UM NAUFRÁGIO

 

As ondas afagam docemente a quilha que deixa, à sua passagem, uma esteira de espumas.
O céu e o mar se confundem, ao longe, no amplo horizonte. Duas imensidades que se estendem indefinidamente, a perderem-se de vista.
A tripulação se empenha no seu labor cotidiano, com a calma habitual das horas sem tormenta.
Reina a alegria dentro, a alegria dos que se vão, lentamente, aproximando do lugar de destino.
Gaivotas riscam o ar, em voo incerto, anunciando a perspectiva de terra, não muito longe.
Alguns passageiros sobem ao convés e procuram, com os respectivos binóculos, descortinar a costa, que margeiam.
O ar é transparente e puro.
Uma brisa mansa agita o cordame, num doce e abafado sussurro.
Inesperado abalo arranca a todos daquela espécie de embevecimento em que decorria a vida a bordo, lançando-lhes na alma presságios funestos.
Surgem oficiais recomendando calma aos passageiros, de quem começa a apoderar-se o pânico.
Nos alçapões, afadiga-se a equipagem em conjurar o perigo, acionando as pesadas bombas, que são impotentes para dar vasão à água que entra em jorros. Outras medidas tendentes a evitar o alagamento são postas em prática sem nenhum resultado. Marinheiros trabalham com água pelos joelhos.
Compreendendo a inutilidade de qualquer esforço nesse sentido, surge a figura olímpica do capitão, que ordena o abandono do navio.
Cenas indescritíveis desenrolam-se, então, a bordo.
Pessoas, em desespero, abraçam-se, resolvidos a morrerem juntas; outras erguem os braços ao ar, como a se despedirem de entes distantes, com grandes lamentos. Seus gritos e imprecações confundem-se com a voz solene do capitão, que transmite as suas últimas ordens.
Em pouco, são arreados os escaleres. Os marinheiros recebem neles, um pouco desordenadamente, os primeiros passageiros.
Na ânsia de salvamento, ninguém quer esperar a sua vez. Há apertos e acotovelamentos, no tombadilho, próximo às escadas.
Passageiros mais arrojados atiram-se ao mar, munidos do necessário salva vida.
Alguns escaleres já desgarram, afastando-se do local, onde o grande transatlântico baloiça ainda, afundando-se pouco a pouco, nas águas esmeraldinas do oceano.


De um original manuscrito, a lápis. É quase certo que não estava concluído. Possivelmente inspirado nos relatos do naufrágio do transatlântico Principessa Mafalda, em 25-10-1927.

 

 

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011