Epístola

Mário

O assunto desta é extravagante e vario.
Por isso devagar irei com o carro,
Pois tenho medo de levar esbarro
Em um caminho que o amestrado ilude
E eu sou cacheiro ainda muito rude.
Entrou-me cá por dentro no bestunto
Em poeira tratar do nosso assunto
O decassílabo, que é verso feito
Para narrar as coisas de alto aspeito ,
Não atingira por certo a sua meta...
Não sabe manejá-lo o mau poeta,
Entre os quais, se há lugar onde se tome,
Hei de algum dia inscrito ver meu nome
O estilo não será lá muito terso
E ainda abaixo ficará meu verso
Às boas regras sou um tanto avesso
E já pelos senões perdão te peço
A ti que és bom, e perdoar-me-ás...
Como indo vamos de saúde e paz?
É o que falar devia antes de tudo
Não te pergunto como vais de estudo.
Pois já conheço o teu intento louco
De assim abandoná-lo por tão pouco
A vitória, é verdade, custa às vezes:
Passam anos, passam dias, passam meses,
E não vemos abrir a nuvem de oiro
Que anunciar nos venha a palma, o loiro,
Com que havemos de ornar as nossas frontes.
Enquanto o sol procura os altos montes
E à terra envia a luz que tudo ceva
Não deve o homem se abismar na treva.
Avante! guerrilheiro, que a vitória
Teu nome inscreverá no céu da historia!
Jamais desanimar! Em vão debate
Quem já sem forças entra no combate!
Feliz o que vingou o cimo da subida!
Feliz o que venceu na luta pela vida!
Subir, sempre voar pelos espaços!
Que no campo de ti só fiquem traços,
Restos dispersos, mas que a fonte altiva
Os astros fira, em claridade viva!
Deixa a campina para o ledo armento,
Não queiras estragar o teu talento.
És moço ainda e o moço tudo alcança
Enquanto nutre o peito de esperança.
O vale é treva, luz há só na altura,
Onde polícroma a ilumina
Do sol se expande e se dilata
E a lua estende o seu lençol de prata.
Na planície há o pampa a podridão
Onde rastejam vermes pelo chão.
De moscas multidões e os seus zunidos
Atormentar-nos vêm sempre os ouvidos
Há a cobra, o moscardo, o sapo imundo
A coaxar dos charcos no profundo.
Vê como é feio o réptil de rastros...
E como é belo o refulgir dos astros!
Agora a outro ponto. Assim não faz
Um amigo sincero e um bom rapaz.
Escrevi-te uma carta e por resposta
Sem mais nem menos me viraste a costa
Será porque foi prosa? Então, desculpa:
À pena e não a mim só cabe a culpa.
Pois bem, se foi por isso, já desfaço,
Em verso te mandando um calhamaço.
Em verso não é bem... inda que malhe
A rima não me sai lá muito a calhe.
Embora vácua e infértil seja a veia,
A mão não mete na seara alheia.
Como vai Victor Hugo? E o tal franguinho?
Bem como o Sebastião e o Alfredinho?
Co’os galos cada qual mais fanfarrão?
Eulina e tia Arminda como vão?
Não quero que se esqueça a minha lira
De no Lopes falar e na Djanira.
Como vai no seu ócio o bom João?
Benedito e Nazária como estão?
À mamãe, Santa e Irene eu escrevi,
Mas nenhuma resposta recebi.
Agora se também me não respondes,
E, de novo, em silêncio tu te escondes,
Assim que te escrever por outra vez
Fá-lo-ei em latim ou em francês.
Se todavia tudo for em vão,
Do inglês farei uso ou do alemão,
Para ver se, por meio de língua estranha,
A minha rede uma cartinha apanha.
Bem, por hoje, já basta de bazófias ,
Que esta encerra aos tropeções e às cópias.
Recomenda-me a todos. Mil abraços
Te expede pelos rútilos espaços
O primo convencido inda por cima
Que tudo quer dizer por meio da rima;
Mais que parente, amigo mui fiel
E já sabes que se trata do
Ismael.


Post-scriptum –:
Umas linhas somente e a cousa funda...
Uma notícia a mais terás ainda.
Fui eleito quem nisto pensaria?
Presidente da nossa Academia.
Mas tudo fez-se em calma, sem alardes...
Ao Catete fui antes que o Bernardes.
Na curul presidencial estou de pé,
O que o mesmo dizer não pode o Mé .
Isdem .

Niterói, 30-03-1922


Bestunto – cabeça ou cérebro. Termo pejorativo usado para indicar capacidade mental limitada.

Aspeito – arcaísmo correspondente a aspecto.

Parece que esta palavra tem de ser pronunciada como proparoxítona para regularizar a métrica.

Bazófia – vaidade exacerbada e infundada; vanglória, presunção.

Consultando o Prof. Maximiano de Carvalho e Silva, fui informado de que “Rolinha” e “Seu Mé” eram apelidos pejorativos com que Artur Bernardes era chamado por seus adversários, para quem compuseram a marchinha de carnaval intitulada “Ai, Seu Mé!”, que se tornou popularíssima:
Zé-povo quer a goiabada campista / Rolinha, desista, abaixe essa crista / Embora se faça uma bernarda a cacete / Não vais ao Catete! / Não vais ao Catete! // Ai, seu Mé! / Ai Mé Mé! / Lá no Palácio das Águias, olé / Não hás de pôr o pé // O queijo de Minas está bichado, seu Zé / Não sei porque é, não sei porque é / Prefira bastante apimentado, Iaiá / O bom vatapá, o bom vatapá”.

Isdem, suponho ser uma abreviação de Ismael idem, para substituir a repetição da assinatura.

Produção Digital: Silvia Avelar @ 2011