O SANTO EREMITA

 

Há quase cinquenta anos que ele assombrava, com as suas austeridades, o deserto inóspito da Tebaida.
Em sua vida penitente, chegara a tal grau de santidade, que os pássaros lhe pousavam, confiadamente, nos ombros adustos, e as feras lhe lambiam, reverentes, os pés encarquilhados.
Naquela solidão alpestre de monte e penedia, transcorrera-lhe a maior parte da vida.
Era bem moço, quando, abandonando o convívio social a convite do Mestre Divino, ali se refugiara.
Ninguém havia pensado, até então, em habitar aquele solo ingrato, sobre que a maldição de Deus parecia pesar, tremenda.
Fora-lhe o primeiro.
Ali se lhe inteiriçara o corpo ossudo e magro; ali se lhe enovelara a barba mosaica; ali perdera a plástica do homem civilizado, transformando-se no homem primitivo, guedelhudo, horroroso, tão selvagem no aspecto, que se imporia, com facilidade, ao respeito das feras, se estas o não reverenciassem pela sua santidade.
São João Batista, no deserto, devia ser como ele.
A transformação do homem, no seio do cosmos, obedece a leis imutáveis do meio. Em face da natureza bruta, o homem acaba infalivelmente por identificar-se com ela.
Os músculos se lhe arredondam sob a pele tanada, espoucando em bossas como as raízes, do solo; a cabeleira alonga-se-lhe, emaranhando-se como frondes intonsas de árvores copadas; as pernas engrossam-se, espicham-se, encouraçadas de carepas; os braços esgalham-se como ramos verçudos; as mãos abrutalham-se, perdendo a delicadeza fresca dos contornos; os pés espraiam-se, largos e caracachentos, sobre as alparcas de couro cru.
Mas se o corpo do eremita se transformara, ao contato selvático daquela natureza bárbara, sua alma se conservara sempre a mesma, moça e delicada, de uma mocidade que infundia saúde, de uma delicadeza que encantava.
Nas suas exaltações apaixonadas de amor, transportava-se, em espírito, ao céu; via Jesus, radiante de glória, olhando-o com aquele olhar profundo e doce, que na terra penetrava as almas; próximo dele, Maria Santíssima, com a sua linda coroa de rainha, na cabeça bem-aventurada ; os apóstolos, embaixo; os santos, todos os santos; as virgens, os mártires, os confessores, os anjos...
Os dias e grande parte das noites, passava-os em orações intérminas, ajoelhado sobre a terra crua.
Pouco dormia. Quase não comia.
A sua refeição, pouca e má, que era a única no dia, constava unicamente de uma pouca de erva, que ele ia apanhar aos lesins dos rocados, e água fresca do púcaro.
Na sua vida íntima de união com Deus, tinha a vontade de tal modo submetida ao beneplácito divino, que não havia para ele acasos ou contratempos molestos.
As invernias bravas como os verões escaldantes, os outonos louros como as primaveras verdes, acolhia-os ele com as mesmas demonstrações de júbilo, as mesmas loas ternas de reconhecimento lhe brotavam dos lábios Àquele que é o autor sapientíssimo de todas as coisas.
Nunca as surpresas do maligno puderam desviar aquela existência angélica da linha reta da virtude.
Os monges da planície, que iam queixar-se-lhe das [ilecebras] traiçoeiras do gênio do mal, ficavam maravilhados da santa calma do ancião. E tinham aquilo por um dom especial do céu.
A princípio, vivia o santo eremita, esquecido dos homens, a louvar o Senhor, sozinho naquela asperidão de serra. Uma noite, porém, surge-lhe, inesperadamente, no terreiro, uma leoa, de pelo fulvo, ferida, arquejante, gemendo dolorosamente. Os olhos lacrimosos, que ela volveu para o eremita, tinham uma expressão tão doce de súplica, que o moveram logo à piedade. Alma sensível às misérias alheias, não podia ver uma dor, fosse embora em um animal, que não procurasse aplicar-lhe um paliativo qualquer. E foi com verdadeira compaixão pela fera , que tomou o seu púcaro de água cristalina, trasfegou o líquido na mão e lavou-lhe com ele, bem lavadinha, a ferida .
Aquela noite, que era uma noite abafada e quente, uma das quentes noites orientais, sem vento nem chuva, teve o caridoso eremita de passar sem água. A fonte ficava muito distante, na vertente oposta da montanha, e, para ir até lá, tinha que trilhar [cangostos] emaranhadas de urzes e ladeiras eriçadas de rebos ásperos.
Depois do curativo, carregou para dentro do seu animado eremitério, a fera exangue. Estaria, assim, ao abrigo de qualquer eventualidade desagradável.
Graças à sua solicitude, a leoa restabeleceu-se depressa. E em sinal de reconhecimento, nunca mais o quis abandonar, seguindo-lhe as pegadas por toda a parte, como um cãozinho manso.
Se ele ia à fonte, precedia-o, aos saltos, espaventando as serpes venenosas do leito fragoso do trilho; se saía à procura de erva, rondava-lhe os passos, não lhe sucedesse cair em alguma cilada das feras; se se punha a rezar, ela, agachada, as patas em cruz, ventre em terra, ficava a olhá-lo, enlevada, com os seus grandes olhos pacíficos, bebendo-lhe, na fisionomia seráfica, as expressões beatíficas dos êxtases.
À noite, montava guarda à humilde cabana do velho eremita.
A simplicidade montesina desse idílio cotidiano foi, em breve, interrompida, com o aparecimento de uma visita incômoda .
Certo dia, um cenobita, que vagava perdido na aspereza daquelas broncas penedias, foi dar carnalmente, ao eremitério ignorado do homem de Deus.
Da pequena prática que com este teve, toda ela sobre coisas do céu, da vida austera do eremita, de tudo que viu e ouviu, concluiu lá consigo que estava diante de um verdadeiro servo de Deus.
No outro dia, andou ele pelo deserto , de cenóbio em cenóbio, a contar aos seus companheiros admirados, o teor de vida penitente do santo varão.
Na justa curiosidade de conhecerem de perto homem tão prodigioso, muitos deles empreenderam, sem mais demora, na manhã seguinte, a árdua viagem ao monte.
Não havia o menor exagero na narração do companheiro. Tudo o que lhes dissera a respeito do eremita, era a pura verdade.
Aquela vida não parecia mais terrena, tão desligada se achava das coisas perecedouras deste mísero planeta sublunar.
A miséria santa, a última miséria, refletia-se por toda a parte, no seu já meio descolmado eremitério.
Folhelho de palha amarelenta servia-lhe de leito, nas escassas horas de repouso. O travesseiro era um jirau sórdido, que acumulava ainda as funções de banco .
O púcaro, colocado a um canto, demonstrava, na crosta sebácea, que o forrava externamente, a passagem dos anos.
Era toda a sua riqueza, na terra, inclusive um cajado, a que se abordoava quando saía, e uma panela de barro, em que cozia as suas ervas.
O hábito caía-lhe aos pedaços, descobrindo-lhe, a intervalos, nas carnes anquilosadas, os sulcos profundos que as disciplinas cavavam.
À tarde, regressaram , a alma nadando-lhes nas mais vivas consolações. Haviam, em verdade, conhecido um justo.
Levada por essas testemunhas insuspeitas, a fama da santidade do eremita espalhou-se, rápida.
Os carreiros, emaranhados de urzes, transformaram-se depressa em leitos de caminhos largos. Raro era o dia, em que, a consultá-lo sobre coisas da vida espiritual, não subisse um cenobita aquelas escarpas íngremes. E os seus conselhos salvaram, e as suas palavras eram palavras de vida eterna.
Das margens do Mediterrâneo às ribas do Mar Vermelho, o seu nome corria, engrandecido pela fama dos milagres, nimbado por essa espécie de admiração reverente que só aos santos de Deus se costuma tributar.
Caravanas de peregrinos vinham, de remotas paragens, pedir-lhe o milagre da sua cura. E ele atendia a todos, ricos e pobres, com a mesma terna solicitude, bondoso e compassivo.
A sua amiga e irmã leoa é que não gostava muito dessas visitas importuna. às vezes, à aproximação de gente, punha-se a rosnar, em atitude agressiva . Era preciso que o cenobita a aquietasse.
* * *
Anos passaram.
A devoção ao santo aumentava, dia a dia.
Um beduíno que descia, vagaroso, ao pino do sol, as faldas alpestres da montanha, trouxe a dolorosa notícia de que o santo varão estava moribundo. E logo todos os anacoretas, que faziam vida penitente nos desertos inóspitos da Tebaida, abordoados aos seus cajados, puseram-se a caminho, para assistir ao feliz traspasse do santo servo de Deus.
Subiram a estrada fragosa, cantando e louvando ao Senhor pela graça imerecida que lhes ia conceder.
Encontraram-no deitado sobre a palha encardida, com a face voltada para o céu, orando.
Ajoelharam-se em redor dele em redor dele, crentes de que iam presenciar um passamento auspicioso, a uma cena empolgante, que lhes havia de servir de estímulo duradoiro à sua vida de mortificação. E, enquanto esperavam a feliz hora, repassavam, cheios de unção, entre os dedos nodosos, as grossas contas dos seus benditos rosários.
Uma lividez mortal estampou-se nas faces engelhadas do enfermo.
A agonia começava.
Dos lábios dos cenobitas irrompeu então, entre soluços e lágrimas, a oração dos agonizantes. E essa oração, cantada , ao compasso rítmico daquelas vozes verdadeiramente arcangélicas, na calma agreste da tarde lutuosa, ondulava no ar morno como uma música celeste, subia em espias suaves, espalhava-se no espaço, transfundia-se nas ondas sonoras, impregnando as almas, as árvores, os rochedos, toda a paisagem vesperal de uma tristeza doce, que o crepúsculo sobremaneira aumentava.
No seu leito de palas sujas, o moribundo abria desmedidamente os olhos, escancelava a boca, que a barba hirsuta sombreava, com os dedos hirtos arrepelava a cabeleira intonsa, na atitude aflitiva de quem luta contra um pesadelo importuno.
Alguma coisa de tremendo estava-se passando nos escaninhos da sua alma.
As faces encarrilhadas contraíam-se lhe em longos espasmos, as pupilas faiscavam-lhe, em relâmpagos de pavor sob as cerdosas pálpebras inquietas, o peito ossudo arfava-lhe sob a estamenha rafada, em contornos agudos.
O agonizante parecia estar assistindo a alguma cena dantesca. Era o momento solene do seu julgamento.
Diante dele, o Juiz indefectível examinava, com os seus olhos impassíveis, o fiel da balança, em cujos pratos estavam depositadas as suas obras boas e más.
O resultado do exame parece que não foi muito lisonjeiro para o eremita, porque ele continuava inquieto, agitado.
À vista dos monges admirados, travou-se então um diálogo animado, entre réu e Juiz, diálogo que devia ser terrível, a julgar pelas palavras que ouviam da boca do moribundo:
– Cinquenta anos de penitência não vos bastam, Senhor, para apagar essa culpa da mocidade?
– ...
– Mas os cinquenta anos, passados nas agruras deste ermo, entre jejuns contínuos, cilícios ásperos e orações intérminas?
– ...
– Então, a fome e a sede, a que, para expiação dessa culpa, tanto tempo me impus, e que me transformaram de homem vigoroso nesta carcaça andrajosa de velho doente, as macerações formidolosas que pratiquei em minha carne, durante cinquenta anos, de nada valem?
– ...
– E as longas noites de orações ao relento, às soalheiras adurentes?
– ...
– Mas, a vossa promessa, Senhor? Não disseste que a receberia como feita a vós, a esmola dada ao pobre, que um copo de água, dado em vosso nome, não ficaria sem recompensa no céu? A quantos não socorri eu com esmola dos meus conselhos?! A quantos não dei de beber da água pura da vossa santa doutrina?
– ...
– Misericórdia, Senhor, só na vossa misericórdia acho refúgio. Se os cinquenta anos de vida penitente, no cimo agreste destas escarpas, não satisfazem à vossa justiça ultrajada, lembrai, ao menos, que sou uma ovelha das que remistes com o vosso preciosíssimo sangue, na árvore sacrossanta da cruz. Pelo vosso sangue, perdoai, pois, a este servo ingrato.
Depois, quedou-se imóvel sobre o fofo leito de palhas sórdidas. Um sorriso de triunfo, de infinito júbilo, bailava-lhe à flor dos lábios. O seu semblante, iluminado, cintilava nas irradiações de uma graça fresca, extraterrena, toda celeste. Os olhos adquiriram um brilho novo, um brilho de quem já não pertence a este mundo. A alegria do céu, a certeza de que ia viver, eternamente, lá em cima, junto aos tabernáculos augustíssimos do Senhor dos exércitos, operava nele uma transformação completa. E foi no maio dessa alegria ruidosa e comunicativa, que a sua bela alma se despendeu do invólucro carnal, voando para o seio de Deus.
Os monges, mal voltados a si da surpresa daquele diálogo metuendo, choravam comovidamente. Mudos, tristes, retomaram os seus báculos, desceram a encosta, batendo nos peitos, a formular, cada um para si, intimamente, a mesma pergunta inquietadora: se um santo, como aquele eremita, fora julgado por Deus com tamanha severidade, que seria deles? Uma resolução avigorou-se neles: – apertar o mais possível os rigores da vida ascética. E foi assim que a Tebaida assistiu ao renovamento do fervor cristão, assombrando o mundo com as práticas rudes da sua disciplina austera.


A palavra homem substitui a palavra troglodita.

O demonstrativo estas substitui o pronome pessoal elas.

A palavra bem-aventurada substitui, na entrelinha superior, a palavra bendita, que foi rasurada.

O pronome ele é um acréscimo na entrelinha superior.

As palavras aquilo por substituem as palavras rasurados isto como.

As palavras pela fera são acréscimos na entrelinha superior.

O pronome lhe é um acréscimo na entrelinha superior.

Foram rasuradas as palavras do arisco animal.

A palavra cotidiano substitui a expressão de todos os dias.

As palavras uma visita incômoda substitui visitas incômodas, que foram rasuradas.

As palavras Certo dia, um substituem a palavra Um.

A palavra homem substitui a palavra servo, que foi rasurada.

As palavras um verdadeiro servo substituem as palavras um homem, rasuradas.

As palavras pelo deserto são acréscimos na entrelinha superior.

Foram rasuradas as palavras de sentar.

Foi rasurada a palavra quando, que antecede no manuscrito à palavra regressaram.

As palavras sua amiga e irmã são acréscimos na entrelinha superior.

As palavras atitude agressiva estavam no plural, mas foi rasurada a letra s final.

As palavras Ajoelharam-se substituem as palavras Os solitários ajoelharam-se, que foram rasuradas.

A palavra grossas é um acréscimo na entrelinha superior.

A palavra bendidas, que seguia à palavra contas, foi rasurada.

As palavras a oração substituem as palavras De profundis, que foram rasuradas.

A palavra assim foi rasurada, depois de cantada.

Esta palavra sobremaneira foi acrescentada na entrelinha superior.

A palavra sua, acrescentada na entrelinha superior, substitui as duas sílabas finais da palavra daquela, que foram rasuradas.

A expressão O agonizante parecia estar substitui a seguinte: Tinha-se a impressão de que o agonizante estava, com a rasura da maior parte das palavras e o acréscimo de parecia.

O pronome lhe, que antecedia o advérbio foi rasurado

A palavra iluminado, cintilava nas substituem as palavras iluminava-se às

Foi rasurado a forma verbal era, que precedia a palavra aquele.

As palavras Uma resolução avigorou-se substituem as palavras Um pensamento absorvia-os, uma resolução se avigorava.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011