Sumário

CAPÍTULO IV

ALGUNS FATOS GRAMATICAIS

Fonologia

1. Questões de grafia

1.1 O h-inicial e medial.

Sobre -et, it finais

 

A perda da aspiração do h – inicial, fato considerado de origem rústica, generalizou-se desde muito cedo no latim vulgar. As pessoas cultas deviam tê-la mantido. O conhecidíssimo epigrama de Catulo contra Árrio (Catulo, 84) nos dá conta de uma situação flutuante em que aspirar ou não o h chegava a ocasionar fenômenos de ultracorreção: hinsidias, Hionios, chommoda. Inscrições populares atestam fartamente confusões de grafia. O Appendix Probi corrige “hostiae non ostiae”. A recomendação dos gramáticos perdura até a latinidade tardia. Santo Agostinho dá-nos uma preciosa informação sobre a pedante articulação do h inicial:

si contra disciplinam grammaticam sine adspiratione primae syllabae ominem dixerit, displiceat magis hominibus, quam si contra tua praecepta hominem oderit, cum sit hominem. (Confissões 1,18,29)

Como se sabe, não há sobrevivência românica de aspiração do h – latino, uma vez que o h “aspirado” francês é de origem germânica.

Na Peregrinatio há inúmeros exemplos de erros de grafia, alguns, evidentemente, por ultracorreção: abitatio, abundo, heramentum, hitur, hivit, hostium (ostium), ospitium, hornavit.

Com relação ao h medial, é provável que a perda da aspiração tenha ocorrido antes da do h inicial, a julgar por atestados de retóricos e gramáticos como Quintiliano, Aulo Gélio, Terêncio Escauro que recomendam, por diversas razões, grafias sem “h” para deprehendere, ahenum, uehemens, incohare, traho. Aliás, o Apppendix Probi corrige “adhuc non aduc”. (Cf. Grandgent, 1928, p. 165)

Ocorrem na Peregrinatio as grafias nichil, nichilominus e michi – embora não sejam unânimes os editores – às quais se aplica o seguinte comentário de Grandgent:

Después que la h dejó de pronunciarse se dessarrolló una pronunciación escolástica de la h como k, que ha persistido en la pronunciación italiana del latín y ha afectado algunas palabras en otras lenguas (cf. el ant. cat. mich por mi; el esp. aniquilar por anihilar etc.) (ibidem, p. 167).

 

1.2 Quanto às palavras gregas, observa-se a mesma confusão no caso de aspiração representada pelo espírito rude: agíu (gr. άχίομ: hagíou), ebdomada (gr. έβδομάδα: hebdómada),  (cf. hebdomadas e ebdomadarius), heremus (gr. ‘έρημοs: éremus), ymnus (gr. ΰμνος: hýmnus), eortae (gr.έορταί: heortai). olosericus (gr. óλοσηρıκós: holoserikós).

Registram-se também exemplos de confusões de grafia das aspiradas θ (theta), χ (chi) e φ (phi): cathecisis (gr. κατήχηбіѕ: catéchesis), cathecuminus (gr. κατηχοúμενοs: catechoúmenos), neofitus (gr. νέόφυτοs: neophytus). Não tenho elementos para conferir todas essas grafias com o Codex Aretinus e tenho de louvar-me nos editores que a esse respeito não são concordes. No caso de Antiochia, por exemplo, Hélène de Pétré padronizou essa forma, mas diz no registro filológico: “anthiocia A, et sic saepius” (nota 1 ao capítulo 18). Heraeus e Franceschini-Weber reproduzem o Codex Aretinus.

O confronto, porém, não invalida o comentário aqui feito. Essas confusões de grafia com ou sem implicações fonológicas têm vasta documentação em latim. Veja-se, por exemplo, Mihäescu, O Barbarismo, segundo os gramáticos latinos.

 

1.3 Ae, oe, e

Na Peregrinatio ocorrem inúmeros exemplos de ae, e para representar a pronúncia vulgar |e| considerada um rusticismo e condenada pelos gramáticos. Com o ditongo oe, de origem diferente e muito menos freqüente, deu-se igual tratamento. Os editores não acompanham sempre o Codex Aretinus, que aqui transcrevemos: estimare (2,1), quedam (3,1), cepimus (coepimus) (3,2), ecclesie (3,4), etate (3,4), aque (4,2), cepit (coepit) (4,5), quecumque (4,5), Faranite (6,2), edificauerunt (7,6),  domine (12,7),  cede (caede) (14,3),  heramento (aeramento) (14,2), amenissimam (15,2), amenum (15,2), greco (15,3) etc. etc.

 

1.4 –M final

O –m final ocorre no texto de maneira muito confusa, o que comprova o artificialismo da grafia que tenta refazer um traço fônico há muito desaparecido, fato que os gramáticos latinos, as inscrições e as línguas românicas confirmam.

Alguns exemplos: planissima (1,1) (A[1] e F-W-P e H: planissimam); a(d) montem (6,3) (A e H-P e F-W: a monte); ecie (13,1) (=etiam, P, H, F-W), uenisse (17,1) (A, H, F-W; P: uenissem); subito (43,5) (P, H, F-W: subitum); de passionem (37,5) (A e H; P e F-W: de passione); ciuitate (36,3: A, H, F-W; P: ciuitatem); postmodu (27,3: A; P, H, F-W: postmodum); statiua (23,2: A, H, F-W; P: statiuam); accedere (22,2: A, H, F-W; P: accederem); iacente lapidem (21,2: A, F-W; P e H: iacentem lapidem); locum (21,1: A; P, H, F-W: loco); in ciuitatem (20,8: A; P, H, F-W: in ciuitate); terra Gesse iam nosse (7,1: A, H, F-W; P: terram Gesse iam nossem) etc.

Sobre o reconhecimento de um acusativo ou de um ablativo em formas como statiua, ciuitate, ualle, falaremos adiante.

A propósito de grafias como dominum e domino, gratiam e gratia que na sua edição de Regula Magistri Corbett declara não haver “confusion entre l’accusatif et l’ablatif singulier, mais identité absolue”, é interessante uma observação de Christine Mohrmann. A ilustre filóloga reconhece a exatidão daquele comentário, mas acrescenta esta nota importantíssima para a crítica textual que nos levará a retomar o assunto adiante:

dans une langue de civilisation ce n’est jamais l’image auditive seule qui détermine la langue, même pas chez les auterurs et les scribes “populaires”. Même si um scribe prononce indifférenment dominum et domino, gratiam et gratia comme des formes identiques, il reste, par suíte de l’enseignement scolaire qui distingue entre les différents cas, plus du moins conscient du fait qu’il y a des cas divers caracterisés par des désinences. C’est cette connaissance qui lui inspire des doutes et des hésitations. En étudiant les textes, nous avons donc à tenir compte d’une doublé image que influe sur le scribe: l’image auditive et l’image graphique,dont tantôt l’une tantôt l’autre l’emporte (Mohrmann, 1965, III, p. 407).


 

[1] A – Codex Aretinus; F-W – Franceschini-Weber; P – Pétré; H - Heraeus