A Iara

Ao mesto palor da lua,
Das vagas ao brando enleio,
Nas horas de devaneio,
Um barquinho deslizava...
E o moço que, curioso,
O rumo dele seguia
Nunca mais aparecia,
Que a corrente o sepultava.

Era crença das velhotas
Que, dentro da leve igara ,
Habitava uma linda iara
Mais clara que os arrebóis;
E os que a ouviam cantar,
Naquela solene calma,
Diziam que tinha n’alma
Um bando de rouxinóis.


Sua voz adamantina
Possuía tal condão
Que o mais duro coração
Logo se lhe rendia .
Tinha a cor das alvoradas...
Seu cabelo loiro, loiro,
Parecia raios d’oiro
A fulgir à luz do dia.

Toda a mãe da aldeia ao filho
Da iara a vida malsina
Dizendo que aquela ondina
Se nutre de carne humana;
Pede amor e os descuidados,
Que na sua rede apanha,
Imola-os a sua sanha
A sereia desumana.

Jari, o índio possante,
Depois de ter visto a iara
Nem um momento gozara
Da paz que o repouso empresta;
Em tudo via a maldita:
Do rio a surgir na areia
Nos festins, na calma ceia,
No sono dormido à sesta.


A meia-noite soou
Foi Jari à beira d’água
Extravasar toda a mágoa
Do ferido coração;
Passa a igara mansamente,
Do rio o volume cresce
Da iara como uma prece,
Parte do peito a canção.

O índio louco de amor
Ante a visão feiticeira,
Da igara na branca esteira
Rema, rema sem parar;
Após... o baque de um corpo
A superfície dormente
Da água clara, nitente,
Veio prestes transtornar.

Dias depois ao balanço
Das ondas boiando à toa
Aparece uma canoa
Que não tinha remador.
Dizia o povo da aldeia
Que aquele invicto selvagem
Sumira-se na voragem
Do gênio devorador.

Niterói, 12-10-1921


Mesto palor é a palidez que traz tristeza ou a triste palidez.

Igara é uma canoa escavada num único tronco de árvore, de forma aproximadamente elíptica, rasa, fundo chato e mais alta na popa.

Houve uma quebra de métrica, neste verso?

Ondina, nas mitologias germânica e escandinava, é o gênio ou ninfa do amor, que vive nas águas.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011