É na sintaxe que
melhor se apresentam as características “vulgares” da Peregrinatio Aetheriae. Evidentemente, não se podem menosprezar
os elementos populares do léxico, nem certos traços fônicos
revelados pela grafia do texto, nem muitos exemplos de formas
nominais e verbais que a gramática clássica não atesta ou atesta
discretamente. Mas são elementos isolados, fragmentos cuja validade,
aliás, nem sempre é indiscutível.
Porém, a
utilização de todos esses elementos na frase formam um contexto que
revela aquela ambiência estilística tão finamente observada por
Serafim da Silva Neto (1923,
p. 110, nota 3),
que, em contraste com o “elevado modo de exprimir criado pela
tradição e pela técnica literária”, nos assegura o tom coloquial
desse itinerarium.
Não admira, pois,
que o texto nos dê a impressão de escrito ao correr da pena. Os
fatos se sucedem na chamada ordem direta; as orações,
sobrecarregadas de partículas muito comuns da linguagem oral (ergo,
item, nam, tamen, autem...), freqüentemente meros expletivos,
vão-se justapondo, às vezes como processos de repetição ou de
explicação, de tal forma que, não raro, se perde a estruturação
lógica do pensamento, e o período termina de forma abrupta com uma
oração-resumo iniciada por sicut, ita etc. Outras vezes
tem-se a impressão de que o texto nos chegou lacunoso. Falta aquela
rígida estrutura hipotática do latim literário que exige do escritor
uma ordenação e uma hierarquização prévia das idéias para a
expressão verbal dos juízos. É uma trabalhosa elaboração que exige,
além de qualidades pessoais, um domínio seguro da língua literária.
Ora, a Peregrinatio Aetheriae é uma narrativa simples, em que os fatos
são registrados como ocorrem, entremeada de citações em forma de
discurso direto, bem de acordo com a caracterização que Marouzeau
faz da construção paratática, tipo de narração que
sans réflexion et par
une sorte de réaction spontanée, reproduit la vision directe des
événements, ou du moins l’image qu’ils ont laissé dans l’esprit. On
en trouve maint exemple dans la langue rudimentaire des anciens
chroniqueurs (Marouzeau, 1946, p. 229).
E adiante:
Procédé populaire, la parataxe se
presente avec le mérite de la simplicité, du naturel; à ce titre il
arrive qu’elle soit employée même par un écrivan d’ordinaire savant,
qui, dans des circonstances spéciales, prend le ton familier; ainsi
Cicéron dans sa correspondance
(ibidem, p. 230).
Temos aí mais um
elemento para esclarecer a aparente contradição dos comentários
quanto ao caráter vulgar da Peregrinatio em face da “crosta
literaria demasiado densa” que alguns observam na autora.
Nos limites de
uma tentativa de caracterização do latim eteriano, vamos fazer umas
observações gerais.
1. A Peregrinatio documenta excelentemente a chamada ordem direta. As
transcrições que fizemos comprovam sem dificuldade essa
característica da sintaxe vulgar, já devidamente comentada pelos
tratadistas. É importante o que diz Maurer, tendo em vista sua
posição incisiva a que já nos referimos:
Um documento latino notável pela
colocação caracteristicamente românica é a Peregrinatio ad loca
Sancta. Embora apresente muitos elementos denunciadores de
influência literária, a disposição extremamente simples e tantas
vezes direta é, sem dúvida, da linguagem falada do tempo, o que se
confirma pela sua concordância com a ordem românica (Maurer, 1959, p.
198).
2. A sintaxe dos
casos já foi, entre nós, estudada por Bechara.
Gostaríamos aqui
de insistir no emprego das preposições. Com as devidas ressalvas
quanto à identificação de certos casos, a Peregrinatio apresenta, em confronto com o emprego tradicional das gramáticas, o
seguinte quadro:
a) preposições
com acusativo: ad, apud, citra, extra, infra, secundum, subter,
supra, trans, ultra, usque, cata (=secundum);
b) preposições
com ablativo: a(ab), e(ex), sine,
sub, supra (?);
c) preposições
com acusativo e ablativo: ante, de ante, circa, contra, cum, de,
foras, in, in giro, inter, intra, intro, de intro, iuxta, per,
prope, propter, super, post, pro;
d) preposições
com genitivo: gratia, circa, in giro, per girum (giro).
A Peregrinatio apresenta um bom número de locuções constituídas de duas preposições
ou de preposição + advérbio, e de expressões formadas por preposição
+ substantivo que se gramaticalizaram como locuções prepositivas ou
adverbiais: de contra, de inter, de intro, de foris, a foras, in
ante, ab ante, in hodie, usque in, usque in hodie, in mane, usque in
mane, usque ad, in giro, per girum, per giro, ad directum, ad
momentum, ad die, intus in.
Ainda sobre
preposições da Peregrinatio, lembraremos a importância de
estudos que registrem empregos que se generalizaram no latim dos
cristãos, como in e de com valor instrumental, ad indicando tempo determinado etc.
3. Quanto aos
pronomes demonstrativos, o seu emprego na Peregrinatio nem
sempre concorda com a norma clássica. Freqüentemente, ille tem o valor do artigo românico e de pronome pessoal; ipse equivale ao nosso pronome esse; iste se usa em lugar de hic; há inúmeros exemplos de reforço pronominal, com ipse
ille, hoc ipsud, hoc idem; a função de antecedente do
relativo não é privativa de is. A Peregrinatio atesta hic.. qui, ille.. qui, ipse.. qui, iste...qui. O elemento ecce que costuma acompanhar certos demonstrativos em exemplos
considerados vulgares não é tão freqüente na obra:
ecce ista fundamenta in giro
colliculo isto quae uidetis, hae sunt de palatio regis Melchisedech
(14,2);
Nam ecce ista uia quam uidetis
transire inter fluuium Iordanem et uicum istum haec est qua uia
regressus est... (14,3)
Tunc ait ille sanctus
presbyter: ecce hic est in ducentis passibus (15,1).
Tratando-se,
porém, de transcrições, penso que será melhor interpretar os
exemplos de ecce + demonstrativo como vulgarismos não
propriamente da autora, mas – como têm observado os tratadistas –
dos que ocorrem muitas vezes nos discursos diretos da Peregrinatio.
4. Já nos
referimos à expressão de impessoalidade através da 3ª pessoa do
singular de verbos passivos no infectum ou no perfectum.
Lembremos agora dois exemplos de habere impessoal, como o
português “tem” = “há”: “Habebat autem de eo loco ad montem Dei
forsitan quattuor milia totum” (1,2). “Habebat de ciuitate forsitan mille quingentos passus” (23,2).
A propósito de
impessoalidade e indeterminação do sujeito a Peregrinatio nos
oferece outros exemplos sobre os quais faremos algumas
considerações:
a) Em 43,5 diz
Etéria:
Legitur etiam et illi locus de
euangelio, ubi dicit de ascensu Domini; legitur et denuo de
actus apostolorum, ubi dicit de ascensu Domini in caelis post
resurrectionem.
Em 2,7: “nam
posteaquam completo desiderio descenderis inde, et de contra illum
uides, quod, antequam subeas, facere non potest”. É a lição
de Heraeus e Franceschini-Weber. ´Pétré, seguindo Geyer, prefere potes.
A nosso ver,
temos em dicit e potest igualmente exemplos de
impessoalidade.
b) Em 13,1 lê-se:
“ubi homo desiderium suum compleri uidet”, em que homo tem
valor indefinido, como o francês on e o português antigo homem.
c) Na Peregrinatio há muitos exemplos de uma forma verbal em 2ª pessoa singular, sem contudo referir-se a um sujeito de 2ª pessoa: ingrederis (2,5), uides (2,7), subeas (2,7), descenderis (2,7), subeas (2,7). Trata-se de um emprego
conhecido dos clássicos, atestado, por exemplo, em Ovídio.
5. Quanto à
concordância, a Peregrinatio Aetheriae freqüentemente
documenta o verbo no plural referido a um coletivo turba,
multitido, populus, como também o verbo no plural referindo-se a unusquisque (25,7). Exemplos de “attractio inuersa”, atração
do antecedente no caso do pronome relativo estão em: 13,4: “fabricam quam uides ecclesia est” e 19,11: “nam monticulum istum, quem uides, filia, super ciuitate hac, in illo tempore ipse huic
ciuitati aquam ministrabat”.
6. Ao lado da
construção de acusativo com infinitivo, ocorrem muitos exemplos de
orações subordinadas substantivas com quia, quoniam, quod.
Christine Mohrmann diz que quoniam é vulgar e bíblico; quia, mais popular que quod, é usual no latim dos
cristãos; quod mais refinado (Mohrmann,
1965, III, p. 394).
Pudemos comprovar
na Peregrinatio essa afirmação de Christine Mohrmann em
muitos exemplos:
a) credere
quia, scire quia, dicere quia, dici quia, ostendi quia, ostendere
quia;
b) uidere quod, inueniri quod, audire eo quod;
c) scire
quoniam, credere quoniam, parere quoniam, dicere quoniam, testari
quoniam.
7. Os verbos
“dicendi” (dicere, ait, loqui, alloqui) se constroem com
dativo ou com ad + acusativo para indicar a pessoa a quem se fala e
uma oração objetiva direta, geralmente introduzida por quod, eo
quod, quoniam ou quia.
Também o verbo credere se emprega sempre com dativo e quia: “ecce rex
Aggarus, qui antequam uideret Dominum, credidit ei, quia esset uere
filius Dei (19,6). Não há exemplo do cristianismo sintático credere in.
8. Os verbos que
exprimem direção ou movimento podem construir-se com preposição ou
sem ela. Em certas construções, como em “eum subeas” (2,7) (subire
montem), o acusativo parece gramaticalizado em objeto, como em
português – “subir o morro”.
A propósito das
circunstâncias de lugar “onde” e “para onde”, a Peregrinatio atesta um emprego muito confuso não só com substantivos (em que
poderia ocorrer a hipótese da forma inidentificável), mas também
advérbios onde não seria possível qualquer confusão gráfica ou
fônica.
9. Ocorrem outros
exemplos de regência discordante da norma clássica, porém freqüentes
no latim vulgar e no latim dos cristãos. É o caso de maledicere e benedicere, sempre com acusativo.
10. Muitos outros
casos poderíamos arrolar em que o texto eteriano se afasta da norma
clássica e acolhe construções consideradas vulgares, as quais,
porém, pelo IV século se incorporaram definitivamente ao usus
loquendi ecclesiasticus.
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