Poemeto

Albery e Jurema

A lua prateava as comas do arvoredo,
Reinavam pelo mato a solidão e o medo.
O vento sibilava ameaçador e forte,
Pairava sobre a terra o espectro da morte.
Feras em seus covis das fauces inhiantes
Deixavam escapar gemidos lancinantes.
Um vulto, na penumbra, inquieto a perscrutar
A selva, se desenha à branca luz do luar.
Um outro sobrevém ansioso e apressurado...
Julieta e Romeu nas noites de noivado
Não vinham mais depressa ao encontro habitual;
Uiva na furna a onça e treme o monte e o val.
Engastados no céu os fúlgidos diamantes
Luziam como o olhar de juvenis amantes.
Os dois vagando sós em meio da floresta
Pudicos como o são as folhas da giesta
Representavam Eva e Adão inda inocentes
Em meio dos vergéis floridos e virentes .
Albery, o guerreiro intrépido e feroz,
No combate o primeiro, ameiga o som da voz
E chama por Jurema, a filha do pajé:
Jurema, meu amor, vem, quero-te ao pé
De mim, uma hora só e depois venha a morte
Pôr fim ao meu sofrer, à minha triste sorte.
Sem ti de que me serve a vida? Surdo um ruído
Longo de folha seca o atilado ouvido
Veio ferir-lhe então. Ouve, meu Albery.
Acabo de chegar, tornou Jurema, aqui.
Meu pai sentiu rumor e certo o arco toma
A ver se, na esplanada, um inimigo assoma.
A custo o aquietei. Agora os teus abraços
Anelo fruir, gozar. Nos rútilos espaços
Já vês que a lua ascende e a meio agora está
Da rota. A voz cessara. O som do maracá
Não faria mais bela a pastoril linguagem
De uma inculta serrana e de uma alma selvagem.
O firmamento azul irisado de estrelas
Era um solar feudal com milhões de janelas.
Falas de amor a brisa ao longe soluçava,
Indiscreta levando em sua etérea e prava
Asa, o mistério em que o mágico deus Cupido
A humanidade inteira em elos tem prendido.
O velho pajé sonha ao canto de uma ocara
Da guerreira nação, da nobre tabajara.
Que sonho encantador! A filha, a filha amada
A sua linda garça, agora desposada ,
Por tão belo mancebo, oh! quem pensar pudera?!
Tinha a florir na vida a flor da primavera.
Findou-se a ficção e o velho pai, sisudo,
Os olhos entreabrindo observava tudo
O olhar acostumado a não ter empecilho
Nas trevas divisou o semblante do filho.
Fitou-o noutro ponto e demoradamente...
Deu logo pela falta: Jurema estava ausente.
De um salto o arco toma e como um cão na trilha
A farejar o rasto em busca vai da filha.
Embrenha-se na mata... o olhar inquiridor
Prossegue a procurar sinal revelador.
Aqui, um ramo, além... uma folha nova ao chão
Tudo indicava que uma intimorata mão,
Como quem se diverte amargurada e ansiosa,
Ao vento desfolhara as pétalas de rosa
Que vira num arbusto aborrecível, feio.
A quem se acha estranho, a voz do amor, alheio.
Estendido Albery na alfombra verdejante,
Em carinhoso tom falou à terna amante:
Não vês, meu querubim, que as avezinhas todas
Preparam o seu festim, o seu festim de bodas?
E nós, entes por Deus criados para amar,
Por um capricho vão de um velho abandonar,
Devemos esta chama adamantina e santa,
Que nos perfuma a vida e a vida nos encanta?
Rijo como um martelo a retinir em ferros,
O vento se arrojava às arvores dos serros.
Das estrelas o brilho alvinitente e puro
Torna-se turvo agora, enevoado, escuro.
Súbito um grito ecoou nos amplos horizontes...
Jurema e Albery voltaram presto as frontes
E viram, oh! que horror! Em pé de raiva mudo,
Insolente o pajé que percebera tudo.
Espessa-se o silêncio... A lua empalidece...
O pio da coruja é triste como a prece...
Surpresos ante o pai, do precipício à borda,
Ficaram como quem de longo como acorda.
Estáticos a olhar os ouropéis da terra
Esperam do pecado a expiação, a guerra.
O velho então medindo o horror da situação,
Rancoroso e cruel a voz do coração
Desprezando, com fero e ameaçador aspeito,
Tais palavras tirou do furibundo peito:
Ó peregrino ousado, ó moço aventureiro,
Ó tu que o porte tens de intrépido guerreiro,
Jamais se viu aqui pessoa a nos estranha,
Que incólume chegasse ao cimo da montanha,
Que a tua audácia agora acaba de transpor...
No entanto a deus Tupã, dos crimes vingador,
Permitiu que uma tribo a nossa exterminasse
E que do maracá o som não mais soasse
Sob este céu taful de ramos de verdura
Prendado pelo beijo inócuo da natura.
Fiquei eu a chorar a sorte cruel e amara,
Que a ruínas reduzira a nação tabajara.
Desfeito o nosso povo, um plano concebi:
– Casar esta inocente e meiga juriti
Com um jovem galhardo e no combate, forte,
Escapo como nós ao espectro da morte.
Então, oh! sonho meu dourado! oh! fantasia!
A descendência nossa em sangue lavaria
A afronta vergonhosa (e fez nisto uma pausa)
Que só ainda em lembrar imensa dor me causa.
Pois quando ao longe ouvi com desprazer infindo
O vento soletrar: “O teu poder é findo”
Febricitante e louco aos céus ergui as mãos,
Um juramento fiz: vingar os meus irmãos.
Ao povo exterminado eu disse: “em paz descansa.
Não muito tardará o dia da vingança!”
Raiar de sol não houve e noite mais fugace
Que me isto da memória uma só vez recuasse.
No entanto tu a vida, a minha vida inteira,
A vida que sofri para vingar-me à poeira
Lanças do esquecimento. Um índio quando jura,
Saibas que já divisa a morte a sepultura
A acenar-lhe ao longe ao ver esfarrapada
Do juramento seu a fórmula sagrada.
Pulsa-me nervoso o peito e furioso arde...
Não quero que o futuro o nome de covarde
Atire sobre mim. Que eu seja antes proscrito,
Como um judeu errante ou como um cão maldito!
Deteve-se um instante. As lâmpadas do céu
Cansadas de velar agonizam. O véu
Da noite, lentamente, além esmaecia...
Desponta sorridente o precursor do dia.
Alegre a saltitar de um galho a outro galho
A passarada entoa o hino do trabalho.
Quebrando esse consenso encantador e belo
Torna o pajé: Não mais viver! Somente anelo
Que em me roubando a filha, o plano meu a meta
Estorvando alcançar, apenas uma seta
Não recuses quebrar comigo, ó estrangeiro,
E dou-te a primazia: Atiras tu primeiro!
Parece-me valente e forte e é mister
Que não te mostres fraco à vista da mulher
Que te consagra amor. Vamos! O arco entesa!
Faz que ele no meu peito encontre sua presa.
Choras? És mole, és fraco, és vil, és podridão,
És verme a rastejar imundo pelo chão.
Tremes? És miasma, és lodo, és excremento e pó...
Um mancebo chorar causa-me nojo e dó!
Não te enrubesces, não? Eu mesmo me envergonho
De dizer cousas tais e tu, um ar tristonho
Dissimulas e fraco e covarde e vil moço
Sofres tudo como um cão que se lhe atira osso
Por prêmio ao teu valor, ó infame aventureiro,
Recebe o meu castigo e às faces do estrangeiro
Um murro que uma fera ao solo derrubara
Vibrou raivoso. Mal o som se dissipara
Nos meandros da floresta o javali ferido
Estorce-se no chão, solta um longo gemido,
Depois o arco toma e a flecha, a flecha ervada,
Surdo à voz de Jurema, a voz de sua amada,
Despede contra o velho... E tal a pontaria,
Que a corsa mais ligeira a vida perderia!
A filha do pajé num salto livra o pai
Cambaleando no ar, se estorce, vira e cai.
O sangue em borbotões espirra, ferve, escorre...
Jurema os olhos cerra e agoniza e morre.
A flecha traspassara-a . O sol nesse momento
Surgia iluminando o azúleo firmamento.

Campello – 28/12/1920


fauces inhiantes – latinismo que significa que têm a goela ou garganta aberta, famintas, que esperam avidamente.

Perscrutar – examinar, investigar rigorosamente.

Virentes – verdejantes, viçosos, viridentes.

Irisado – matizado com as cores ou as nuanças do arco-íris.

Prava – perversa, injusta, cruel, deformada.

desposada está desposado, no manuscrito (erro evidente!).

Alfombra – certa extensão de relva, verdura, flores etc., que recobrem o chão como um tapete.

Incólume – sem lesão ou ferimento; livre de dano ou perigo; são e salvo.

Inócuo – que não causa nenhum tipo de dano físico, moral, psicológico ou afim.

No português brasileiro, a próclise seria preferível, mas, no início do século XX, a sintaxe portuguesa dominava nossa norma culta.

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