Quem já leu a Peregrinatio Aetheriae certamente terá notado uma característica
muito marcante da autora: registrar com fidelidade, e assim
transmitir cuidadosamente às suas irmãs, todas as ocorrências da
peregrinação, sobretudo aquelas relacionadas com fatos da Sagrada
Escritura, sem nada omitir, desde a mais ingênua observação até a
exaustiva liturgia da Semana Santa em Jerusalém. A todo instante
Etéria explica ou explica-se, repete, retoma o vocábulo ou a
construção, traduz ou transcreve alguns helenismos, refere ou cita
uma passagem bíblica, de tal forma que o seu diário de viagem se
torna um precioso documento pela minúcia, pelo cuidado nas
informações, enfim, pela preocupação com a verdade.
Juntamente com
esse conteúdo é preciso considerar os elementos formais que o
realizam na obra. Salta aos olhos o tom informal, familiar desse
diário fortemente impregnado de fatos da língua falada: predomínio
da coordenação, repetições, explicações, perífrases, abundância de
partículas (et, ergo, autem, nam, ...), pleonasmos,
anacolutos. Língua assim marcada pela oralidade, em oposição a uma
língua castigada, de requintada elaboração, o que não significa
falta de arte, ausência de ideal estético, já implícito no ato mesmo
de escrever. Dentro dessa informalidade, há evidentemente uma
elaboração estilística, que se manifesta, por exemplo, nos meios de
exprimir a repetição, a explicação, a duração, o ato de rezar, o
nascer do dia etc.
Mas a repetição
de palavras ou construções, sobretudo quando sobrecarregam o período
a curta distância, pode transmitir ao leitor a impressão de certa
monotonia, de língua pobre e desajeitada. É verdade que nem todos os
estudiosos da Peregrinatio pensam assim. Leo Spitzer, por
exemplo, vê nesse processo uma “hieratic slowness”, uma “sacred
monotony”, comunicando à narrativa eteriana algo de solene, de
estático, a conferir-lhe caráter de uma litania cativante:
The stereotyped
character of such scenes is obviously in harmony with the atmosphere
of static, saintly majesty which pervades the whole work. The
pilgrimage has its own hieratic decorum (Spitzer, 1959, p.
898).
Parece-nos muito justa a crítica de Vermeer:
La répétition des mêmes
mots peut, en effet, provenir d’une certaine paresse et lenteur
d’esprit; et dans ce cas elle est le fait des gens moins cultivés.
Mais elle peut aussi servir le besoin de clarté, l’intention
d’impressioner, comme elle peut procéder de l’émotion de l’auteur ou
viser à l’affet par des phrases rythmées et symétriques. Si ce que
dit Spitzer est exagéré, à notre avis on ne peut nier qu’en présence
d’un grand nombre de répétitions que se permet Égerie – et nous ne
pensons pas tout d’abord aux répétitions que sont à l’origine de
cette digression – on peut parler de valeur emphatique (Vermeer,
1965, p. 18-19).
Vermeer pensava
no vocabulário, e especialmente no vocabulário da viagem
propriamente dita (1-23), que ele estudou magnificamente. Poderemos,
contudo, estender a pesquisa a outros campos, especialmente à
sintaxe.
Na
impossibilidade de um levantamento exaustivo, comentaremos alguns
tipos de repetições e explicações. Advertimos desde logo que as
denominações, muito genéricas, de repetição e explicação não estão necessariamente associadas às figuras per adiectionem ou à correctio dos antigos retóricos. E isto, aliás, pela
natureza mesma da obra. Para nós, tais processos não resultam de uma
formação ou de uma intenção retórica; são como que índices de
oralidade da narrativa.
Aqui repetição inclui processos de reduplicação, insistência, redundância,
acumulação. Até mesmo a explicação, o esclarecimento, a retificação,
podem, a nosso ver, ser incluídas nesse título genérico.
As repetições nos
levam a outra consideração prévia, de certa relevância para o nosso
texto: o emprego freqüente das mesmas formas lingüísticas em
situações idênticas vai tornando-as fórmulas, chavões, que
abusivamente repetidas vão perdendo seu valor expressivo, tendendo
para o lugar-comum.
Na Peregrinatio é esse um dos elementos de monotonia já aqui
referida. Etéria manifesta uma forte tendência para a frase feita,
para a fórmula consagrada, o que também comprova o caráter “vulgar”
do seu latim.
Esses
cacoetes do estilo eteriano são freqüentíssimos, desde a repetição
de palavras até a repetição de construções.
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