doloroso gemido.
Tia Rosalina sentia-lhe as mãos úmidas, geladas, comprimindo nervosamente as suas. Com um pressentimento da terrível fatalidade que sobre ele passava, retraiu-as automaticamente. As suas mãos estavam tintas de sangue. Santo Deus, Benedito saíra ferido da luta.
Rápida, apanhou a lamparina de sobre a mesa, para contemplar a natureza do ferimento. Mas Benedito, apertando a mão contra o peito, a tranquilizou, dizendo que aquilo não era nada. Um simples arranhãozinho sem consequência nenhuma grava. E, com os olhos amortecidos, os lábios pálidos, à morte que se aproximava , solicitou-lhe que se chegasse bem junto dele.
– A avozinha gosta de mim? Gosta muito do seu Benedito?
– Que pergunta, menino. Por que hão hei de gostar de ti?... Gosto muito, sim.
– É que eu a tenho feito sofrer tanto, tanto...
E, dizendo isto, pendeu docemente a cabeça para trás. Calmo, sem contrações, acabava de [en]tregar a sua bela alma ao Criador de todos os seres.
Os galos cantavam. Pássaros, ocultos sob ramarias verdes, entoavam, em coro, uma ode triunfal, em saudação ao dia nascente.
Amanhecia.
Fim.


Manuscrito bem conservado, em doze tiras numeradas no topo.

A palavra feitio substitui a palavra pesponto, que foi rasurada.

As palavras seguintes que devia dar-lhe foram rasuradas.

A palavra alguma foi escrita na entrelinha superior.

A expressão diante dele foi acrescentada na entrelinha superior.

As palavras o mísero foram acrescentadas na entrelinha superior.

As palavras se aproximava substituem, na entrelinha superior, a palavra chegava, que foi rasurada.

Um furo no papel destruiu a primeira sílaba da palavra [en]tregar.

As palavras em saudação substituem a palavra saudando, cujo final foi rasurado.

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Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011