1.6.1 A propósito
de conhecidas confusões entre verbos da 2ª, 3ª, 4ª conjugações que o
latim, e especialmente o latim vulgar, atesta, diz Väänänen:
En plus des échanges de conjugaison...,
on rencontre, dans les textes peu littéraires de divers époques, à
l’indic. 2e et 3e sg. –es, -et pour –is, -it... A basse époque, par ex.
dans la Peregr., ces échanges, auxqueles il y a à ajouter 3e pl. –ent pour –unt, peuvent aussi dénoter une tendance
unificatrice (Väänänen, 1963, p. 146).
A exemplificação
da Peregrinatio é muito rica, e não é à toa que outros
autores como Grandgent e Maurer se referem especificamente a essa
obra. De nossas anotações ao texto eteriano extraímos os seguintes
exemplos:
Cap.
4º: uiuet (uiuit), mittet (mittit); Cap 8º: dicent (dicunt), uadent (uadunt),
tollent (tollunt); Cap.10º: deseret (deserit); Cap. 24º: benedicet (benedicit), dicet,
descendet, colliget, mittet, uadet, incipient (incipiunt); Cap. 25º: mittet, uadent; Cap. 30º: mittet, dicet; Cap. 31º: ascendet; Cap. 33º: perleget, leget; Cap.
35º: colliget, mittet, dicet; Cap. 37º: premet, uadent,
custodent (cf. custoditur, 37,2); ponet; Cap. 38º: dimittetur (dimittitur); Cap. 43º: ducent,
dicet, uadent, sedet; Cap. 44º: leget, uadent, uadet; Cap. 45º: accedet; Cap. 46º: percurret, accipient, exponet,
uadet, reddet, dicet; Cap. 47º: exponet, accedet, absoluet,
dicet.
A tendência a
eliminar formas anômalas, acomodando-as aos tipos flexionais
considerados regulares explica as formas offeret, offerit, (offert)
(35,1), offeritur (offertur) (35,2), offeret (38,2), defferet (deffert) (45,3).
1.6.2 Vale a pena
recapitular aqui a lição de Maurer que transcrevemos no Cap. II. De
fato, com relação às vozes do verbo, a Peregrinatio atesta as
formas passivas sintéticas do infectum bem como verbos
depoentes, que em dois exemplos apenas são substituídos por formas
ativas. Aliás, Van Oorde, que fez um levantamento exaustivo de
empregos em que Etéria se acomoda à norma clássica ou dela se
afasta, diz, com razão, a propósito dos depoentes:
Quod attinet ad verba deponentia,
Aetheria ea accurate diligenterque observavit, id quod non omnes
serioris aevi scriptores fecerunt [...]
Aetheria igitur cum in verbis
deponentibus adhibendis latinitatem paene Ciceronianam assecuta sit,
duobus locis, ut iam commemoratum est, peccavit: “furasse” pro
“furatus esse” 88,17 “egredere” pro “egredi” 53,29.
(Oorde, 1963, p. 9)
Também ocorrem os
tempos do perfectum em verbos passivos, depoentes ou
semidepoentes segundo a norma gramatical. Mas, ao lado desses
exemplos, há inúmeras ocorrências de usus insolentiores, em
que Etéria se afasta do optimum genus dicendi, como o emprego
de formas passivas do infectum com o verbo esse (tipo amatus sum) e formas passivas de perfectum com tempos
também do perfectum de esse (tipo amatus fui).
O emprego escolar das formas sintéticas do infectum está
igualmente comprovado pela alta freqüência de uma outra construção
que de longa data concorria com a passiva e médio-passiva, com a
vantagem de desfazer a ambigüidade decorrente de a forma passiva
servir para a expressão tanto do sentido passivo quanto ao sentido
médio. Trata-se da forma pronominal, que no latim tardio se
desenvolveu enormemente, aplicando-se a verbos transitivos e
intransitivos. Então criou-se uma situação extremamente complexa em
que ora a construção pronominal equivale à passiva (uocat =
uocatur), ora o pronome é um complemento verbal em acusativo, ora é
um elemento estilístico de matizes muito variados (Cf.
Ernout-Thomas, 1953, p. 211-214).
A Peregrinatio nos oferece uma rica exemplificação dessas oscilações resultantes do
conflito entre um padrão ideal, ensinado na escola – artificial e
teórico – e uma realidade lingüística bem diversa, que a autora nem
sempre pôde conter. Entende-se também, que daí resultassem
ultracorreções.
Exemplos de
Oorde: appellatus est por appellatur, dicta est por dicitur, auditus sit por audiatur; inúmeros
exemplos de se facit por fit; inúmeros exemplos de
verbos com pronome reflexivo se: se acclinare, se
aperire, se colligere, se dirigere, se tendere, se resumere,
se plicare, etc, etc.
É muito de
notar-se o largo uso da forma passiva de 3ª pessoa –tur,
pessoal e impessoalmente, com verbos transitivos e com verbos
intransitivos: acceditur, agitur, ambuletur, descenditur,
inuenitur, proceditur, itur, subitur etc. No perfectum ocorrem muitos exemplos em que o uso clássico recomendaria o infectum do verbo esse: intratum fuerit, itum fuerit,
peruentum fuerit, subitum fuerit, uentum fuerit etc.
Observaremos que,
sem invalidar a interpretação de Oorde, em formas passivas do tipo scriptum est/scriptum fuit é preferível levar em conta uma
velha noção, muito conhecida dos gramáticos latinos, que considera
no infectum e no perfectum um presente, um passado e
um futuro, associando-se, então, as categorias de aspecto e de
tempo. É o caso do conhecido exemplo de César “Gallia est omnis
diuisa in partes tres”. Especialmente nas constantes referências à Bíblia, parece-nos que sicut scriptum est significa
“como está escrito”, quae scripta sunt “coisas que estão
escritas”, em que se acentua uma verdade que permanece,
independentemente de uma idéia temporal.
1.6.3 No capítulo
sobre o vocabulário, falamos do gosto da língua oral pelas
perífrases. Com relação aos verbos, a Peregrinatio nos
oferece muitos exemplos com infinitivo: “scire debui” (45, 1-46, 1),
“solent habere” (12,1), “festinat manducare” (29,3), “coeperit se
facere” (31,1), “coeperit essa hora” (31,1), “noluit permittere”
(12,10), “uolui accedere” (13,1), “poterat conspici” (12,5).
Com o infinitivo habere prenuncia-se o futuro românico em “trauersare
habebamus” (2,2), “exire habebamus” (4,6) e “dicere habet” (24,6). |