Sumário

Contribuição
para o estudo diacrônico
da língua portuguesa
em Perigrinatio Aetheriae

Capítulo I

 

Entre nós, estudiosos da história da língua portuguesa, mais propriamente da sua história externa, é pacífica a afirmação de que a sua origem mediata é o latim vulgar. Justifica-se tal afirmação não só pelas semelhanças fonéticas, léxicas, morfológicas e sintáticas, mas, sobretudo, pelo fato de a origem imediata da língua portuguesa estar relacionada a romanços – usos orais –, que se desenvolveram a partir do processo de dialetação da língua latina na Península Ibérica após a queda do Império Romano.

Contudo, não é pacífico entre os latinistas, romanistas e lingüistas o conceito de latim vulgar, como bem observa o eminente latinista, Rosalvo do Valle, nestas suas Considerações sobre a Perigrinatio Aetheriae, que muito me honra prefaciar.

De fato, são merecedores de ênfase as observações e os comentários sobre o fenômeno oral em língua latina, feitos pelo mestre, citando as concepções, algumas vezes conflitantes e outras vezes nem tanto, de vários estudiosos como Väänänen, Marouzeau, Sedgwick, Maurer, Dias y Dias, Silvio Elia, Silva Neto e outros.

Igualmente merecedores de louvor são a importância da formação do cristianismo, destacada pelo Prof. Amós Coêlho da Silva, e a identidade dos três elementos que compõem o texto eteriano – o sermo classicus, o sermo quotidianus e o sermo ecclesiasticus –, destacada pelo Prof. Álvaro Alfredo Bragança Júnior, que constatamos nesta obra do querido mestre Rosalvo.

Não obstante, a mim coube destacar elementos que contribuem para o estudo diacrônico do português, o que passo a fazer de forma sintética, mormente porque se trata de um prefácio.

No terceiro capítulo, depois de ressaltar o número exaustivo de ocorrências e exemplificações na obra de Van Oorde, Rosalvo anuncia que vai limitar-se a alguns aspectos do vocabulário eteriano. Contudo, o mestre nos oferece subsídios suficientes para observarmos certas tendências que se generalizaram na língua corrente: palavras afetivas, de natureza familiar ou popular, empréstimos, neologismos, efetivação do processo de sufixação (em especial, do sufixo de diminutivo, que Rosalvo afirma ser escasso na Perigrinatio) e de prefixação e preferência por perífrases.

Dos muitos exemplos de sufixos arrolados pelo mestre, a maioria se observa na língua portuguesa dos nossos dias, como é o caso do genitivo de “-io”, “-tio” e “-sio”: “-onis” (comemoração, operação, paixão, razão); de “-tat” (humanidade, necessidade, solenidade); de “-mentum” (rolamento, firmamento); de “ona” (matrona, chorona); de “-ela” (cadela, didadela); de “-bilis” (venerável, impossível); de “-osus” (arenoso, formoso,); de “-arius” (contrário, primário, primeiro, obreiro); e tantos outros, muitos dos quais não são sentidos como sufixos atualmente, como é o caso de “-(c)ulus”, em palavras como: abelha, orelha, ou o próprio “-tat” em: idade, verdade, cidade, entre outros sufixos.

No capítulo seguinte, sob o título “Alguns fatos gramaticais”, Rosalvo nos esclarece, em “questões de grafia”, a perda da aspiração do “h” inicial, que ainda hoje se mantém na grafia do português (hóstia, hoje, hora etc.) e do medial, que sofreu síncope (mim, depreender etc.); também oferece subsídios para compreendermos a apócope do “-m” final dos nomes e do “-t” final das formas verbais de 3ª pessoa.

Em Morfologia Nominal, esclarece que a autora da Perigrinatio demonstra certa erudição. Logo, o texto não nos oferece subsídios para o estudo diacrônico de morfologia do português. Já na Morfologia Verbal, o mestre ressalta a confusão entre verbos de 2ª, 3ª e 4ª conjugações e a tendência a um quadro simplificado a três conjugações, como o é em português. Comenta, ainda, sobre a situação complexa da construção pronominal, que ora equivale à passiva, ora à ativa, cujo pronome ou é um complemento verbal em acusativo ou é um elemento estilístico, como também ocorre no português.

Na Sintaxe, o mestre faz observações importantíssimas sobre a ordem direta dos termos na frase eteriana, sobre os elementos discursivos, sobre o largo uso de preposições e de locuções prepositivas, e sobre a preferência por orações desenvolvidas.

Apesar de eu ter-me alongado, muito ainda se poderia ressaltar desta obra, que representa um estudo de expressivo valor para quaisquer interessados em questões de linguagem (oralidade e escrita e cultura escrita) e, mormente em aspectos diacrônicos da língua portuguesa.

Ao efetivar a publicação desta obra, a Academia Brasileira de Filologia põe à disposição do público em geral uma pesquisa, cuja falta já se fazia sentir. De fato, presta uma justa homenagem ao Prof. Rosalvo do Valle e presenteia a todos nós com esta indispensável obra.

 

Rio de Janeiro, 29 de abril de 2008
José Mario Botelho