A perda da
aspiração do h – inicial, fato considerado de origem rústica,
generalizou-se desde muito cedo no latim vulgar. As pessoas cultas
deviam tê-la mantido. O conhecidíssimo epigrama de Catulo contra
Árrio (Catulo, 84) nos dá conta de uma situação flutuante em que
aspirar ou não o h chegava a ocasionar fenômenos de
ultracorreção: hinsidias, Hionios, chommoda. Inscrições
populares atestam fartamente confusões de grafia. O Appendix
Probi corrige “hostiae non ostiae”. A recomendação
dos gramáticos perdura até a latinidade tardia. Santo Agostinho
dá-nos uma preciosa informação sobre a pedante articulação do h inicial:
si contra disciplinam grammaticam
sine adspiratione primae syllabae ominem dixerit, displiceat
magis hominibus, quam si contra tua praecepta hominem oderit, cum
sit hominem. (Confissões 1,18,29)
Como se sabe, não
há sobrevivência românica de aspiração do h – latino, uma vez
que o h “aspirado” francês é de origem germânica.
Na Peregrinatio há inúmeros exemplos de erros de grafia, alguns,
evidentemente, por ultracorreção: abitatio, abundo, heramentum,
hitur, hivit, hostium (ostium), ospitium, hornavit.
Com relação ao h medial, é provável que a perda da aspiração tenha
ocorrido antes da do h inicial, a julgar por atestados de
retóricos e gramáticos como Quintiliano, Aulo Gélio, Terêncio
Escauro que recomendam, por diversas razões, grafias sem “h” para deprehendere, ahenum, uehemens, incohare, traho. Aliás, o Apppendix Probi corrige “adhuc non aduc”. (Cf.
Grandgent, 1928, p. 165)
Ocorrem na Peregrinatio as grafias nichil, nichilominus e michi – embora não sejam unânimes os editores – às quais se aplica o
seguinte comentário de Grandgent:
Después que la h dejó de pronunciarse se dessarrolló una pronunciación escolástica de
la h como k, que ha persistido en la pronunciación
italiana del latín y ha afectado algunas palabras en otras lenguas (cf.
el ant. cat. mich por mi; el esp. aniquilar por anihilar etc.) (ibidem,
p. 167).
1.2 Quanto às
palavras gregas, observa-se a mesma confusão no caso de aspiração
representada pelo espírito rude: agíu (gr. άχίομ: hagíou), ebdomada (gr. έβδομάδα: hebdómada), (cf. hebdomadas e ebdomadarius), heremus (gr. ‘έρημοs: éremus), ymnus (gr. ΰμνος: hýmnus), eortae (gr.έορταί: heortai). olosericus (gr. óλοσηρıκós: holoserikós).
Registram-se
também exemplos de confusões de grafia das aspiradas θ (theta), χ (chi) e φ (phi): cathecisis (gr. κατήχηбіѕ: catéchesis),
cathecuminus (gr. κατηχοúμενοs: catechoúmenos),
neofitus (gr.
νέόφυτοs: neophytus). Não tenho elementos para conferir todas
essas grafias com o Codex Aretinus e tenho de louvar-me nos
editores que a esse respeito não são concordes. No caso de Antiochia, por exemplo, Hélène de Pétré padronizou essa forma,
mas diz no registro filológico: “anthiocia A, et sic saepius”
(nota 1 ao capítulo 18). Heraeus e Franceschini-Weber reproduzem o Codex Aretinus.
O confronto,
porém, não invalida o comentário aqui feito. Essas confusões de
grafia com ou sem implicações fonológicas têm vasta documentação em
latim. Veja-se, por exemplo, Mihäescu, O
Barbarismo, segundo os gramáticos latinos.
1.3 Ae, oe, e
Na Peregrinatio ocorrem inúmeros exemplos de ae, e para
representar a pronúncia vulgar |e| considerada um rusticismo
e condenada pelos gramáticos. Com o ditongo oe, de origem
diferente e muito menos freqüente, deu-se igual tratamento. Os
editores não acompanham sempre o Codex Aretinus, que aqui
transcrevemos: estimare (2,1), quedam (3,1), cepimus (coepimus) (3,2), ecclesie (3,4), etate (3,4), aque (4,2), cepit (coepit) (4,5), quecumque (4,5), Faranite (6,2), edificauerunt (7,6), domine (12,7), cede (caede)
(14,3), heramento (aeramento) (14,2), amenissimam (15,2), amenum (15,2), greco (15,3)
etc. etc.
1.4 –M final
O –m final
ocorre no texto de maneira muito confusa, o que comprova o
artificialismo da grafia que tenta refazer um traço fônico há muito
desaparecido, fato que os gramáticos latinos, as inscrições e as
línguas românicas confirmam.
Alguns exemplos: planissima (1,1) (A e F-W-P e H: planissimam); a(d) montem (6,3) (A e H-P e F-W: a monte); ecie (13,1) (=etiam,
P, H, F-W), uenisse (17,1) (A, H, F-W; P: uenissem); subito (43,5) (P, H, F-W: subitum); de passionem (37,5) (A e H; P e F-W: de passione); ciuitate (36,3:
A, H, F-W; P: ciuitatem); postmodu (27,3: A; P, H,
F-W: postmodum); statiua (23,2: A, H, F-W; P: statiuam); accedere (22,2: A, H, F-W; P: accederem); iacente lapidem (21,2: A, F-W; P e H: iacentem lapidem); locum (21,1: A; P, H, F-W: loco); in ciuitatem (20,8: A; P, H, F-W: in ciuitate); terra Gesse iam nosse (7,1: A, H, F-W; P: terram Gesse iam nossem) etc.
Sobre o
reconhecimento de um acusativo ou de um ablativo em formas como statiua, ciuitate, ualle, falaremos adiante.
A propósito de
grafias como dominum e domino, gratiam e gratia que na sua edição de Regula Magistri Corbett
declara não haver “confusion entre l’accusatif et l’ablatif
singulier, mais identité absolue”, é interessante uma observação de
Christine Mohrmann. A ilustre filóloga reconhece a exatidão daquele
comentário, mas acrescenta esta nota importantíssima para a crítica textual
que nos levará a retomar o assunto adiante:
dans une langue de civilisation ce
n’est jamais l’image auditive seule qui détermine la langue, même
pas chez les auterurs et les scribes “populaires”. Même si um scribe
prononce indifférenment dominum et domino, gratiam et gratia comme des formes identiques, il reste, par suíte de
l’enseignement scolaire qui distingue entre les différents cas, plus
du moins conscient du fait qu’il y a des cas divers caracterisés par
des désinences. C’est cette connaissance qui lui inspire des doutes
et des hésitations. En étudiant les textes, nous avons donc à tenir
compte d’une doublé image que influe sur le scribe: l’image auditive
et l’image graphique,dont tantôt l’une tantôt l’autre l’emporte (Mohrmann, 1965, III, p. 407).
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