1. É bastante
significativo que a “Peregrinatio Aetheriae” venha sempre
relacionada entres as chamadas fontes do latim vulgar. Na verdade,
não é difícil arrolar na obra um bom número de exemplos que não se
enquadram nos padrões da gramática latina tradicional, que oferece
uma sistematização de fatos colhidos nos “bons” escritores do
período clássico da literatura latina, entendido geralmente como as
épocas de Cícero e de Augusto. É certo que muitos daqueles exemplos
não são estranhos nos “bons” autores quando seus textos assumem um
tom de familiaridade, de espontaneidade, de informalismo, ou quando
de fato refletem a linguagem do homem sem instrução. Mas de modo
geral não passaram à literatura porque a consciência de um ideal
literário firmou um padrão pelo qual as pessoas cultas pautavam sua
linguagem mais formal, evitando fatos considerados “vulgares”.
Porém, continuaram na comunicação oral
e podem estar atestados nas línguas românicas.
Seria, portanto,
absurdo imaginar que os tratadistas queiram dizer que a “Peregrinatio Aetheriae” reproduza a língua popular. A inclusão
dessa obra entre as ditas fontes se justifica pelo número apreciável
de formas da língua corrente ali atestadas.
Mas é também
certíssimo que esse texto apresenta, e bem mais numerosos, exemplos
de um latim cuidado, por vezes até construções de certo requinte
literário, denunciadores de boa formação escolar, na linha daquele
padrão lingüístico ideal que se impôs em toda a latinidade.
Têm, pois, todo
cabimento as críticas transcritas no capítulo anterior, de Väänänen e Diaz y Diaz a uma opinião, muito generalizada, que considera o
texto eteriano um dos mais característicos do latim vulgar.
Ainda mais peremptório é o nosso ilustre romanista Theodoro Maurer
em O Problema do Latim
Vulgar:
um exame da Peregrinatio ad loca
sancta dará exatamente o mesmo resultado [que o de Petrônio].
Temos ali, em boa parte, um vocabulário desconhecido do romance; a
gramática, apesar de numerosos senões, não é popular, encontrando-se
ainda as formas da conjugação depoente e passiva, tempos do
indicativo e do subjuntivo já perdidos na língua vulgar (se o futuro
é excepcional, isto se explica por serem raras as ocasiões de
empregá-lo), formas nominais variadas etc. Um fato que denuncia eloqüentemente
o caráter escolar e, muitas vezes, “artificial” da linguagem desta
obra é o emprego das formas plenas dos perfeitos em –avi e –ivi. Não
há dúvida de que elas estavam inteiramente mortas no uso popular; de
fato, mesmo no uso clássico já eram menos comuns do que as
sincopadas. No entanto, ocorrem com muita freqüência na Peregrinatio... Ao lado destas formas “gramaticais” ocorrem às vezes as outras
(Maurer, 1959, p. 26).
Ora o caráter
escolar e, muitas vezes, “artificial” da linguagem eteriana é
perfeitamente compreensível, uma vez que decorre da linguagem
adquirida, que sempre se pautou pelos modelos do bem dizer da
literatura clássica, que veio a tornar-se através dos séculos
exemple et norme de la langue
cultivée et, qui plus est, objet et norme de tout enseignement
scolaire; l’ enseignement ne quittera plus desormais la norme,
etablie une fois pour toutes, et qui était la même dans tout
l’Empire occidental. De cette manière l’école est devenue le
champion de la langue cultivée
et litteraire (Mohrmann, 1961, II, p. 135).
A mesma razão
explica o tom arcaizante que alguns autores observam na língua de
Etéria diante de uma realidade oral bem diversa no IV e V séculos,
época em que a maior parte dos elementos do romance antigo já deviam
ser correntes (Cf.
Maurer, 1962, p. 105).
Tem razão De Groot ao afirmar:
il nous semble assez probable que la
langue des discours de Cicéron est liée plus organiquement à langue
de son temps et de son lieu que la langue de la Peregrinatio à celle
de son auter (Apud Maurer, 1962, p. 142, nota 196).
2. Da leitura
meditada dos autores fica-nos a impressão de que todos (ou quase
todos) querem dizer a mesma coisa. Então, parece-nos que o primeiro
problema é definir alguns termos realmente equívocos referentes aos
diversos usos lingüísticos do latim. Não se trata de rotular a
realidade complexíssima de um texto e de enquadrá-lo num tipo de
língua, mas distinguir as variantes, presentes, todas, no saber
lingüístico do autor e que lhe permitem realizar na obra vários
registros. O reconhecimento da impossibilidade dessa rigidez
classificatória por falta de uma formulação clara das variantes
lingüísticas do latim é que deve explicar algumas frases de sentido
muito fugidio de Enio Fonda anotadas no capítulo anterior.
3. Então, no
latim da Peregrinatio Aetheriae é preciso distinguir os
seguintes elementos:
a) Os que
denunciam a formação escolar da autora, que, repetimos, ao escrever,
tem como padrão lingüístico ideal a língua literária do período
clássico, que se impôs por toda a época imperial;
b) Os que
denunciam um uso corrente, a língua falada familiarmente pelas
pessoas cultas, um latim bem mais livre em relação ao clássico, mas
não rigorosamente vulgar. Com as devidas ressalvas, em face da
observação há pouco citada de De Groot, seria aquele sermo
quotidianus a que se refere Cícero na conhecida carta a Peto;
c) Os que
denunciam a educação cristã da autora, representados por um enorme
contingente de cristianismos, sobretudo léxicos. Diga-se de passagem
que se a obra não revela maior influência dos clássicos pagãos,
também não revela maior convívio com os “clássicos” cristãos, alguns
contemporâneos da peregrina, como S. Jerônimo e Santo Agostinho. A
leitura básica de Etéria é a Bíblia, possivelmente não a Vulgata, mas as versões pré-jeronimianas conhecidas por Vetus
Latina, “uma das mais ricas fontes para o conhecimento do latim
vulgar” (Elia,
1974, p. 42).
É o caso de perguntar se não bastaria falar o só do latim vulgar ou
só do latim cristão da Peregrinatio. A resposta dependerá de
nosso conceito dessas variantes. Desde já, porém, adiantaremos o
serviço dizendo que chegamos à mesma conclusão de Silvio Elia de que
“não se deve... identificar sumariamente o latim cristão com o latim
vulgar” (ibidem,
p. 20),
como faz a escola holandesa. Por agora, lembramos apenas um fato já
focalizado por Christine Mohrmann ao tratar dos elementos vulgares
do latim dos cristãos: as relações entre o latim arcaico e o latim
tardio. Muitas palavras e construções encontradas em textos arcaicos
que, porém, a língua clássica não acolheu reaparecem nos autores
cristãos, “d’abord dans les textes vulgaires, plus tard aussi dans
les documents rédigés dans une langue culturelle” (Mohrmann,
1965, III, p. 39).
É evidente que tais formas continuaram vivas na comunicação oral, no
“latim vulgar”; a literatura oficial num período de exigente ideal
artístico não as atesta, mas sua continuidade na língua oral está
assegurada pelo seu reingresso na literatura tardia.
São vulgarismos
antigos, da velha língua. Mas em formações mais recentes também se
observa a tendência vulgarizante do latim dos cristãos. Aliás, a
aceitação de novas formas do latim cristão a nosso ver se deve
explicar, também, pelo fato de que tais formas, criadas sem
violentar as tendências da língua comum, não deveriam chocar a
consciência lingüística dos falantes. Quando já está constituída uma
literatura cristã; quando por volta do IV século já é possível falar
num usus loquendi ecclesiasticus ou numa ecclesiastica
loquendi consuetudo, a oposição clássico/vulgar está novamente
em questão: o latim culto da correspondência de S. Cipriano e o
latim vulgar dos sermões de S. Agostinho; o estilo multum
obscurus de Tertuliano e o estilo claro, persuasivo de S.
Cipriano, mas somente inteligível para os fiéis (ibidem,
p. 20); no
mesmo S. Agostinho, a língua da pregação ao alcance de todos, e a
língua requintada do De Civitate Dei; o caráter popular dos
antigos textos bíblicos e a versão mais cuidada da Vulgata.
4. A respeito de
latim vulgar digamos logo que não pretendemos discutir a propriedade
ou impropriedade da denominação. Inadequada, equívoca, errônea, ela
está, porém, consagrada, apesar das já surradas críticas: Vulgärlatein, vulgar latin, latin vulgaire, latín vulgar, latino
volgare. Outras denominações – latim coloquial, familiar, usual,
corrente, cotidiano, da conversação; ou, à latina, sermo
plebeius, vulgaris, usualis, cotidianus – não conseguiram
quebrar a resistência dessa denominação que herdamos dos antigos
retóricos e gramáticos por via dos lingüistas do século XIX. Alguns
especialistas exprimem de outro modo suas restrições à velha
denominação: “El llamado ‘latín vulgar’” (Coseriu), “Les formes du
latin dit ‘vulgaire’” (Christine Mohrmann)... Entre nós é
conhecidíssimo o caso de Serafim da Silva Neto. Mas sua preocupação
não era discutir nomes. Mestre Serafim, constante refundidor e
tormento do editor, revela uma permanente preocupação em “procurar
uma formulação teórica mais rigorosa acerca do conceito de latim
vulgar” (Silva
Neto, 1957, p. 28).
Para nós a
oposição latim clássico/latim vulgar coloca-se, em princípio, em
termos de língua escrita/língua falada. Latim clássico era a língua
escrita, que dos minguados recursos dos textos, ainda grandemente
impregnados da oralidade, chegou na época de Cícero e Augusto a um
grau de elaboração artística que se julgou insuperável e se tornou
modelo da literatura posterior. Latim vulgar era o latim falado por
todas as classes sociais em todos os lugares, em todo o período
latino. Entendido como um ato de fala cuja finalidade principal era
o simples intercâmbio social, é natural dizer que não há textos
escritos em latim vulgar. Bonfante é incisivo: “No creo que se pueda
decir que tenemos tres lineas escritas em latín vulgar”. Mas
continua: “Por otra parte, tampoco existe – creo – autor ni obra
latina alguna completamente exenta de palabras o expresiones
vulgares o populares” (Bonfante,
1936, p. 77-78).
Portanto, não está invalidada a documentação que podemos extrair,
com a devida cautela, das chamadas fontes do latim vulgar. É que os
textos escritos, por assumirem sempre um tom formal que a tradição
literária impunha, não nos permitem recolher senão fragmentos do que
teria sido a língua oral. O prestígio dos chamados bons autores e o
ensino escolar que enfatizava a imitação desses modelos tornaram a
língua escrita – ressalvadas as peculiaridades individuais – muito
uniforme, como se verá adiante. É, pois, impossível fazer uma idéia
de todas as variantes sincrônicas, “cronologicamente simultâneas, observáveis num mesmo plano temporal” (Carvalho,
1967, I, p. 316),
do latim de qualquer período.
A precariedade
dos elementos colhidos na tradição escrita levou os romanistas à
valorização de um processo indireto de conhecimento do latim vulgar,
a reconstituição, partindo da comparação das línguas românicas. A
esses dois modos de ver o latim vulgar – como a língua viva que se
pode recolher dos textos, embora fragmentariamente, ou como um
conjunto de reconstruções que formam a base comum das línguas
românicas – costumam os alemães chamar Umgansprache e Ursprache, respectivamente.
Outra conclusão,
nem sempre claramente exposta em certas obras, é que não se deve
entender o latim vulgar como uma língua falada com uniformidade em
todo o período latino e em todo o império romano; também, as formas
vulgares, colhidas nos textos ou reconstituídas, não “se integram
numa entidade lingüística homogênea, idioma ou língua com existência
real e individualidade própria” (Carvalho,
1960-61, p. 61).
5. A conceituação
que adotamos não é, porém, unânime, como também não há total
concordância dos especialistas sobre alguns atestados, muito
conhecidos aliás, dos autores romanos sobre a diversidade dos usos
do latim.
Como essa matéria
constitui um dos pontos fundamentais de posições que assumimos nesta
tese e na orientação de nossos cursos de Latim, vamos deter-nos um
pouco mais. Começaremos pelos romanos; depois veremos três posições
que ressaltam a atualidade desses estudos e comprovam a necessidade
de outra visão lingüística do problema.
6. A literatura
latina é riquíssima de informações sobre as variações lingüísticas.
Esta fascinante matéria tem sido objeto de inúmeros estudos que
focalizam a simples curiosidade lingüística dos romanos, ou o
pensamento mais elaborado dos gramáticos. E não é privativa de
latinistas, como se pode ver de seu tratamento nas publicações, cada
vez mais numerosas, de histórias da Lingüística e da Filologia.
Tomaremos como
cicerone um autor que acumula as funções de profundo conhecedor da
latinidade e de lingüista de agudíssima percepção: Jules Marouzeau.
Num belo artigo em que estuda os conceitos de latinitas,
urbanitas e rusticitas (Marouzeau,
1949, p. 7-25), Marouzeau transcreve inúmeros atestados dos autores latinos. Ali
está claríssima a distinção entre um sermo urbanus e sermones rustici e peregrini. O primeiro é a língua da urbs, de Roma, vale dizer o latim das pessoas cultas, que na
estrutura político-social constituíam a aristocracia. O sermo
rusticus é a língua dos camponeses e aldeões sem instrução que
viviam na zona rural em torno de Roma, e em cuja fala se percebiam
logo traços fonéticos típicos da rustica vox et agrestis: mesium por maesium, plostrum por plaustrum, speca por spica, preferência por /u/ (forma nimis
rusticana) a /i/ (forma elegantior) nas condições em que
essas vogais no interior do vocábulo ofereciam as variantes /u/ /i/
(lacubus/lacibus) etc...
O sermo
peregrinus é o falar de outras províncias, de traços fonéticos
facilmente perceptíveis, mas cuja maior contribuição se manifesta no
vocabulário: em Lanúvio se diz mane por bonum; em
Preneste, conea por ciconia; em Mársio herna (hernae)
por saxa.
6.1 Ora, na
complexa estrutura social da transição da República para o Império
baseada na riqueza há, em linhas gerais, uma aristocracia
privilegiada, reduzida, e uma imensa população constituída pelas
classes populares, pelos pequenos proprietários rurais, por clientes
e escravos. Então, quando os romanos identificam o falar das pessoas
do campo e o distinguem do latim urbano, penso que a oposição
cidade/campo deve ser entendida fundamentalmente em termos
socioculturais e equivale a culto-inculto. Os “erros” dos campesinos
denunciam a sua incultura em face do latim “correto” da elite
cultural da urbs, vale dizer da aristocracia. É
compreensível, pois, que inúmeros desses traços rurais figurem entre
as características do chamado latim vulgar. Penso que seria
preferível aqui falarmos não só de variantes regionais, mas também
de variantes socioculturais.
6.2 Elementos
também chocantes para o homem culto da urbs e contra os quais
era preciso preservar “o bom uso” da língua de Roma são os que vêm
do exterior, das províncias, aos quais Quintiliano chama peregrina et externa (Quint., Inst. Orat., VIII, 1,2) (Marouzeau,
1949, p. 10).
Peregrinismos e
rusticismos merecem de Cícero e Quintiliano igual tratamento em face
da norma culta urbana:
Non solum rusticam asperitatem, sed
etiam peregrinam insolentiam fugere discamus (Cic., De Orat.
III, 12, 44);
Emendata erit (pronuntiatio)... si
nulla rusticitas neque peregrinitas resonet (Quint., Inst. Orat., XI, 3, 30).
Curioso é que
esses dois mestres da latinidade eram também “peregrini in urbe”,
como, aliás, a maioria dos escritores latinos. Compreendemos as
razões de Marouzeau ao englobar peregrinismos e rusticismos na
denominação genérica de particularidades regionais, já que
la vie provinciale est
essentiellement rurale, et qu’en particulier les défauts les plus
sensibles sont ceux qui se manifestent dans le voisinage de Rome, au
sein d’une population de campagnards (ibidem, p. 10).
Esse
entendimento, aliás, justificaria a pertinência de uma oposição urbanitas x rusticitas/peregrinitas. Mas o fato mesmo de
os latinos terem distinguido rusticitas de peregrinistas (o rusticus é o camponês, o homem habituado ao trabalho
duro do campo, de onde o sentido de “grosseiro, rude, selvagem”; o peregrinus é o estrangeiro, o provincial; o rusticus não é sentido como uma pessoa “de fora” em Roma e sim como um homem
que não tem hábitos urbanos) – este fato, mas não só
este, nos leva a considerar o sermo provincialis ou peregrinus entre as variantes locais ou regionais de que trata a
dialetologia horizontal.
Há,
evidentemente, outros fatores a considerar e não queremos
radicalizar posições; sabemos, por exemplo, do equívoco de se
extremarem arcaísmo e regionalismo, pois é conhecido o caráter
arcaizante, conservador da linguagem regional.
Esses vários sermones provinciales poderão ter o seu tom local mais ou menos
acentuado: é a africitas dos escritores africanos; é a patavinitas já observada por Anísio Polião em Tito Lívio; é o
“ar estranho e enfático que Cícero achava nos poetas cordubenses”; é
a “fortem et agrestem et Hispaniae consuetudinis” que Sêneca
verberava ao seu compatriota M. Porcius Latro” (Silva
Neto, 1957, p. 77).
6.3 Noutro tipo
de variantes devemos entender as referidas por Cícero em trechos já
muito divulgados pelos romanistas. Em Tagliavini recolho os
seguintes:
Quid tibi ego in epistulis videor?
Nonne plebeio sermone agere tecum? Causas agimus subtilius,
ornatius. Epistulas vero cotidianis verbis texere solemus (Ad.
fam., IX, 21).
Nolebam illum nostrum familiarem
semonem in alienas manus devenire (Ad. Atticum., I, 9).
Didicisti enim non posse nos Amafinii
aut Rabirii similes esse, qui nulla arte adhibita de rebus ante
oculos positis vulgari sermone disputant. (Academ. I, 2). (Tagliavini,
1969, p. 211, nota 3)
Trata-se agora
dos vários registros do mesmo emissor; na correspondência familiar,
o uso culto informal ou coloquial (sermo cotidianus);
nos discursos, o uso culto formal ou refletido (subtilius,
ornatius) com intuito literário.
Que sentido
teriam essas denominações no orador tão zeloso de seu mister, do
homem culto que tantas vezes criticou, por “errados”, os desvios da urbanitas?
Parecem sinônimas
as expressões plebeius sermo, cotidiana verba, ille noster
familiaris sermo (notar o valor expressivo dos pronomes: “aquela
nossa velha, conhecida linguagem familiar”), “vulgaris sermo”.
Aliás, Maurer (cf.
também Väänänen, 1963, p. 4-5)
já notara equivalência de sentido de sermo quotidianus e sermo uulgaris em Quintiliano (Ins. Orat., XII, 10,40):
ad hoc quidam nullam esse naturalem
putant eloquentiam, nisi quae sit quotidiano sermoni simillima quo
cum amicis, coniugibus, liberis servis loquamur;
nam mihi aliam quandam videtur habere naturam sermo
vulgaris, aliam viri eloquentis oratio (Maurer, 1962, p. 95).
Maurer traduz:
Além disto, entendem alguns que a
eloqüência nunca é natural, a não ser que seja muito semelhante à
linguagem quotidiana, a qual usamos ao falar com os amigos, com a
esposa, com os filhos e com os escravos;
Com efeito, a natureza da linguagem
comum parece-me diferente da do discurso de um orador.
É evidente que o
grande orador não escrevia suas cartas informais como o povo falava.
Nem falava com os íntimos como o homem inculto. As expressões plebeius sermo, cotidiana verba, familiaris sermo, vulgaris sermo,
parece-nos, referem-se fundamentalmente à língua falada da
comunicação diária, um tanto descuidada, espontânea, próxima da
língua em que todos se entendiam (“cum amicis, coniugibus, liberis,
servis loquamur”), porém não rigorosamente a língua vulgar.
Penso que os
atestados aqui transcritos justificam uma conhecida triconomia: sermo urbanus, entendendo como língua basicamente escrita,
literária; sermo familiaris (cotidianus), como a
língua basicamente falada pelas pessoas cultas e sermo vulgaris (plebeius), língua falada pelo povo.
Com alterações de
nomenclatura, é a posição de Sedgwick ao examinar a latinidade da Cena Trimalchionis: “Literary Latin”, “Colloquial Latin” e “Sermo plebeius”, variantes que o autor confronta com oito
“languages” do inglês (Sedgwick,
1964p. 17-18).
Evidentemente o
homem culto não se despoja de sua bagagem cultural quando fala. O
inculto, por sua vez, num esforço de ascensão social, tende a imitar
os mais cultos dentro de seus reduzidos recursos lingüísticos, o que
se agrava ao escrever, porque, de fato, a língua escrita lhe impõe
uma atitude mais formal.
Tem-se dito que
entre língua falada e língua escrita há uma diferença de grau. A
atividade lingüística do indivíduo se realiza, se atualiza com
finalidades mais práticas para a pronta comunicação, ou mais
refletidas para uma comunicação mais distante que exigirá do leitor
maior esforço de compreensão. Faltam aqui recursos lingüísticos ou
extralingüísticos que facilitam o intercâmbio social. Mas é evidente
que uma conversa pode ser extremamente formal, assim como um texto
escrito pode ser extremamente informal.
Parece-nos,
então, que a dominante no sermo urbanus é o formalismo; e no sermo familiaris, o informalismo. Daí que nessas distinções
teóricas o sermo familiaris (entendido como língua informal
das pessoas cultas) esteja muito próximo do sermo vulgaris (entendido como a língua oral, popular), sendo quase impossível
distingui-los.
Dissemos que a rusticitas e peregrinitas os romanos opunham urbanitas,
que linguisticamente está bem conceituada por Varrão e Quintiliano:
incorrupta loquendi obseruatio
secundum Romanam linguam (De Serm. Lat., I,1);
urbanitate significare uideo sermonem
prae se ferentem in uerbis et sono et usu proprium quemdam gustum
urbis (Inst. Orat., VI, 3, 17,);
illa est urbanitas, in qua nihil
absonum, nihil agreste, nihil inconditum, nihil peregrinum (Inst.
Orat., VI, 3, 107,);
Enfim: o ideal de
correção lingüística era a língua das pessoas cultas de Roma. E na
língua literária dois grandes modelos da latinidade antiga e
medieval foram Cícero e Virgílio, autores que, à semelhança de César
e Catulo e Horácio nem sempre evitaram vulgarismos.
Ao contrário, um
autor muito cotado entre os que integram o rol de fontes do latim
vulgar – Plauto – não é apontado por Marouzeau como “um exemplo de
purismo?”:
Le mérite de Plaute est de parler
proprement et purement “latin”; Plaute est un de ceux qui ont
maintenir dans sa pureté la langue de Rome; il est un des champions
de ce qui a été défini ci-dessus sous le nom d’“urbanitas” (Marouzeau, 1949, p. 27-28).
Plauto, campeão
da urbanitas!
Ora, as differentiae apontadas pelos autores latinos quando não são
distinções sutis, muito pessoais, na linha do que hoje se chama de
gramatiquice – decorrente, aliás, de um ideal purista – são fatos da
língua corrente dos latinos, da língua viva da comunicação oral.
Preciosas differentiae que os gramáticos de todas as épocas
condenaram, preocupados em redigir “guias de aurea latinitas para a leitura eficaz do velho patrimônio literário”! (Collart,
1972, p. 246)
Santo Isidoro de
Sevilha, excluído por J. Collart do número de gramáticos que se
limitaram ao “Diga não diga...” (porque “utilize differentiae et synonima comme une méthode pour la formation théologique
de ses lecteurs” (ibidem,
p. 245)
diz que a língua latina, aliás as línguas latinas são quatro. Vale a
pena transcrever o longo trecho para se ter uma idéia do que eram
essas variantes:
Latinas autem linguas quattuor esse
quidam dixerunt, id est Priscam, Latinam, Romanam, Mixtam. Prisca
est, quam vetustissimi Italiae sub Iano et Saturno sunt usi,
incondita, ut se habent carmina Saliorum. Latina, quam sub Latino et
regibus Tusci et ceteri in Latio sunt locuti, ex qua fuerunt
duodecim tabulae scriptae. Romana quae post reges exactos a populo
Romano coepta est, qua Naevius, Plautus, Ennius, Vergilius poetae,
et ex oratoribus Gracchus et Cato et Cícero vel cetere effuderunt.
Mixta, quae post imperium latius promotum simul cum moribus et
hominibus in Romanam civitatem inrupit, integritatem verbi per
soloecismos et barbarismos corrumpens. (Etymolologiarum Lib., IX, 1, 6-7).
Maurer comenta a
definição da língua mixta de Santo Isidoro: “Não poderia
haver definição melhor de latim vulgar” (Maurer,
1962, p. 96, nota 146).
Acrescentemos,
para confirmar esse comentário de Maurer, que um
pouco antes Santo Isidoro falando das cinco variantes da
língua grega diz: “...prima dicitur κολγή, id est mix-ta, sive communis quam omnes utuntur” (Etym. Lib., IX, 1,
4).
Fiquemos por
aqui. Procuramos interpretar alguns significativos trechos de
autores latinos que, ao documentar e comentar fatos de sua própria
língua, atestam uma percepção bastante nítida de variação
lingüística e garantem a autenticidade de muitas formas “vulgares”
que se generalizaram no românico.
7. Nos estudos de
gramática comparada do século XIX, pareceu aos romanistas
insatisfatório dizer simplesmente que as línguas românicas provêm do
latim. De fato, não convence a ninguém essa “filiação” quando se
tomam para confronto os textos literários que nos legaram os
escritores latinos. Concluíram, com razão, que as línguas românicas
se filiam a um outro latim. Então, criou-se a idéia de um latim
“vulgar”, de raízes eminentemente populares, na base da velha
distinção dos romanos, bem diferente do latim clássico da
literatura, como se fossem dois sistemas paralelos, independentes. E
em decorrência, tornou-se essencial caracterizar e descrever esse
sistema lingüístico.
7.1 Essa primeira
concepção de latim “vulgar”, entendido como a língua falada pelas
camadas sociais e culturais mais baixas do povo romano, vingou e até
hoje ainda tem muitos adeptos, ao menos quanto ao ponto básico da
questão que é identificar esse latim como essencialmente popular.
Entre os
romanistas brasileiros é o caso de Theodoro Augusto Maurer. Sua
posição é radical e está bem definida nos três postulados sobre os
quais assentam seus dois grandes livros (Maurer,
1959 e 1962).
Daí os três matizes do latim que aponta na pág. 53 de “O Problema
do Latim Vulgar” – “língua literária, língua coloquial urbana (sermo
quotidianus, urbanus) e língua vulgar (sermo plebeius,
rusticus), para logo depois (p. 54) fixar-se em apenas dois:
a) o latim
aristocrático (sermo urbanus), que na forma escrita constitui
o latim clássico, ou, em sentido restrito, o latim literário, e
b) o latim vulgar
(sermo plebeius), o latim da plebe romana.
Porém, esse
conceito inicial não poderia manter sua rígida formulação diante das
repercussões advindas de novas e sucessivas conquistas da
Lingüística e da Filologia, tais como a fixação mais rigorosa do
conceito de língua; a mudança de atitude quanto às reconstruções
lingüísticas; as contribuições da geografia lingüística para a
história das línguas (não mais entendida como “história de conjuntos
unitários”), a profunda repercussão da estilística com a valorização
das múltiplas realizações individuais dentro do mesmo sistema; a
mudança de uma mentalidade historicista para uma mentalidade
estruturalista etc.
Ao lado da
repercussão de novas orientações no conceito de latim vulgar, é
preciso considerar questionamentos que estão no interior do próprio
objeto conceituado, como diz Coseriu “modificaciones surgidas ‘de
dentro’, del mismo analisis del concepto y de su aplicación en la
gramática comparada de las lenguas romances”: diferenças regionais,
diferenças cronológicas, falta de unidade no próprio latim até mesmo
no latim literário, neologismos etc. (Coseriu,
1956p. 21-31).
Questionado por
latinistas, romanistas e lingüistas de tendências e épocas
diferentes, o conceito de latim vulgar vem recebendo diversas
formulações.
7.2 Outra
conceituação de latim vulgar considera-o a língua da conversação
diária. Como a formulou Hoffmann é a “Umgansprache”, “El latín
familiar”, como foi traduzida em espanhol sua grande obra, onde o
mestre alemão assim conceitua essa variante lingüística:
...la lengua familiar en
todos sus aspectos, el sermo familiaris de la conversación
culta, el sermo vulgaris del hombre corriente y el sermo plebeius del arrabal, con curso en las bajas e infimas esferas (Hoffmann,
1958, p. 2).
É, portanto, a
linguagem falada em geral, a linguagem de todas as camadas da
sociedade, em oposição ao latim escrito ou latim literário.
Entre nós é a
posição de que mais se aproxima Serafim da Silva Neto. Digo “mais se
aproxima” porque o nosso inolvidável romanista de fato enriqueceu
essa segunda concepção, quando destacou a importância dos sermones provinciales; quando ressaltou as realizações
individuais; quando frisou as constantes e irrefreáveis
interinfluências do intercâmbio social.
Bem colocado “a
meio caminho entre a filologia latina e a filologia românica” (Silva
Neto, 1957, p. 8),
posição que lhe permitiu uma visão prospectiva e uma visão
retrospectiva dos problemas referentes ao latim vulgar, Mestre
Serafim, com admirável visão lingüística, abriu a questão em vez de
fechá-la em esquemas rigorosos. Para ele “embora sem precisão
matemática”, é possível admitir quatro matizes da língua corrente: “familiar
“latim das classes médias, dos honestiores – influenciado
pela urbanitas); vulgar (latim das baixas camadas da
população, dos escravos); gírias (militar, dos gladiadores,
dos marinheiros etc.) provincial (idem,
ibidem,
p. 27). Ao
dizer que o “latim vulgar” (já agora, então, “latim corrente”) “é,
por excelência, uma língua falada, não escrita” (idem,
ibidem,
p. 36),
teve o cuidado de não extremar essas duas atividades lingüísticas.
Serafim da Silva Neto deve ser colocado numa terceira posição, não
exatamente a mesma, porém com a mesma ampla visão lingüística de um
Coseriu ou de um Herculano de Carvalho, para citar dois eminentes
lingüistas contemporâneos de cuja rigorosa interpretação teorética
nos servimos nesta tentativa de conceituação do latim vulgar.
8. Mas, Etéria é
cristã. E esta circunstância nos leva à terceira variante
lingüística que é preciso considerar na Peregrinatio: o latim cristão. E sobre este um nome tem de ser logo mencionado –
Christine Mohrmann, a sábia latinista de Nimegue, herdeira cultural
de Schrijnen, a quem devemos notáveis estudos sobre a latinidade
tardia e em particular sobre o latim dos cristãos. A ela é que
recorreremos mais especialmente.
Em vários estudos
Christine Mohrmann na linha da teoria do latim dos cristãos
formulada por Schrijnen e ampliada por seus discípulos – ela
sobretudo – procurou conceituar e caracterizar esse latim,
estabelecendo suas relações com a língua comum.
Para ela o latim
dos cristãos é uma
langue speciale, une variation de la
langue commune, qui est due à des facteurs d’ordre social et qui se
dévelloppe sur le fonds de la langue courante (Mohrmann, 1950, IV, p. 13).
Trata-se de uma
variante sociocultural, língua de uma pequena comunidade fortemente
solidária, unida espiritualmente pela fé cristã que cresceu de tal
forma, que veio a tornar-se a língua de toda a comunidade, em
decorrência do fato histórico da vitória do cristianismo. C.
Mohrmann acrescenta que “la langue spéciale ne se détâche jamais du
fonds dont elle est issue et d’où elle puise ses sèves” (idem,
ibidem).
Ora, esse fundo é precisamente o latim corrente, “vulgar”,
língua do amplo intercâmbio social.
É sabido que
razões de ordem psicológica e de ordem histórica aproximam desde
cedo a língua especial dos cristãos e a língua popular.
Psicologicamente, o cristianismo primitivo, para o qual a língua é
um instrumento de comunicação e não um instrumento convencional e
venerável, rejeitou o exclusivismo e o normativismo do latim culto,
resultantes de um cuidado excessivo da forma. A arte pela arte é bem
uma característica da cultura profana. Entre os cristãos
manifestou-se desde cedo uma reação contra esse artificialismo da
língua clássica. Para eles era mais importante a inteligibilidade.
Diz C. Mohrmann:
un utilitarisme assez extrême, prend
la place du conservatisme reverencieuse qui réglait la vie de la
langue cultivée dans les cercles païens (Mohrmann, 1965, III, p. 34).
É a mesma atitude
que no IV século, quando se manifesta um certo retorno às normas
tradicionais, S. Agostinho denuncia no De Doctrina Christiana. Esses desvios da norma clássica, essas infrações ao
convencional, não são o mais importante para o cristão, muito mais
preocupado com a sua salvação, e para quem as coisas (res)
valem muito mais que as palavras (signa). E comenta C.
Mohrmann:
Saint Augustin, ancien rhéteur formé
dans la tradition antique, sait bien que le pédantisme littéraire
est un des traits caractéristiques de son temps et se rend bien
compte du fait, qu’il est difficile de se soustraire à l’sprit de l’époque (ibidem, p.
35).
A esse caráter
mais utilitarista, menos formal da língua popular que aproximava
cristãos e pagãos deve-se acrescentar uma razão de ordem histórica,
muito conhecida, aliás. É que na origem
le christianisme a recruté ses
adeptes surtout dans les couches inférieures de la population des
grandes villes. C’est ainsi que s’associait à la parenté
psychologique que liait le parler des chrétiens à l’idiome vulgaire
le fait historique du caractère populaire des communautés
chrétiennes les plus anciennes
(ibidem, p. 36).
Já nos referimos
ao caráter popular das primeiras versões da Bíblia. Essa
característica chegou a provocar críticas de muitas pessoas cultas,
que, embora se sentissem atraídas pela nova ideologia, tinham
dificuldade em aceitar “a forma lingüística vulgar dos livros
santos” (Mohrmann,
1965, III, p. 37).
O povo, sob certos aspectos inovador, porém sob muitos mais
profundamente conservador, deveria preservar essas primitivas
versões que ele lia, e sobretudo ouvia e cantava nas reuniões e nas
igrejas. Então os vulgarismos foram incorporados definitivamente ao
patrimônio lingüístico dos cristãos, de tal forma, que o sábio S.
Jerônimo, ao dar à Vulgata uma forma lingüística e literária
menos vulgar, não hesitou em conservar muitos daqueles vulgarismos,
naturalmente porque já não eram sentidos como tais (Cf.
Mohrmann, 1965, III, p. 38).
Pois bem: os
estudiosos da Peregrinatio Aetheriae constataram as
correspondências entre as citações bíblicas da autora e a Vetus
Latina e têm afirmado que Etéria não conheceu a Vulgata.
Veja-se, por exemplo, Klein (1958).
Aí está a origem
dos vulgarismos da Peregrinatio Aetheriae:
a) a língua oral,
popular, já pelo V século bem diferente daquela que os textos
escritos nos transmitem;
b) o latim que a
nossa peregrina lia nas primitivas versões bíblicas e ouvia nas
pregações.
Etéria não revela
conhecimento dos “clássicos” cristãos, ela que seria contemporânea
de uma enorme expansão do latim dos cristãos, o qual vai quebrando o
rigorismo dos primeiros séculos e, agora fixado numa rica
literatura, já tem condições de apreciar – com as reservas
compreensíveis – os tesouros da cultura profana.
9. É hora de
concluir. De quanto se escreveu neste capítulo creio que podemos
chegar às seguintes conclusões:
Não há
contradição em se afirmar que a Peregrinatio Aetheriae é uma
fonte do latim vulgar, apesar do seu forte contingente da língua
culta.
É, de
fato, uma obra literária lato sensu por estar redigida numa
língua que procura seguir as normas da língua literária tradicional.
Mas é uma literatura que visa essencialmente à comunicação imediata.
A autora quer, sobretudo, fazer-se entender, de onde o tom coloquial
desse diário. Então a língua da obra é um latim culto/coloquial
cristão, numa época em que já se conhecia um usus loquendi
ecclesiasticus, um latim cristão que se denuncia logo pelo
vocabulário. A gramática – e não poderia ser de outra forma – é
basicamente a gramática latina tradicional com alguns “senões” que,
considerados erros numa outra sincronia (período clássico), são, na
verdade, formas de uma linguagem menos tensa, menos formal, muitas
vezes realmente populares, que na época imperial (especialmente a
partir do II século) vão cada vez mais ocorrendo nos textos. Mas
isto é matéria dos capítulos seguintes.
|