Sumário

Morfologia

1. Nomes

Pronomes

 

1.1 A declinação que se depreende da Peregrinatio não difere muito da que conhecemos de qualquer gramática tradicional. É verdade que questões de ordem fonética tornam às vezes inidentificáveis as terminações –a, -o, -e, que também se poderiam entender –am, -om, -em, portanto como ablativos ou acusativos de 1ª, 2ª e 3ª declinações respectivamente. O fato mesmo de ocorrerem as duas grafias confirma a observação de Christine Mohrmann de que o autor (ou o escriba?) em decorrência do ensino escolar estava consciente da existência dos diversos casos, mesmo – acrescentemos – numa época em que a língua oral já deveria ter perdido – ou pelo menos a teria confusa – a noção casual. Então, apesar de aquelas grafias representarem uma só realidade fonética, a autora (ou o copista) deixa-se trair por essa formação escolar quando escreve o –m final.

Os exemplos não faltam e podemos colhê-los à vontade:

1,1: “infinitam, ingens planissima et ualde pulchram”; 1,2: “per ualle illa”; 5,1: “per ualle illa media”; 5,5: “per ipsam uallem”; 10,7: “post lectione”; 22: “septimana feci”; 37,5: “usque ad nona”; 37,6: “usque ad horam nonam”, etc., etc.

Como o –m final já não nos inspira confiança como traço distintivo, precisamos ter muita reserva com certos exemplos geralmente considerados como mudanças de declinação (como statiua) ou de gênero (como “atrium ualde grandem et pulchrum satis” em 37,4).

Algumas oscilações de declinação são velhas conhecidas nossas: domus com o ablativo singular domo e plural domibus; passus e passos (acusativo plural). A existência de duplas formas para neutros plurais e femininos de 1ª declinação é fenômeno atestado nos clássicos. Na Peregrinatio já foram notados uirgultas (4,7), acusativo plural em vez de uirgulta, e statiua, feminino em 18,1-23, 2-23, 6 e neutro em 19,3, ressalvada a observação feita acima quanto a variantes gráficas.

 

1.2 Quanto ao gênero, observemos desde logo o conhecidíssimo locus, masculino no singular e neutro no plural. Mas há exemplos de substantivos que ora assumem o masculino, ora o neutro, fenômeno também já observado por Bechara em relação a canticus (10, 6-10, 7), palatius (19,18), pulpitus (12,1) e territorius (9,7). É sabido que esse fato, igualmente atestado nos clássicos, teve nos textos considerados vulgares a mais ampla aceitação.

Mas, a Peregrinatio Aetheriae atesta fartamente a declinação neutra rigorosamente conforme a norma clássica:

“aperiuntur hostia omnia” (24,9); “luminaria infinita lucent” (24,9); “inclinent capita sua omnes” (25,3); “tenet anulum Salomonis et cornu illud” (37,3) etc.

 

1.3 Com referência aos adjetivos, observaremos que o comparativo em –ior e –ius e o superlativo em –issimus, -rimus, e –limus são freqüentes: altior, antiquior, excelsior, fortior, interior, maior, melior; altissimus, amenissimus, frequentissimus, pulcherrimus, simillimus... Os comparativos em –ius também se empregam adverbialmente: acrius, gratius, longius, maturius...

Entretanto, é também comum na Peregrinatio Aetheriae o superlativo analítico, sobretudo com os advérbios ualde e satis, antepostos ou pospostos ao adjetivo. Às vezes ocorrem as duas formações para o mesmo adjetivo:

“ubi se tamen montes illi... aperiebant et faciebant uallem infinitam, ingens planissima et ualde pulchram” (1,1); “ipse locus subdiuanus est, id est quasi atrium ualde grandem et pulchrum satis” (37,4); “ecclesia... ingens et ualde pulchra et noua dispositione (19,3); “ego, ut sum satis curiosa” (16,3)...

O advérbio muitas vezes intensifica comparativos (como, aliás, no latim clássico: “multo facilius atque expeditius”) e superlativos:

“terra Iesse, quae tamen terra Egypti pars est, sed melior satis quam omnis Egyptus est” (7,1); “optimae satis” (13, 2-15, 2).


 

1.4 Riquíssimo material de pesquisa oferecem as palavras gregas e os hebraísmos helenizados. Entendemos que a esse respeito será necessário distinguir entre substantivos comuns e substantivos próprios (ver cap. II).

Do ponto de vista morfológico, a Peregrinatio nos apresenta:

a) nomes gregos ou hebraísmos helenizados que se adaptaram inteiramente à declinação latina;

 

b) nomes que se mantêm invariáveis, especialmente nomes próprios hebraicos, que não se enquadram nos padrões mórficos latinos: Bethleem (25,8 – 25,12 – 39,1 – 42), Choreb (Horeb) (4,1 – 4,2), Faran (Pharan) (2,4 – 5,11 – 5,12), Iacob (7,7 – 20,10 – 20,11 – 21,1 – 21,4), Iericho (10,1 – 10,4 – 12,4 – 12,11), Imbomon (Inbomon) 25,4 – 36,1 – 39,3 – 40,1 – 43,3 – 43,5), Melchisedech (13,4 – 14,2 – 14,3 – 15,5), Nabau (10,1 – 10,8 – 10,9 – 11,3 – 11,4 – 12,1), Sion (Syon) (25,6, 25,11 – 27,5 – 27,6 – 27,7 – 29,1 – 29,2 – 37,1 – 39,2 – 39,4 – 39-5 – 40,2 – 41 – 43,2 – 43,3 – 44,3), Syna (1,1 – 2,7 – 3,1 – 3,2 – 3,6 – 4,8 – 6,3 – 9,6), etc;

 

c) nomes que ora se flexionam à latina ou à grega, numa espécie de declinação mista, onde, não raro, ocorrem terminações anômalas (talvez variantes gráficas), ora se mantêm invariáveis: Thebaidam (9,1) e Thebaidem (9,6); sanctum Abraam (14,2), sanctus Abraam (14,3) e Sancti Abrahae (20,3); cathecisin (46,3) e cathecisen (46,4);

 

d) acusativos gregos fossilizados em –in, -en, -im: cathecisin (46,3), Ponpeiopolim (23,1), Ramessen ciuitas (8,1), flumine Eufraten (18,2) e fluuium Eufraten (18,2) (cf. maior est Eufrates, 18,2);

 

e) nomes da 3ª declinação grega que se incorporaram à 1ª declinação latina através do acusativo singular em α (alfa), como absida, hebdomada, spelunca.

No artigo sobre os helenismos da Peregrinatio, Ernout faz referência a certos nomes próprios, sobretudo geográficos, que Etéria transcreveu como ouviu, sem empregar o caso que a construção gramatical exigiria. E conclui desse emprego indevido:

L’observation précédente permet de conclure qu’elle n’a pas appris le grec, et qu’elle n’en sait que ce qu’elle a pu apprendre oralement au cours de son voyage. (Ernout, 1954, p. 291)

O assunto merece um exame mais demorado, que deverá levar em conta os itens que apontamos e certas construções, comuns na Peregrinatio, mas na verdade amplamente atestadas em latim. Algumas, como o nominativo independente da construção rigorosamente gramatical e o chamado acusativo grego fossilizado, são freqüentíssimas no latim tardio. Isto, porém, refere-se mais especialmente à sintaxe dos casos e, entre nós, já foi estudado por Bechara (1963).