Visita do médico

Patrão, sentado
Levantei-me adoentado,
Senti no ventre tal dor,
Que despachei o criado
Em procura do doutor.

Há cerca de meia hora,
Que em fortes dores me vejo...
Criado
E o dotô que já demora!
Tem pernas de caranguejo

Patrão
Ouço que batem agora (ao criado)
Vai já depressa atender.
Em sendo ele, –
Médico
(Ó de fora).
Envia-o logo a me ver.


O doutor entrando diz ao criado:
Onde está o tal lunático?
Doente
Louco não, mais devagar...
Doutor
Todo efeito pancreático
Não tem raiz no luar.

(ao doente)
Vamos já ao nosso exame.
(O medico ausculta as costas do doente)
Doente
A dor está na barriga.
O médico levantando a cabeça:
Embora da diplopia
Cognata Kante diga,

Não descubro a analogia,
Tenho a minha opinião: (pondo o dedo na testa)
Um efeito de atrofia
Transtornando o coração.


Ou melhor a explicação
Para mais clara ficar
É preciso a citação
Leve eu agora passo a dar:

As nebulosas hepáticas
Nas omoplatas orgânicas
Operam forças antárticas
Nas faculdades canônicas.

Os erros xenogésicos
Que difluem do transformismo
Não conseguiram mudar
Os lemas do hilemorfismo.

Os Aristarcos modernos
Da nova telepatia
Classificam esta doença
No domínio da fobia.

Os Hipócrates coevos
Defendendo a medicina
Propinam que é resultado
Da latescência canina.


Os recentes Aristóteles
Alardeando ciência
Dizem ser pneumonia
Em completa efervescência.

Afirmam outros doutores
Que têm da ciência posse
Ser irritação das pernas
Produzida pela tosse.

Nada disso. O que eu afirmo
Com certeza e inteira fé
É que é um ataque apoplético,
Sito nas solas do pé.

Como deve o senhor saber
Toda a sânie em diretriz
Tem de passar comprimida
Pela ponta do nariz.

Depois segue o seu trajeto
Para o globo articular;
Em ricochete se inclina
À raiz do calcanhar.


Lá chegada a perna incha
O mal o peito fustiga,
Eis aqui porque o senhor
Tem forte dor de barriga.

Criado
Isto sim é que é ser sabudo.
Bem diziam que o dotô
É perito sabedô. (abanando admirado a cabeça)
(Pausa)

Cabeça iguá tô pra vê!
Eu não sei toda as leitura,
Mas parece diabrura
O dotô tanto sabê!

Doutor
Quase todos bons autores
Não desacordam de mim;
Uma prova quero dar-vos
O senhor sabe latim?
(O patrão abana negativamente a cabeça)


Doutor
Outrora houve um colega
A quem Virgilio chamávamos
O qual disse em meu apoio
Paulo majora canamus.

Altros multos citaverunt
Qui já vobis clarus dixit
Non precisa auctores alteros
Onde tuos oculos fixit.
(Depois se retira, despedindo-se com um ligeiro inclinar e é acompanhado até a porta pelo criado)

Criado
Não há no mundo quem tenha
Mais grande sabiduria.
Pois ele sabe as ciência
De toda mistolofia.

Patrão
O que mais me sorprendeu
Foi eu dizer ao doutor
Que na barriga era a dor,
E ele sem me notar
A minha espinha auscultar.


Que é sábio o tal doutor
Não pretendo contestar,
Apenas noto que às vezes
Quer-nos ele tapear.

Porém o certo é que a dor
Passou logo ao seu talante;
Pudera! Se o seu discurso
Tinha a dose de um purgante...

Criado
É tal do home o sabê;
Não sei se vancês notô
Que curô logo o patrão
E nem siqué receitô.

Se ele faz toda as cura
Com tanta fisiolofia,
É pruquê estudô pra burro
Um poco de geografia.
Fim.


Esta peça, além de estar copiada com letra diferente (demonstrando ser feita por outra pessoa ou em outro momento), está com tinta azul e correções com tinta preta.

No manuscrito está Acerca de, que é um arcaísmo gráfico. Hoje, a expressão escrita de tal forma significaria a respeito de.

Os travessões e parênteses desta estrofe foram acrescentados posteriormente, com tinta preta.

Diplopia – visão dupla; duplicação das imagens dos objetos.

Cognata – que vem de uma mesma origem.

Ricochete, metaforicamente, é salto ou reflexo de um corpo ou de um projétil qualquer, depois do choque ou de tocar no chão.

O grifo em sublinhado, foi feito com tinta preta.

tanta fisiolofia substitui tamanha fisiolosia, acertando a rima.

poco substitui pouco.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011