O NEGRO EUGÊNIO

 

 

Desde cedo, o capitão Mascarenhas andava impaciente, batendo, de encontro ao soalho da fazenda, os grossos tacões de suas velhas botas de couro.
A sua voz ecoava, forte e imperiosa, nas ordens que transmitia aos criados. Nem uma providência passava despercebida à agudeza do seu cérebro.
Mal clareou o dia, embaixo, no engenho, começaram a aparecer os caboclos que o capitão contratara para fazer parte da escolta. Desta vez, queria ver o negro a seus pés, manietado e humilde, como uma ovelha que vai para o matadouro.
As façanhas do preto Eugênio principiavam a abalar-lhe a autoridade, dentro dos seus domínios. Era preciso pôr cobro àquelas proezas.
Para isso, reunira aquela gente, o escol dos valentões num raio de cinco léguas em redor. Achavam-se presentes- o Genciano, o Leopoldo, o Clementino, o Chico Valadão, o Norberto, o Martinho – todos, muito conhecidos, em todo aquele sertão, pelos seus numerosos crimes. A fantasia popular, sempre inclinada ao exagero, emprestava-lhes até um certo dom de invulnerabilidade, que mais temidos os tornavam.
Não havia Laport, mesmo trochada, que conseguisse perfurar-
-lhes os peitos hercúleos. Ora, Laport!... Se até as pernambucanas, as legítimas pernambucanas, empunhadas por braços vigorosos, entortavam-se, respeitando-lhes a rija carnadura...
Passando uma última revista ao pessoal, a que se juntara e, na íntima satisfação de ver escrupulosamente cumpridas as suas ordens, o capitão montou o seu ardido ginete, colocando-se à frente do bando!
É sua voz de comando, todos se movimentaram.
Dois cavaleiros se postaram ao lado do chefe, de espingardas a tiracolo. Seguiam-se-lhes os valentões, a pé; fechando a retaguarda, a arraia miúda da fazenda. Desta figurava um portuguesinho, chegado havia pouco da terra, que divertia com as suas fanfarronices os mais do bando.
Para ele, arma de fogo era coisa de pouca valia. Um bom cacete e seria capaz de, sozinho, pôr em fuga meia dúzia de negros como o Eugênio. Fossem perguntar aos lobos de sua santa terrinha...
A marcha se fazia numa jovialidade que contrastava sobremaneira com o fim da escolta. A rude gente do sertão habitua-se cedo à vida do crime, o que vem a ser uma consequência lógica do meio em que vivem.
O desejo de vingança arma-lhe um dia o braço. E não há nisso que censurar, porque o ofendido não tem outro meio de se desagravar. Justiça... só feita pelas próprias mãos. Os poderes públicos não lhes oferecem outro meio.
De honrados vingadores de ultrajes, passam logo a capangas dos fazendeiros, e daí a bandidos, que se vendem para arrancar a vida dos outros, é um pulo.
O sol surgiu no horizonte, banhando de luz os píncaros azulados das montanhas longínquas. Não demorou muito que se viesse refletir, em raios multicores, nos canos das espingardas.
Havia quase uma hora que a escolta marchava, subindo morros, descendo encostas, palmilhando rochas, onde uma vegetação, sediça e enfezada, a custo arrancava ao solo a seiva necessária à sua subsistência. Meia légua mais e a marcha chegaria ao seu termo.
Apenas transpuseram um capão de mato, avistaram, ao longe, o teto de sapé, denegrido pelo tempo, da casinha de Eugênio, a destacar-se dentre os penachos louros do milho, que uma branda aragem agitava.
– Vamos apanhar a fera em seu covil – bradou-lhes o capitão. E agora, silêncio e armas na mão. Eu chegarei pela frente, vocês guardarão as portas e janelas laterais e as que dão para os fundos. Toda a vigilância será pouca. Não nos vá ele escapar...
E a manobra começou a ser executada com muita ordem e prontidão. O bando se dividiu em dois. Um tomou à direita, subiu um pequeno lançante, com as precauções necessárias para não ser visto, enquanto o outro, à esquer[da,] contornava um pântano, coberto de tabua. As duas colunas encontraram-se atrás da casa do preto, cercando-a por todos os lados. O plano da manobra foi cumprido com a máxima exatidão.
O capitão, ladeado dos seus dois guardas, à porta, reclamou de Eugênio que lha abrisse. Vinha da parte da polícia. Precisava ajustar contas com ele. Seria inútil qualquer resistência ou tentativa de fuga.
Desde aquela feita, na venda do cunhado do capitão, esperava Eugênio, a cada momento, a visita deste. Conhecia-o de sobra... Não que o capitão fosse homem de aventuras e guerras, não... Uma só coisa o preocupava – a manutenção firme da sua autoridade, dentro das suas terras. Neste ponto ele era irredutível. Pelo que, mal lhe ouviu a intimação, Eugênio lhe abriu a pequena porta, de madeira mal lavrada, de sua humilde habitação.
– Antão, vancê, patrão, qué memo levá o nego, hoje...
– Se quero!... Vivo ou morto, hás de dar hoje com o costado na fazenda. Sabes o que mais? Avia-te, que não temos tempo a perder.
– Cum vancê sozinho, num hai dúvida, patrão, que eu vou até no inferno. Mas com essa muntuera de gente atrais de mim, me adiscurpe, que eu num vou, não...
A conversa chamou a atenção de alguns membros da escolta, os quais, deixando a guarda das suas posições aos companheiros, se foram colocar ao lado do capitão, para o defender de qualquer ataque inesperado.
Entre estes, avultara a figura atlética do Clementino, a quem Eugênio votava um ódio de morte. Dos seus inimigos, o mais detestado era aquele mulato. Por isso, ninguém estranhou o olhar feroz que ele lhe deitou. Conheciam sobejamente a velha rixa, existente entre os dois.
A coisa se passara deste modo. Num pagode, que o mestre João Cândido costumava dar anualmente, com o produto das esmolas, que, de porta em porta, arrecadava com a folia, Clementino dirigiu galanteios à caseira de Eugênio. De mero galanteador, passou com presteza a dono absoluto do coração da cafuza. Daí a fugir com ela, aproveitando a escuridão da noite, fora obra de poucos minutos. De mais, dizia-se que Clementino era o único homem daquela redondeza, capaz de enfrentar Eugênio, com vantagem. Não era, pois, sem causa, aquele velho ódio do negro contra o mulato.
– Não havia dúvida. Ele também fazia parte da escolta que viera prendê-lo – o inimigo detestado. Entregar-se à prisão seria o mesmo que se expor às mãos do seu adversário. Depois, este que o sabia valente, vendo-o entregar-se com resistência, talvez o fizesse alvo das suas zombarias. E, numa resolução súbita, disse ao capitão que se não entregaria. Matassem-no, se quisessem...
Foi o sinal de fogo. Luta, de que serviria lutar com um inimigo como o Eugênio? Adestrado nos exercícios da capoeira, como ele era, só mesmo arma de fogo. E o tiroteio começou, cerrado. Muitos atiravam, mais pelo prazer de ostentar depois as armas vazias, do que com o intuito de acertarem. A isso e também à confusão, que logo se estabeleceu, deveu Eugênio a felicidade de não ser atingido pelas balas.
Decidiu-se então a vender-lhes caro a vida. Num ímpeto, saltou sobre a escolta, que já se achava toda reunida à sua frente, e semelhante a um ciclone que, na passagem, tudo leva de vencida, o seu braço, cada vez que se levantava, era para fazer um inimigo morder o pó do terreiro.
Fugir em tal emergência seria o mesmo que se deixar matar. O que se fazia mister, era lutar corpo a corpo, braço a braço, enquanto lhe restasse um pouco de forças.
As facas refulgiam no ar, os cacetes cabriolavam, numa confusão, que prejudicava a própria situação dos atacantes.
A figura de Eugênio, ora se sumia completamente na nuvem de braços que se alçavam, ora se destacava, heroica e sublime, nimbada por uma auréola de luz, como o símbolo augusto do heroísmo.
Duvidoso do resultado, o capitão, como medida de prudência, se colocou a alguns passos do teatro da luta. Tanto mais que a sua coadjuvação seria de pouca eficiência. Já detonara, infrutiferamente, todas as balas do seu Smith and Wesson.
A arraia miúda começou a debandar. No campo da peleja, só ficaram os que tinham um nome que zelar. Desses mesmos, quatro desistiram.
Norberto e Clementino eram infatigáveis. Agora, que a fuga dos companheiros lhes dava mais liberdade de ação, queriam mostrar ao negro de quanto era capaz o vigor de seus músculos. Eugênio, por sua parte, vendo na deserção dos inimigos um sinal certo da vitória, tirava disso motivo para se bater com mais ardor.
Clementino ganhava ao companheiro a palma no ataque. Bem sabia que aquele momento era, para ele, o mais solene da vida. Dele estavam pendente um futuro de humilhações ou de glórias. Vencido, teria que arrostar os motejos daqueles mesmos que agora o respeitavam. Vencedor, continuaria o rosário glorioso dos seus feitos imortais, com a glória de mais aquele triunfo.
Não tardou muito que ficasse único na arena de combate. Norberto recebera um grava ferimento na cabeça. O sangue que dele manava, empanando-lhe a visão, não lhe permitia mais a permanência ali. E foi então que a luta apresentou a sua face mais dramática, de lances trágicos e expectativas inquietadoras. Não eram criaturas humanas que a exigência da honra reclamava que se digladiassem, mas duas feras bravias que, no sangue do inimigo, desejavam cevar todo o ódio dos seus instintos selvagens.
Os corpos enlaçados, em contrações espasmódicas de músculos, os ossos estalando à pressão dos pulsos, os olhos injetados a saltarem-lhes das órbitas, demonstravam claramente o empenho que ambos tinham em vencer.
Conseguindo desvencilhar-se do rival, Eugênio, rápido como um veado, se apoderou de uma faca que a pressa de algum inimigo em fugir, ali abandonara, e, sem mais delongas, avançou para o adversário. A desigualdade da luta era agora mais que patente.
Clementino quis ainda resistir. Com os braços, procurou inutilizar as arremetidas do negro. Mas ia cedendo-lhe o campo, recuando, recuando sempre... Nem percebeu que tocava a extremidade do terreiro, que um pequeno fosso limitava. A terra faltou-lhe debaixo dos pés e o colosso tombou para não mais se erguer. É que Eugênio, aproveitando o ensejo da queda, lhe cravara a faca em pleno peito. Foi uma morte que todos lastimaram. O capitão... esse jurou que voltaria, para vingar a afronta daquele derrota e a morte de Clementino. Não se se cumpriu a palavra.
Acompanhamos agora o portuguesinho, já nosso conhecido.
Aproveitando uma ocasião em que a luta era mais intensa, fugiu sem ser notado. E em tão más condições o fez que o único caminho desimpedido era o brejo das tabuas. Mas ele não teve a menor hesitação. Embarafustou por entre o tabual. Os seus grossos sapatões ferrados, semelhante ao cavalo de Átila, no lugar em que pisava, não consentiam que a tabua ficasse de pé. Chapinhando na lama, curvado para não ser pressentido, o pobre do homem passou um quarto de hora aziago. E, como não há mal que sempre dure, conseguiu chegar, por fim, à margem oposta. De lá, ainda relanceou os olhos para trás. O espetáculo que se lhe deparou não foi dos mais animadores, porque o homenzinho, apesar de muito cansado, tirou da sua contemplação forças para ganhar uma derrubada nova de café. Saltando os grossos troncos de madeira, que lhe obstruíam a passagem, descobriu um esconderijo, onde se determinou passar o resto do dia, esperando a noite, para regressar à fazenda. Ainda aí não foi feliz o mísero minhoto.
Temendo ser surpreendido à noite, em casa, por nova escolta, Eugênio, à tardinha, se dirigiu para o sítio, muito seu conhecido (ora ocupado pelo nosso homem) a fim de lá passar, tranquilo, as horas da noite. Imaginem qual não foi a sua surpresa ao encontrá-lo habitado. Não quero falar da do nosso amigo, porque essa teve a agravante de se manifestar acompanhada de um certo pavor, que o levou a pedir, aos pés de Eugênio, lhe poupasse a vida. O aspecto do suplicante infundia compaixão. Sujo de lama quase até a cintura, todo rasgado, com escoriações pela face, era um destroço humano. Eugênio se compadeceu, mas quis se divertir à custa dele, apontando-lhe ao peito o cano de uma velha garrucha vazia, dizendo-lhe que era chegado o seu último momento.
Aqui cessa o papel do narrador, porque a decência exige que calemos o que se seguiu à ameaça. O certo é que o portuguesinho ficava fulo de raiva, quando se aludia a esse fato.
João das Chagas


Conto escrito especialmente para O Jornal, preservado em datiloscrito.

O datiloscrito traz E na- há, que me parece mero erro de datilografia.

Trata-se, com certeza, da palavra esquerda, apesar de faltar-lhe a última sílaba, que estaria na linha seguinte.

As palavras de Eugênio estão na entrelinha superior.

A palavra vou está repetida. E o contexto não dá nenhum sentido a essa repetição.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011