Muitas vezes relegado
ao esquecimento ou talvez apenas matéria de discussão entre poucos
especialistas da língua latina em seus vários estágios lingüístico-
históricos apresentava-se um texto fundamental para os estudiosos da
latinidade e de seus rebentos românicos. Apresentava-se, ressalto
eu, pois vem à lume em momento mais que oportuno um dos mais
importantes trabalhos acadêmicos elaborados no Brasil acerca da Peregrinato Aetheriae ad loca sancta, cuja publicação se deve à
Academia Brasileira de Filologia e autoria ao eminente latinista,
Rosalvo do Valle.
A peregrinação da
famosa monja, que imortalizou seu nome e descortinou aos olhos
ocidentais, possivelmente galegos, os percalços de uma viagem às
raízes do Cristianismo, traz consigo também, através do seu texto,
as marcas testemunhais das transformações que ocorriam no sermo
latinus, rumo à plêiade de possíveis usos do que lingüística e
filologicamente se convencionou denominar “latim medieval”.
As Considerações
sobre a “Peregrinatio Aetheriae”, do mestre Rosalvo do Valle,
seguem uma linha de seriíssimos estudos sobre a obra, que possuem,
em nosso ver, três marcos em terras brasílicas: os Estudos sobre
a sintaxe nominal na “Peregrinatio Aetheriae” (1963), de
Evanildo Bechara, a tradução do texto latino para o português feita
por Maria da Glória Novak (1971) e as já citadas Considerações (1975) do ex-catedrático de língua latina da Universidade Federal
Fluminense.
Neste texto
introdutório, à guisa de Prefácio, pois, não se falará resumidamente
sobre o teor cristão do texto egeriano, já aludido pelo latinista
Amós Coelho da Silva, nem sobre o legado da Peregrinatio,
analisado sob a ótica da contribuição para o estudo diacrônico da
língua portuguesa pelo professor José Mário Botelho. Nosso viés toca
a linha de ruptura e/ou continuidade de duas épocas históricas –
Antigüidade Tardia e Alta Idade Média, em que a língua do Lácio era
não apenas o principal instrumento veiculador de cultura, mas também
criador da mesma.
Partindo dessa
premissa, Rosalvo do Valle (1975, p. 23) salienta que a monja “nos
legou uma preciosa fonte de informações lingüísticas, históricas e
litúrgicas”. Tratando do primeiro ponto, os dados lingüísticos,
aponta o estudioso fluminense para o fato de que o relato de Etéria
contém vários latins (1975, p. 30), incidindo aqui nossas palavras.
A modalidade de latim
que serviu de base à redação da Peregrinatio é muito bem
discutida pelo latinista brasileiro, ao arrolar, pelo menos, três
elementos que formam o tecido egeriano: o sermo classicus, o sermo quotiduanus e o sermo ecclesiasticus. Este
verdadeiro tecido lingüístico nos fornece um rico e vivo painel das
mudanças no mundo clássico tardio, que iria em breve desembocar nos
albores da Idade Média e se expressar majoritariamente no mundo
ocidental através do latim medieval.
Dag Norberg, Karl
Langosch, Christine Mohrmann, Albert Blaise, Jozef Schringen e Karl
Strecker, dentre outros, já se debruçaram sobre a conceituação de
latim medieval e o que nos chama a atenção é o fato de que as
variações de latim acima elencadas por Rosalvo do Valle em sua
primorosa análise do texto da monja galega configuram a pluralidade
lingüística do latim medieval. Portanto, Egéria, em um documento que
atesta usos lingüísticos do latim expressos em um vocabulário, do
qual surgirá em muitos casos formas correntes nas atuais línguas
românicas, pode também ser considerada uma precursora do sermo latinus medievalis.
A Academia Brasileira
de Filologia ao oferecer ao prelo o texto de Rosalvo do Valle
permite a todos acompanhar a reflexão séria e extremamente precisa
do pesquisador sobre uma viagem de uma religiosa não apenas à Terra
Santa e adjacências, mas também a um mundo em processo de renovação,
em que o antigo e o coevo se fundiriam perenemente na Idade Média!
Rio de Janeiro, 27 de
abril de 2008
Álvaro Alfredo Bragança Júnior |