Quase desfalecido da jornada
Sentei chorando à beira do caminho;
Andavam no ar uns tons de rosmaninho
Pincelava o céu de ouro a madrugada.
Na tela da memória já cansada
Revi a vida outrora de carinho.
Berço! Infância! De novo, ali, sozinho,
Como era belo ver-te retratada!
Foi um instante de sossego e calma.
Mas eu, que em mim encarcerada a alma
Trago de Ahasvero bem fronteira à minha,
Sem ter ao ócio um só momento entregue,
Ouvi a voz que sempre escuto: segue!
E o mundo em coro conclamar: caminha!
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II
Só eu não acho um cireneu piedoso
Que me ajude a levar o meu madeiro,
A cujo peso vergo o corpo inteiro
E vou ganindo como um cão tinhoso.
Oh! quem me dera um porto bonançoso
Nas trevas divisar do meu roteiro!
Oh! quem me dera a calma de um mosteiro
Onde encontrasse ao meu sofrer repouso!
Mas ouço em tudo este convite eterno:
Eia! caminha, viajor, que o inferno
Será teu leito de judeu errante!
A coma ao vento, a planta ensanguentada,
O suor na fronte, a veste esfarrapada,
Vou prosseguindo em meu caminho adiante.
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III
E vou subindo a encosta da montanha...
Perpassa em tudo em hálito divino;
Só eu, curvado ao peso do destino
Não participo da alegria estranha
De repousar a cruz que me acompanha,
É que carrego quase de menino.
Nem Deus que sempre escuta o peregrino
Mostra aos meus rogos paternal entranha!
Da minha boca se me escapa um grito,
Uivo de dor de outro Caim proscrito,
Que nem conhece o novo itinerário...
E da treva que os gênios maus esconde
Uma voz cavernosa me responde:
Não acharás na terra o teu calvário.
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IV
O rude servo tem o humilde teto,
Onde descanse no final do dia,
A passarada a basta ramaria
De uma palmeira onde de algum velho abeto.
A borboleta, como o vil inseto,
Seguro abrigo tem contra a invernia;
Tem seu covil a fera mais bravia
Para ocultar-se aos olhos do indiscreto.
Só eu não tenho, em minha eterna noite,
Uma sombra sequer onde me acoite,
Da ventania aos rábidos destroços...
E o meu destino cada vez mais fero
Faz que caminhe sempre como Ahasvero,
Até que fique num cadáver de ossos.
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V
Anos, mais anos, nesse caos medonho
Marchei sem esperança e sem conforto.
Nem uma luz que me indicasse um horto,
Onde gozasse de ventura um sonho!
Nem uma estrela que um porvir risonho
Me indigitasse num longínquo porto!
Em tudo a treva, esse tremendo aborto,
A circundar o meu olhar tristonho.
Quanta vez, quanta vez, nas noites mudas,
Busquei a morte como um outro Judas
E repelido fui da sua estrada!...
Eis que, porém, no céu um dia avisto
A sacrossanta cruz de Jesus Cristo,
Onde descanso enfim da caminhada.
Niterói, abril de 1923