Sumário

Capítulo V

ALGUNS ASPECTOS DA REPETICÃO
A MENTALIDADE "ID EST"

Repetições

  

Quem já leu a Peregrinatio Aetheriae certamente terá notado uma característica muito marcante da autora: registrar com fidelidade, e assim transmitir cuidadosamente às suas irmãs, todas as ocorrências da peregrinação, sobretudo aquelas relacionadas com fatos da Sagrada Escritura, sem nada omitir, desde a mais ingênua observação até a exaustiva liturgia da Semana Santa em Jerusalém. A todo instante Etéria explica ou explica-se, repete, retoma o vocábulo ou a construção, traduz ou transcreve alguns helenismos, refere ou cita uma passagem bíblica, de tal forma que o seu diário de viagem se torna um precioso documento pela minúcia, pelo cuidado nas informações, enfim, pela preocupação com a verdade.

Juntamente com esse conteúdo é preciso considerar os elementos formais que o realizam na obra. Salta aos olhos o tom informal, familiar desse diário fortemente impregnado de fatos da língua falada: predomínio da coordenação, repetições, explicações, perífrases, abundância de partículas (et, ergo, autem, nam, ...), pleonasmos, anacolutos. Língua assim marcada pela oralidade, em oposição a uma língua castigada, de requintada elaboração, o que não significa falta de arte, ausência de ideal estético, já implícito no ato mesmo de escrever. Dentro dessa informalidade, há evidentemente uma elaboração estilística, que se manifesta, por exemplo, nos meios de exprimir a repetição, a explicação, a duração, o ato de rezar, o nascer do dia etc.

Mas a repetição de palavras ou construções, sobretudo quando sobrecarregam o período a curta distância, pode transmitir ao leitor a impressão de certa monotonia, de língua pobre e desajeitada. É verdade que nem todos os estudiosos da Peregrinatio pensam assim. Leo Spitzer, por exemplo, vê nesse processo uma “hieratic slowness”, uma “sacred monotony”, comunicando à narrativa eteriana algo de solene, de estático, a conferir-lhe caráter de uma litania cativante:

The stereotyped character of such scenes is obviously in harmony with the atmosphere of static, saintly majesty which pervades the whole work. The pilgrimage has its own hieratic decorum (Spitzer, 1959, p. 898).

Parece-nos muito justa a crítica de Vermeer:

La répétition des mêmes mots peut, en effet, provenir d’une certaine paresse et lenteur d’esprit; et dans ce cas elle est le fait des gens moins cultivés. Mais elle peut aussi servir le besoin de clarté, l’intention d’impressioner, comme elle peut procéder de l’émotion de l’auteur ou viser à l’affet par des phrases rythmées et symétriques. Si ce que dit Spitzer est exagéré, à notre avis on ne peut nier qu’en présence d’un grand nombre de répétitions que se permet Égerie – et nous ne pensons pas tout d’abord aux répétitions que sont à l’origine de cette digression – on peut parler de valeur emphatique (Vermeer, 1965, p. 18-19).

Vermeer pensava no vocabulário, e especialmente no vocabulário da viagem propriamente dita (1-23), que ele estudou magnificamente. Poderemos, contudo, estender a pesquisa a outros campos, especialmente à sintaxe.

Na impossibilidade de um levantamento exaustivo, comentaremos alguns tipos de repetições e explicações. Advertimos desde logo que as denominações, muito genéricas, de repetição e explicação não estão necessariamente associadas às figuras per adiectionem ou à correctio dos antigos retóricos. E isto, aliás, pela natureza mesma da obra. Para nós, tais processos não resultam de uma formação ou de uma intenção retórica; são como que índices de oralidade da narrativa.

Aqui repetição inclui processos de reduplicação, insistência, redundância, acumulação. Até mesmo a explicação, o esclarecimento, a retificação, podem, a nosso ver, ser incluídas nesse título genérico.

As repetições nos levam a outra consideração prévia, de certa relevância para o nosso texto: o emprego freqüente das mesmas formas lingüísticas em situações idênticas vai tornando-as fórmulas, chavões, que abusivamente repetidas vão perdendo seu valor expressivo, tendendo para o lugar-comum.

Na Peregrinatio é esse um dos elementos de monotonia já aqui referida. Etéria manifesta uma forte tendência para a frase feita, para a fórmula consagrada, o que também comprova o caráter “vulgar” do seu latim.

Esses cacoetes do estilo eteriano são freqüentíssimos, desde a repetição de palavras até a repetição de construções.