Sumário

3. Estudos sobre a “Peregrinatio Aetheriae” em Português

Capítulo II

 

3.1 Ao contrário do que ocorre em outras línguas, a bibliografia sobre a Peregrinatio Aetheriae em português é pobríssima. Lamentavelmente continua atual a afirmação de Joaquim Ribeiro em 1935:

Ainda não se fez, que eu saiba, tanto em Portugal como no Brasil, uma edição desse documento precioso... (Cf. Silva Neto, 1956, p. 11)

Em Portugal, além de referências gerais em compêndios de Filologia Portuguesa só temos conhecimento de dois artigos: o de Francisco José Velozo, Etéria (séc. IV) e o latim lusitânico, separata da Revista de Portugal – série A: Língua Portuguesa, volume XXXI, Lisboa 1966, e o de Paulo Durão, S.J., Algumas observações sobre a linguagem da Peregrinação de Etéria, separata da Revista Bracara Augusta, vol. XXI, fasc. 47-48 (59-62), Braga, 1968.

O primeiro é um artigo de 46 páginas em que o erudito Francisco José Velozo não só defende a origem hispânica (possivelmente galega) de Etéria, mas ainda arrola exemplos do texto (p. 29-31) e organiza um “glossário eteriano-lusitânico” (!) (p. 36-47) para consignar

Algumas locuções que nos parecem sintomáticas para cabal apreciação do latim da Peregrinatio ou Itinerarium, como antepassado português e galego.

Vejam-se estes passos:

Inclinamo-nos porém a crê-la assim, da província romana da Galícia (p. 21);

Etéria representa aquele núcleo cultural e monástico de que Braga foi centro ... (p. 21)

Etéria, a, podemos dizê-lo com honra, nossa Éteria ... (p. 30);

A nossa compatriota ... (p. 34)

Se alguns dados históricos, já exaustivamente analisados por Zacharia García, S.J., principal fonte do autor, parecem convincentes, o material lingüístico – tratando-se de língua escrita, língua adquirida na escola onde sempre se ensinou a norma culta da aurea latinitas – o material lingüístico arrolado por Velozo não será muito diferente do de outro escritor cristão do IV século, ressalvadas, é claro, as peculiaridades estilísticas de cada um.

Veja-se, por exemplo, o confronto de Vermeer entre o vocabulário de Etéria e o de Antonio Placentino (Vermeer, 1965).

Tratando-se de uma variedade regional ou local, os traços relevantes desse latim lusitânico ou hispânico seriam do domínio do léxico. Ora, o vocabulário da Peregrinatio, como se verá adiante, nos tira qualquer ilusão quanto à hispanidade da língua de Etéria. Há poucos exemplos seguros, como plicare, português chegar, espanhol llegar, uma vez que alguns dos exemplos de sedere que muitos autores consideram com o sentido do português ser e do espanhol seer não são matéria pacífica. Apenas

revelam já o começo do esvaziamento semântico (Silva Neto, 1957, p. 113, nota 35).

Por outro lado, como explicar um italianismo como (se) iungere, “chegar”, italiano giungere? E o emprego de manducare (francês manger, italiano mangiare) em 13 exemplos contra nenhum de comedere (português comer, espanhol comeer)?

A verdade é que o latim vulgar de textos provenientes de províncias diferentes é mais ou menos o mesmo (Cf. Väänänen, 1963, p. 22).

O latim comum hispânico de Serafim da Silva Neto, como viu claramente o mestre, é

uma hipótese de trabalho, uma base sobre a qual estabelecemos a história lingüística, e não, evidentemente, uma língua viva (Silva Neto, 1923, p. 161).

O padre Paulo Durão, S.J. não pretende nas quatro breves páginas de seu artigo

apresentar a Peregrinação de Etéria, nem examinar o interesse histórico e litúrgico de tão curiosa narrativa,

mas

apenas chamar a atenção para algumas curiosas formas de sua linguagem, em razão da semelhança que nelas se verifica com o português atual (Durão, 1968, p. 5).

Também aqui, as palavras, breves locuções e giros de frase arrolados não são todos apenas hispânicos.

Mais recentemente tomamos conhecimento das recensões do padre J. Geraldes Freire, catedrático da Universidade de Coimbra, trabalhos citados na bibliografia.

 

3.2 No Brasil escreveu-se mais sobre a Peregrinatio. Há, primeiro, inúmeras referências à obra em Serafim da Silva Neto, História do Latim Vulgar (p. 116-18) e Fontes do Latim Vulgar (p. 11, 50, 87, 98, 99, 185); Theodoro Henrique Maurer Jr., Gramática do Latim Vulgar (p. 24, 62, 87, 88, 89, 99, 139, 189, 190, 191, 195, 198, 207, 208, 262, 277, 280) e O Problema do Latim Vulgar (p. 26, 27, 33, 105, 142); Silvio Elia, Preparação à Lingüística Românica (p. 42 e 43).

Mas há trabalhos específicos sobre os quais faremos breves comentários. Ei-los, em ordem cronológica:

1º - EVANILDO BECHARA, Estudos sobre a sintaxe nominal na Peregrinatio Aetheriae. Trabalho apresentado para o concurso de provimento da Cátedra de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, Rio de Janeiro, 1963, 45 páginas mimeografadas.

Bechara não pretendeu fazer um levantamento exaustivo do emprego dos casos na Peregrinatio. O seu propósito foi trazer à discussão aqueles empregos que atestam o tom coloquial da obra e interessam à Lingüística Românica.

Sempre bem avisado, o autor não incorre no vezo de considerar os exemplos arrolados como traços privativos de Etéria. Prudentemente, confronta-os com os de outros autores, frisando a continuidade de certos fatos da língua, presentes em autores arcaicos e em autores da latinidade tardia. Como seu alvo é a Romanística, Bechara recorre a todo momento às línguas românicas para, numa visão lingüística prospectiva, apontar a continuidade do fato latino-vulgar ou para confrontar construções. Ressalte-se a valorização da contribuição cristã. É também muito de notar-se a influência de autores nórdicos e alemães na formação científica do autor, em particular esse admirável Löfstedt, cuja obra Philologischer Komentar zur Peregrinatio Aetheriae continua de consulta obrigatória. Pena é que nem todos possam beneficiar-se da leitura dessa obra que – mirabile dictu – até hoje continua no original alemão.

 

2º - ENIO ALOISIO FONDA, O problema histórico da “Peregrinatio Aetheriae”, em Revista de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, vol. III, p. 137-169, artigo que ensejou sérias ponderações de Evanildo Bechara quanto ao nome da peregrina no estudo A Carta de Valério sobre Etéria, em Romanitas, vol. 6-7, 1965, p. 331-37. Aliás, a crítica de Bechara se aplica também a Zacharia García, que ao discutir a passagem de Aitheria a Egeria entende que

on explique facilemente le changement du t em g. Dans le latin vulgaire, on permuta quelque fois ces deux lettres (García, 1910, p. 386).

O erudito jesuíta voltou ao assunto no artigo EGERIA ou AETHERIA? Publicado em Analecta Bollandiana, tomus XXX, 1911, 444-47, em que propões a evolução Aitheria = Eideria = Eiđeria = Eiheria = Egeria.

Rien de surprenant dans ce procédé, qui est em parfait accord avec toutes les règles philologiques.

 

3º - ENIO ALOISIO FONDA, A Síntese Orgânica do “Itinerarium Aetheriae”, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, São Paulo, 1966, 190 páginas.

Trata-se de um trabalho que “em sua forma embrionária” serviu de tese de doutoramento em Língua e Literatura Latina na Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo em 1961. Rica de informações sobre a Peregrinatio, com o mérito maior de boa documentação colhida no original, a obra deixa-nos, porém, muitas interrogações sobretudo no que se refere ao que o autor chama aspecto “filológico-psicológico-estilístico” da problemática do Itinerarium (p. 99).


 

Fonda tinha objetivos bem diversos dos nossos. Preocupou-se mais com a “autonomia integral”, a “validade intríseca” da obra e não com o levantamento de “fatos filológicos isolados, possível contribuição para o estudo do latim vulgar” (p. 98), o que o levou a encarar os fatos “sob um ponto de vista menos filológico, e mais psicológico” (p. 100). É, pois, fundamentalmente um trabalho de interpretação estilística.

Foi-nos de grande valia a obra do Dr. Enio Fonda pelo fartíssimo material que reuniu e procurou analisar. Porém, no plano do nosso trabalho é fundamental a conceituação de variantes lingüísticas para situarmos o latim (ou os latins) de Etéria. E a este respeito a orientação lingüística de Enio Fonda nos parece muito flutuante, às vezes até contraditória, e nos deixa em dúvidas quanto ao que concluir da leitura de trechos como estes:

A língua de Etéria não pertence àquela que comumente chamam vulgar, mas antes a um tipo de língua mais livre e transcurada, quando considerada com o seu oposto artificial, o latim clássico ou língua literária (p. 91);

A língua de Etéria é o reflexo de um sermo cotidianus falado em terras e épocas que muito se distanciavam da Roma clássica (ibidem);

...o que Etéria escreveu não é apenas o reflexo de uma linguagem “vulgar”, mas sim do “latim tardio” (p. 115);

...o latim de Etéria não é senão o comumente falado (tardio ou cristão), mas que, já cristalizado numa língua definida, não deixa de ser, nem mesmo assim, língua literária (p. 121);

Nessa língua, pois, certa ou errada, clássica ou vulgar, que Etéria aprendera e falava...;

A língua de Etéria é vulgar, porque vulgar foi o termo com que se designou a língua latina dos menos cultos, a princípio, e do povo, a seguir, quando Roma principiava a perder sua influência... (p. 121 e 122);

Chamem-na como quiserem: latim vulgar, tardio ou cristão (p. 122); etc. ...

 

4º - O último trabalho publicado entre nós é a Peregrinação de Etéria – Liturgia e Catequese em Jerusalém no século IV: introdução, tradução do original latino e notas por Maria da Glória Novak. Comentário de Frei Alberto Beckhäuser, O.F.M. Editora Vozes Limitada, Petrópolis, RJ, 1971. Apresenta além do que o título indica, um comentário (p. 16-32) que a autora diz em nota estar baseado na Introdução de Hélène Pétré, uma bibliografia com 21 títulos, um breve glossário latino-português, três índices de óbvia utilidade e três ilustrações. Foge ao plano do nosso trabalho comentar a tradução que, diga-se de passagem, é em geral boa e de agradável leitura. Uma possível influência de Hélène Pétré, aliás confessada, não desmerece em nada o trabalho de Maria da Glória Novak, o qual passa a ser publicamente a primeira tradução em língua portuguesa dessa preciosa Peregrinatio Aetheriae.