Ode da ressurreição

 

  1. [Ismael Coutinho]

    Portugal dorme há muito o sono secular.
    Estendido a seus pés ribomba o velho mar
    E ao ver adormecido o gigante entre as brumas
    Encrespa-se covarde e um turbilhão de espumas
    Às faces lhe arremessa. Então, ó mar ousado,
    Porventura esqueceste o poema do passado
    Essa epopeia augusta, em feito imortal
    Que no teu dorso ingente escreveu Portugal?
    Desafiaste-o um dia e ao teu grito de guerra
    Tua ira subjugou e os tesouros de terra
    Que tinhas, uma a uma as joias de teu seio,
    Como um corcel domado e que obedece ao freio
    Tiveste que ceder, tremendo de pavor,
    Àquele que feliz chamavas de senhor.
    Feliz, sim, porque digno achaste um povo e bravo
    A cujos pés dormir podias como escravo.
    E hoje ousas pigmeu, com enorme estrugido
    Teus tambores ruflar de guerra bem ao ouvido
    Do gigante que dorme aos raios do sol que arde?
    Deixa que ele repoise. Ó mísero covarde
    Respeita ao herói as cãs, o mento e a barba nobre
    De quem se enriqueceu, fazendo-se mais pobre.
    Espera que em breve há de acordar de novo
    E longe levará a glória de seu povo.
    Então conhecerás envergonhado e expulso
    O vigor sem igual e férreo de seu pulso.

    Passa um sol, passa outro sol,
    Passa um dia e outro dia,
    Canta no ar o rouxinol
    A ária do passado,
    E a cotovia
    A do porvir.
    E o gigante recostado
    Sempre a dormir, sempre a dormir!

    Oh! Quanta brisa passou zunindo
    Pela seara asa a roçar
    E Portugal sempre dormindo!
    Sempre dormindo,
    Sem acordar!

    Pelas aldeias, oh! Quanta festa!
    Da alegria o reinado impera.
    Flores no campo a primavera
    Anda esparzindo.
    E Portugal dormindo à sesta,
    Sempre dormindo!

    Noites silentes, oh! Quantas, quantas!
    No manto negro o tempo envolveu.
    Elas são tantas!
    Que a própria soma já se esqueceu.
    Noites sublimes! Luar que apontas
    No azul do céu,
    Talvez mil vezes vieste a brilhar
    Vem tantas contas,
    Tem um colar.
    Mas o gigante,
    Nem um instante
    Indícios mostra de despertar!

    Nem o estio, passa o estio,
    Nem verão, verão após,
    Calor faça ou faça frio,
    Falta a Portugal a voz.

    Venha chuva ou faça sol
    Um corisco risque o ar,
    Portugal puxa o lençol,
    Continua a ressonar.

    Bata na praia deserta
    A fúria do mar que estua,
    Portugal puxa a coberta
    A dormir e continua.

    Cante o galo, cante embora,
    Chore o engenho, gema a nora,
    Nada o conturba afinal,

    Corre o vento em raiva louca,
    A levar de boca em boca,
    Que já morreu Portugal.

    Recolhem os ceifadores
    O milho que Deus lhe deu;
    Canta a voz dos trovadores
    Que de fato ele morreu.

    As lavadeiras o linho
    Estendem sobre o trigal,
    Chorando a cantar baixinho.
    Morreu, meu Deus, Portugal!

    Gemem as vilas, gemem as eiras,
    Nas contorções do seu grande mal,
    São elegias que as carpideiras
    Choram à morte de Portugal.

    Em breve a nova correu
    De um país a outro distante,
    E todo o mundo acorreu
    A saber como morreu
    O legendário gigante.

    Entre flores e verdura
    Repoisa ali Portugal,
    Vão levá-lo à sepultura,
    Já se apresta o funeral.

    Que nobreza no seu porte!
    Que beleza angelical!
    Vede mesmo até na morte,
    Como é belo Portugal!

    Deitado no fofo leito
    Que flores e aroma encerra,
    Bem afastado da terra,
    Diríeis estar num horto.

    Vibra-lhe a grande Inglaterra
    Uma punhada no peito,
    A ver se os lábios descerra,
    Se de fato ele está morto.

    E viu-se que assombro e horror!
    Alçar o braço o guerreiro,
    E mostrar ao estrangeiro
    O seu antigo valor.

    Que a qualquer que o menoscabe
    Com vil insulto e minaz
    Portugal repele e sabe
    A injúria que se lhe faz.

    É aquela mesma alma estoica,
    Que da dor zomba entre os piques,
    É a mesma nação heroica
    Que foi mãe de Afonso Henriques.

    Entre as faixas da desonra
    Ninguém no mundo há que fique,
    Sobretudo, quem com honra
    Venceu nos campos de Ourique.
    ___
    De novo um silêncio enorme
    A tudo mudez empresta,
    Portugal outra vez dorme
    De belo passado a sesta.

    Repoisa, dorme, é verdade,
    Mas como é diverso agora,
    Vê-se-lhe dentro um vulcão!
    Lembra talvez com saudade
    Da linda idade de outrora,
    Dos tempos que lá se vão.
    ___

    Beija-lhe a viração a deslizar-se branda
    A faces cor de luar e a barba veneranda.
    Há por tudo um rumor. Canta a água no moinho
    Na seara canta o sol. Na coma o passarinho
    Da árvore também canta. E é tudo cantar.
    Na praia em que se deita um salmo canta o mar.
    Canta a lua no céu, no arbusto canto o orvalho
    Era flor também canta um madrigal no galho.
    Num ambiente assim, de canções todo feito
    Presente Portugal a alma acordar no peito.
    E que formosa acordar! Que proporções lhe assume
    A vida a renascer, das flores ao perfume!
    É a primavera que chega alva, bela e risonha
    É a saúde que volta! É Portugal que sonha:
                Vem marchando Afonso Henriques
                Da chuva por entre os piques
                E cai feroz sobre os mouros,
                Quebra-os ao meio, atassalha,
                Sai avante da batalha,
                Fronte coberta de louros.

    Recorda o servo valente,
    Das coortes sempre à frente,
    Martim Munis que as exorta
    Vê-o heroico arremeter
    Contempla-o depois morrer
    De Lisboa junto à porta.

    Brisa de leve roçando apenas
    Passa nas folhas do milharal,
    Que no seu leito de fofas penas,
    Repoisa o corpo de Portugal.

    Marcham hostes de Castela,
    Oceano que se encapela
    E ameaça engolir a frota
    Que no horizonte se perde,
    Mas Nuno , como um tufão,
    Avança contra o esquadrão
    Inimigo e uma derrota
    Inflige-o em Aljubarrota
    E mais adiante em Valverde.

    Bardo silvestre, bom rouxinol,
    Canta macio, poeta alado,
    Que adormecido ao rigor do sol,
    Portugal sonha com o seu passado.

    No céu o astro que rola
    Numa caudal de esplendores
    Das nuvens entre o tabique
    Vê, seguindo D. Henrique,
    Que em Sagres levanta a escola
    Dos grandes navegadores

    Ó mar, suspende essa fúria tua,
    Abranda um pouco teu peito irado,
    Em adormecido ao clarão da lua
    Portugal sonha com o seu passado.

    Surge o ciclo imorredoiro
    Das grandes navegações,
    Que na história letras de oiro
    Gravou a mão de Camões.

    Gonçalo Zarco, Tristão
    Chegam à ilha Madeira.
    Gil Eannes, Diego Cão
    Plantar em terra estrangeira
    Mar em fora ousados vão
    De Portugal a bandeira.

    Aragem branda, passa de leve,
    Roçando as asas pelo trigal,
    Que no seu leito branco de neve
    Repoisa o corpo de Portugal.

    D. Henrique glorioso,
    Das ondas nas penedias
    Manda o cabo Tormentoso
    Dobrar Bartolomeu Dias.

    O monstro marinho enlaça
    Da lombada sobre a escama,
    Montado Vasco da Gama
    Chega a Melinde a Mombaça.

    Uma esquadra as ondas corta
    Leva a rota definida
    No entanto, sem tino, aporta
    A terra desconhecida.

    Eis, a conquista imortal!
    Mais valiosa entre outras mil,
    É a esquadra de Cabral
    Que mostra ao mundo o Brasil.

    Portugueses, à porfia,
    Rivais em intrepidez,
    Onde terra veja o dia,
    Implantam com ousadia
    O pavilhão português.

    Ó mondadeiras, que andais nas mondas,
    Cantar de manso d’aldeia o fado,
    Que todo entregou do sono às ondas
    Portugal sonha com seu passado.

    Que triste expressão agora,
    Está seu rosto a traduzir!
    É Portugal que então chora,
    Lembrando Alcácer Quibir.

    Dos rubros lábios à borda
    Um suspiro apareceu,
    É que, entre prantos, recorda
    A derrota que sofreu.

    Vê dizimada cair,
    De um clima quente à fereza,
    Junto de Alcácer Quibir
    A flor de sua nobreza.

    Chorosos carros que, em curso estreito,
    Pranteando ides por monte e val,
    Chiai baixinho que em fofo leito
    Repoisa o corpo de Portugal.

    O lábio se lhe descola
    Numa frase inconsciente,
    Lembra a invasão espanhola
    Com o duque d’Alba na frente.

    Ó nobreza patenteia
    Com justa e nobre altivez,
    Que tens a correr na veia
    O sangue de português.

    Os camponeses que trabalhando
    Estais no campo desde o sol nado,
    Cantai de manso que ressonando
    Portugal sonha com o seu passado.

    Ó terra que esposa a luz
    Todo dia des que nasce
    Tiveste o beijo na face,
    De Judas, como Jesus.

    Meu Deus! inda sinto que arde
    O furor dentro do peito,
    Ó vilania sem par!
    Que tu, nobreza covarde,
    Da pátria sem o respeito,
    Deixaste-me agonizar
    Dentro de pútrido leito.

    Zagais do monte que andais, disperso
    Pelas encostas, pascendo o gado,
    Trovai de leve que em sono imerso
    Portugal sonha com o seu passado.

    O leão nunca domado,
    Que se erguia sobranceiro,
    E livre andava e corria,
    Jaz agora encarcerado
    Por um país estrangeiro
    Nos fundos de uma enxovia.

    Lutei, lutei, mas em vão.
    Foi chegada a minha vez
    Que o fidalgo português
    Não tinha mais coração.
    Lá se fora intrepidez
    Da portuguesa nação.
    Só me restava dormir
    O sono da escravidão.

    Ó fiandeiras que em mesto entono
    Trovai na roca linho enrolado,
    Cantai de manso que entregue ao sono
    Portugal sonha com o seu passado.

    Pelo rosto então lhe passa,
    Como o corvo que esvoaça,
    Uma sobra e sobre o leito,
    Vê-se-lhe o corpo tremer.
    Sente da horrível e triaga
    Que lhe deram de beber,
    De novo, o infamante efeito.
    Renova-se a dor da chaga,
    Que lhe rasgaram no peito.

    Ó seroeiros que em pleno outono,
    Por noite velha trovais no eirado,
    Cantai de leve que imerso em sono
    Portugal sonha com o seu passado
                Chorei do fado os escolhos
                Cativo no próprio lar,
                Que assim já trago meus olhos
                Secos de tanto chorar.

    Quase um século ligado
    Ao cetro de outra nação,
    Comi com o pranto amassado
    O cibo da humilhação.

    Do escravo, ó terrível lei,
    Quem te pode compreender?
    Sofri tanto que pensei
    Nunca mais sobreviver.

    Eis que um dia, em claridade,
    Avisto um astro que avança,
    Era o duque de Bragança
    A trazer-me a liberdade.

    Como o viajor no deserto
    Olha com sofreguidão
    O oásis que já vem perto
    E a vida vê renascer
    Da relva sobre o balcão.
    Assim também, eu, liberto,
    Percebo que no meu ser
    Se opera a ressurreição.

    Sobre mim a luz espalma
    A orquestração dos seus sóis,
    Parece que abrigo n’alma
    Um bando de rouxinóis.

    Cobrem-se os campos de arminho
    Olha, meu Deus, que primor!
    Em cada galho há um ninho
    E em cada ninho um cantor.

    Oh! Que mágico transporte!
    Que ideal transformação!
    Sinto em mim pulsar mais forte,
    Remoçado o coração.
    ___

    Em silêncio dorme tudo
    Cessou o sonho afinal,
    Outra vez ele está mudo,
    Não sonha mais Portugal.

    Tristeza enorme então pesa
    Pelos montes e valados;
    Parece até que alguém reza
    Por parentes já finados.

    Como está diverso agora!
    Olhem bem para o seu rosto,
    Tem a cor rósea do mosto
    Feito das uvas da aurora.

    É a vida que renasce
    Cheia de seiva e saúde;
    Da rosa o brilho fugace
    Empresta-lhe a cada face
    O viço da juventude.

    Gritos feros ouve e alarmas
    Correm soldados às armas,
    Há tiros na praça pública,
    E a populaça vesana
    Clama nas ruas: Hosana!
    Hosana! Viva a república.

    A esse grito de alerta,
    Que ecoou de serra em serra,
    Como um bramido de guerra,
    Levado pelo tufão;
    Da pátria a alma desperta,
    Num mesmo laço de amor
    E atira contra o opressor
    A algema da escravidão.

    Despertou Portugal! Ei-lo enfim acordado
    Pronto a recomeçar o poema do passado!
                A liberdade na França
                Quase morta, cai exangue,
                Numa agonia que gela,
                Portugal sopesa a lança
                Corre presto a defendê-la
                A custa do próprio sangue.

    Portugal despertou. Ei-lo enfim acordado.
    Pronto a recomeçar o poema do passado
    Como o povo judeu às iras de Moisés,
    O mar humildemente estira-se-lhe aos pés.
    Revoltado inda há pouco e temeroso agora
    Às plantas do senhor misericórdia implora.

    Um canto suave adeja
    Do ar na inconsistência,
    É um povo que festeja
    A sua independência.

    Presa na mesma cadeira
    Do amor pátria, fibra a fibra,
    De prazer e gáudio cheia
    Uma população vibra.

    E o país que em tanto brilho
    Lembra o dia, folgazão,
    Em que liberto se viu
    E livre andou, e sorriu
    Da liberdade ao rastilho.
    Noutros tempos foi teu filho,
    Portugal e é teu irmão.

    Abre uma via no espaço,
    Dos ventos ao desabrigo,
    Vai levar ao povo amigo
    O teu fraternal abraço.

    Este e os próximos poemas encontrados no espólio do autor, preservado por Rosalvo do Valle, são anexos a estas Silhuetas. Ainda há outros poemas que poderão ser inseridos nas próximas edições ou formar com estes um terceiro volume.

    No manuscrito, parece ser “nunaz”.

    No manuscrito, parece ser “Numo”.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011