TIO JACINTO

 

Noite de São João.
A fogueira que a devoção da sinhá Maria costumava, todo ano, levantar, em louvor de São João, crepitava quase apagada. A fúria abrasadora das primeiras labaredas que, em torcicolos repentinos, lambiam freneticamente o ar, sucedia aquela calma de fogueira a esfazer-se em brasas.
Aqui e ali, ainda se erguiam pequenas chamas, roendo transversalmente os grossos troncos.
O braseiro ardente esperava, coruscando, os gordos pés das robustas sertanejas e as espraiadas chancas dos latagões da aldeia, para o compadrio.
A cerimônia constituía o que de mais simples se pode imaginar. Os moços escolhiam as raparigas com que deviam, de mãos dadas, passar sobre as áscuas escaldantes. Desde esse dia, ficavam sendo compadres, para todos os efeitos. Ao contrário do ligâmen espiritual, contraído na pia da água lustral, o compadresco nascia aqui do batismo pelo fogo.
Por ordem da sinhá Maria, trouxeram para junto da fogueira um ceirão de aipim, um cesto de batatas e muitos molhos de cana.
Chegou a vez da criançada. Não se sabia explicar de onde surgira tanta criança.
Parecia, na avidez com que se lançava cada qual, mais apressado, para escolher o melhor quinhão, um bando de esfaimado de corvos, a tripudiar sobre a lombada de uma rês, disputando-lhe os pedaços.
Não raro, daquele oceano revolto de braços e cabeças, saía, aos gritos, sapateando desordenadamente na relva, uma criança com brasas agarradas às plantas.
Na sala, a rapaziada treinava, no trebelho desenvolto, refrescando, a espaços, no canjirão referto de vinho espumoso as gargantas ressecadas.
O céu, como uma safira enorme, olhava, lá de cima, pelos olhos minúsculos das estrelas, a terra adormecida.
A lua semelhava um branco escaler luminoso, a vogar, oscilando mansamente, na imensidade tranquila do céu azul.
As árvores, que uma aragem branda agitava, sacudiam, lânguidas, a neblina prateada dos cabelos.
Lá de dentro, chegavam distintamente sons melancólicos de viola, acompanhando o desafio:
– Morena, teus ólho é uva,
Daquela que faz o vinho,
Teus braços é uma gaiola,
Eu vou ser teu canarinho.

– Caboclo regala os ólho,
Regala os ólho de sapo,
E arrepara que a morena,
Não é morena pro teu papo.
E a toada continuava, monótona e dolente, varando o silêncio da noite, derramando-se pelos socavões soturnos e quebradas ermas.
Ninguém reparou no tio Jacinto que, velhinho e curvo, sentado no último degrau da escada, fixava as pupilas desmaiadas, no braseiro, matutando:
– Que fora ali fazer? Era bem merecido aquele abandono. As festas eram para os moços que tinham manhãs radiosas a cantar-lhes dentro d’alma. Aos velhos tocava a soledade, a penumbra, o ocaso... E ele sentiu-se como que deslocado naquele ambiente de risos .
A mocidade que se divertisse!... Era justo. Não folgara também no seu tempo de moço? O seu tempo de moço!... Como isso ia longe!... E tio Jacinto sacudiu, numa resignação nazarena, a cabeça encanecida que o luar beijava, acariciando-a. Depois levantou os olhos amortecidos para o céu, fitando a lua. Só ela não mudara, sempre redonda e linda, como nos tempos áureos da sua mocidade... E os seus olhos marejaram-se de lágrimas.
Nem percebeu, na sua dolorosa excursão ao passado, que os meninos o cercavam, suplicando-lhe:
– Tio Jacinto, conte-nos uma história, uma história bonita...
E tio Jacinto teve que voltar à realidade da vida. Compreendeu afinal o papel que lhe cabia representar no mundo. Os velhos não passam, em verdade, de crianças senis. Estava, pois, no seu meio, entre as crianças, como uma criança mais velha.
E, resignado, começou a história:
Foi lá para as bandas de Diamantina... Nesse tempo, não pensem vocês que Diamantina era a cidade que é hoje. Modesto arraialzinho, de umas cinquenta casas apenas, vivia a vida obscura e pacata dos povoados sertanejos. É verdade que, de quando em quando, um ou outro crime sobressaltava a atenção pública, interrompendo-lhe o curso normal. Mas isso, todos sabiam, era a população adventícia que a sede do ouro arrebanhava.
De trem de ferro, nem se falava ainda. E fossem lá dizer ao matuto diamantinense que uma locomotiva pesada podia rodar sobre os trilhos, sem tombar!... Que assuada, santo Deus!...
Os transportes eram feitos, quase exclusivamente, sobre o lombo dos animais. As tropas cruzavam os sertões mineiros, em todas as direções.
A cata do diamante e do ouro desvairava então os cérebros.
As bandeiras sucediam-se a pequenos intervalos. Umas detinham-se, na póvoa humilde, o tempo suficiente para tomar um breve descanso, e partiam depois, sertões a dentro, em procura da miragem falaciosa que lhes fugia sempre. Outras estanciavam por ali, anos inteiros.
Um dia, teve o arraial a atenção despertada por uma imponente caravana que entrava, choutando, ao passo cadenciado das mulas nédias . As arreatas de couro novo e luzidio, manchetadas de tachinhas de ouro, faiscavam ao sol.
À frente, a madrinha tintinabulava festivamente, espalhafatosamente, o cincerro pendente do pescoço. Vinham depois as azêmolas anafadas, vergando o corpo ao peso das cangalhas novas, em cujo cimo tripudiavam, em saudação à terra, bandeirolas tricolores.
O povo, no auge da admiração, comprimia-se, pasmado, nas portas e janelas, para ver passar a soberba cavalgada.
Foi uma apoteose quando apareceu a figura homérica do senhor de todo aquele fausto, cavalgando um magnífico ginete, negro como a noite, de crinas bastas e cauda comprida, a rebolar, sob a gualdrapa, tauxiada de pedrarias raras, a carne roliça de animal acarinhado. à sua destra, com a desenvoltura de uma amazona, sobre um não menos formoso corcel, marchava uma beleza egípcia, de olhos deslumbradoramente pretos e profundos, cabelos ondeados e longos, a fugirem-lhe de sob o toucado, numa chuva de ébano, pelas níveas espáduas e colo alabastrino, que um belíssimo rosicler de pérolas finas emoldurava.
Fechando a marca, vinham os lacais, garbosamente empertigados nas suas librés de ouro, com as plumas dos capacetes reluzentes, esvoaçando ao vento. Cães de várias raças, escolhidos a rigor, em chouto vagaroso, ganiam, farejando o ar.
Toda Diamantina vibrava de admiração e de curiosidade.
– Quem seria aquele jovem senhor – indagavam, ansiosas, as bocas. Talvez algum príncipe oriental ou argentário americano, em excursão de recreio...
Os boatos circulavam, desencontrados.
O numeroso séquito estacou numa vasta área desocupada, ao centro do arraial. Aí distenderam as tendas de lona as longas asas brancas, em bênçãos de sombra e de conforto. Apesar da curiosidade, o povo manteve-se respeitoso, à distância.
A chegada de forasteiros começava a inquietar, não sem justa causa, o ânimo dos naturais. Entre os homens honestos que a atração do ouro dominava, vinham também criminosos da pior espécie. E já se contavam, por inúmeros, os casos de assaltos e roubos artificiosos, levados a efeito dentro mesmo do arraial.
Desta feita, porém, a inquietação era motivada apenas pela curiosidade natural de ver coisas novas e bonitas.
Bem ao centro da área, alteava-se a tenda do jovem senhor, luminosamente alva, na sua majestade olímpica de rainha. As outras estendiam-se-lhe reverentes, em torno.
À pompa radiosa de um dia claro de sol, sucedeu a celagem trágica de uma noite patibular. Nuvens negras varejavam a abóbada sombria, em carreira vertiginosa, enchendo o espaço de fumo espesso. Abutres zigue-zagueavam, recortando a túnica fuliginosa do céu farrusco. Trovões ribombavam ameaçadores, espalhando o terror com os estampidos formidolosos de sua artilharia pesada. O vento ramalhava furiosamente, estortegando as frondes intonsas das árvores copadas.
O povo acolhera-se, medroso, à tepidez dos lares. A chuva desabou, grossa.
A aluvião defluía, regougando, em caudais precipitosas e barrentas, carreando, em bubuia, aos trambolhões, pelos declives, ervas esturricadas, galhos ressequidos, cacarejos sórdidos, carapelas imundas, tomados aos esterquilínios.
Altas horas da noite, sobrepondo-se ao fragor da procela, que diminuíra um pouco a sua impetuosidade, um grito ecoou, angustioso e lúgubre, como de moribundo no último estertor.
Foi um reboliço. Os lacaios e demais membros da comitiva arrancados ao sono confortador da madrugada, corriam, aturdidos, sem saber que rumo tomar.
O grito partira da barraca do chefe.
Aí, num mar de sangue, encontraram, agonizando, cum um profundo ferimento no peito, a esposa angelical do jovem senhor.
– Que bárbaro tivera o ousio de profanar aquele corpo ascético de santa, com a lâmina irreverente de um punhal? E qual fora o movel daquele nefando crime? – eram as interrogações que brotavam de todos os lábios, sem encontrarem resposta.
Súbito, um fâmulo dá pela falta do colar. Faltava-lhe, a ela, o colar de pérolas no pescoço...
E ficou assim provado que fora o roubo o motivo daquele bárbaro assassínio.
Organizou-se às pressas uma escolta para a captura do criminoso. Este, porém, fugira a tempo, sem deixar o menor indício. Parecia que a terra se tinha aberto, para escondê-lo no seio.
Minutos após, fechava para sempre os olhos – olhos que recordavam nesgas de céu sereno – aquela que era na terra o pensamento único de seu esposo, a vida da sua vida, a razão de ser da sua felicidade.
No dia seguinte, um féretro, lutuoso e mesto, transpôs, vagarosa e solenemente, as alfurjas tortuosas da humilde póvoa, em demanda do cemitério.
O povo acorreu, solícito, ajudando a transportar à última morada o corpo escultural daquela beleza fascinadora, que na véspera o enlevara.
O aspecto contristador do mísero viúvo, acompanhando, cabisbaixo, o negro mortório, dilacerava os corações. A dor se lhe estampava, lancinante e cruel, nas faces cavadas e nas olheiras profundas da longa vigília. Nunca mais em seus lábios desabrochou a flor de um sorriso. Encolhido em sua mágoa, evitando o mais possível o contato dos homens, sempre taciturno, a revolver, no íntimo, pensamentos lúgubres, ele era como um fantasma a que a própria sombra aterrasse.
Uma manhã, deram pela ausência do jovem senhor, dono de todo aquele fausto. Lacaios cruzaram os arredores no seu encalço. Mas, tudo debalde. O seu desaparecimento repentino preocupou, por alguns dias, a atenção dos matutos diamantinos. Depois tudo voltou à calma habitual, e não mais se falou neste assunto.
Interessado em se afastar, o mais cedo possível, das testemunhas da sua passada felicidade, o infeliz viúvo tanto pôs nisso o seu empenho, que conseguiu realizá-lo. Depois de alguns dias de viagem pela vastidão intérmina das matas, chegou a uma obscura aldeiazinha, encravada entre montanhas híspidas, onde se resolveu a passar o resto da vida, sozinho com a sua saudade. Em noites assim tão lindas, no terreiro assentado, costuma, à luz da lua, aliviar a dor cruciante daquela saudade incoercível, contemplando o céu azulado. Não é o céu a mansão dos anjos? E tio Jacinto teve um soluço a estrangular-lhe a voz.
– Pois ela era um anjo...
As crianças quedavam-se absortas, ouvindo a palavra comovida do ancião venerável, sem ousar interrompê-lo. Bem longe estavam elas de supor que aquela dolorosa história, era o drama vivo da vida de tio Jacinto. Os anos haviam transmudado o jovem senhor de outros tempos naquela carcaça de velho.
Do braseiro, subia agora um cheiro forte de aipim cozido.
O desafio continuava aceso, lá dentro.
O vento cantava em surdina, casando a sua voz gemedora aos sons dolentes da viola.
Ou fosse abatimento natural, causado pelo esforço de narrar o seu triste passado, ou prostração, motivada pela dor da saudade, o certo é que tio Jacinto arquejava.
O luar batia-lhe em cheio no rosto macilento, fazendo ressaltar-lhe inda mais, a alvura imaculada das barbas brancas.
Duas lágrimas [...] luciluziram-lhe à flor das pálpebras, deslizando-lhe depois, serenamente, pelas faces engelhadas.
Não eram os velhos muito semelhantes às crianças? Não deviam, portanto, estranhar-lhe aquela fraqueza.


Ceirão é um cesto para a pesca de fabrico artesanal, tipicamente algarvio, cujo tamanho padrão tem as seguintes medidas: 60 cm x 30 cm x 30 cm

A palavra risos substitui a palavra festa, a que se sobrepõe, depois de apagada esta.

O adjetivo nédias foi acrescentado na entrelinha superior.

A palavra tudo é um acréscimo na entrelinha superior.

Há, neste ponto, um furo no papel.

Foi rasurado o pronome –se- da expressão deslizando-se-lhe.

 

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Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011