301
Vaõ quatro ou seis artilheiros
Cavalgar-lhe a artilharia,
Porque em sendo noite dà
Fogo a toda a cousa viva.
Tira com balas hervadas,
A que naõ ha medicina,
Porque as traz sempre na bocca
Com venenosa saliva.
O caso é monstruosidade,
Porem naõ é maravilha,
Que haja cobras e largartos
Entre tanta sevandija.
Só digo que é boa peça,
Porque na peça escondida,
Vélla na peça de noite,
Dorme na peça de dia.
302
A uma dama por nome Ignacia Paredes.
Romance.
Quiz ir à festa da Cruz
Ignacia, e faltou-lhe a rede,
Com que foi força ficar
Paredes entre paredes.
Outros dizem que uma amiga
Lhe pediu o manto adrede,
Pela ter emparedada
Todo o dia, em que lhe peze.
Naõ sei a verdade disto,
Sei que eu paguei a patente,
Tendo um dia de trabalho,
Porque de festa lh'o désse.
A saber que estava em casa,
Visitara-a como sempre,
E fizera o que costumam
Casador in em facie Ecclesiae.
303
Fôra-me pôr a janella,
Porque o calor me refresque,
Fallára co'as Guapas sujas,
Que saõ limpas quapamente.
Marianna se agastára,
Que tudo escuta e attende,
Por isso diz o adagio,
Manço que ouvem as paredes.
Sabendo d'este ciume
Foram as Guapas contentes,
Que inda que mulheres feias,
Saõ feias, porem mulheres.
Iganacia se socegàra,
Que é moça mansa e alegre,
E com dous mimos se po~e,
Sendo Ignacia, uma Clemente.
Da sua amiga me queixo,
Que caõ de horta me parece,
Pois em todo o dia nunca
Comeu, nem deixou comer-me.
304
Com Ignacia já naõ quero
Lançar mais barro à parede,
Que de mui sêcca receio
Que alli o meu barro naõ pegue.
Uma mãi com duas filhas
Na verdade é pouca gente,
Para que eu possa cantar
Preso entre quatro paredes.
Tres só naõ fazem prisaõ,
Porque um triangulo breve,
Que um sino Salmão figura,
Mais enfeitiça que prende.
Mas a parede de Ignacia,
Com ser uma taõ sómente,
Como é taõ forte e taõ rija,
Bastou só para prender-me.
Perdi o ganho essa tarde,
E cuido que para sempre,
Quem m'a pegou uma vez,
Naõ quero que outra m'a pegue.
305
Da Santa Cruz era a festa,
E a maldita da Paredes,
Com cruz, e sem cruz receio,
Me faça calvarios sempre.
Eu perdi moça que agrade,
Ella velho que aconselhe,
Ambos ficámos perdidos,
Quem o vê que o remedeie.
Ao Padre Damazo da Silva.
Romance.
Damazo aquelle madraço,
Que em pés, maõs e mais muidos,
Póde bem dar seis e az
Ao maior frizão de Hamburgo:
Cuja bocca è mentideira
Onde acode todo o vulgo,
A escutar lá sobre a tarde
As mentiras como punhos:
306
Mentideiro frequentado
De quantos Senhores burros
Perdem o nome de limpos,
Pela amizade de um sujo.:
Cuja lingua é Relação,
Onde acham os mais puros,
Para accusar um fiscal,
Para cortar um verdugo.
Lote muito parecido
Aos vicios todos do mundo,
Pois nunca os alheios corta
Sem dar no seu proprio escudo.
Santo Antonio de baeta,
Que em toda a parte do mundo
Os casos, que succederam,
Viu e foi presente a tudo.
O Padre papa jantares,
Hospede taõ importuno,
Que para todo o banquete
Traz sempre de trote o buxo.
307
Professo da providencia,
Que sem lograr bazaruco
Para passar todo um anno
Nem dois vintens faz de custo.
Que os amigos sustentam,
E lhe daõ como de juro
O jantar, quando lhes cabe
A cada qual por seu turno.
E essa vez que tem dinheiro,
Que é de sete em sete lustros,
Tres vintens com um tostaõ,
Ou dois tosto~es quando muito:
Com um vintem de bananas,
E de farinha dous punhos,
Para passar dia e meio,
Tem certo o paõ e o conduto.
Lisongeiro sem recato,
Adulador sem rebuço,
Que por papar um jantar,
De um Sachristaõ faz um Nuncio.
308
De um Tambor um General,
Um branco de um mamaluco,
De um sanzala um palacio,
E um galeaõ de um pantufo.
E em passando a occasiaõ,
Tendo já repleto o buxo,
Desanda co'a taramella,
E a todos despe de tudo.
Outro Satyro de Esopo,
Que co'o mesmo bafo astuto
Esfriava o caldo quente,
E aquentava o frio punho.
O Zote, que tudo sabe,
O grande jurisconsulto,
Dos litigios fedorentos
D'esta cidade monturo.
O Bartolo de improviso,
O subitaneo Lycurgo,
Que anoitece um sabe nada,
E amanhece um sabe tudo.
309
O letrado gratis dato,
E o que com saber infuso
Quer ser legista sem mestre,
Canonista sem estudo.
O graduado de douto
Na Academia dos burros,
Que é brava Universidade
Para doutorar brunduzios.
Magano sem repugnancia,
Desaforado sem susto,
Intromettido sem risco,
E sem desar abelhudo.
Fraquissimo pelas maõs,
E valentaõ pelo vulto,
No corpo um grande de Hespanha,
No sangue escoria do mundo.
Este tal, de quem fallamos,
Como tem grandes impulsos
De ser baptiza crianças
Para ser soca defuntos;
310
E a Magestade de El-Rei
Tem já com mil esconjuros
Ordenado que o naõ collem,
Nem n'uma igreja de junco:
Elle por manter desejos
Foi-se ao adro devoluto
Da Senhora do Loreto,
Onde está parocho intruso.
Ouvir é um grande prazer,
E ver é um gosto summo,
Quando diz os meus Freguezes,
Sem temor de um abrenuncio.
Item é um gosto grande,
Nas manhaãs em que madrugo,
Vel-o repicar o sino
Para congregar o vulgo.
E como ninguem acode,
Se fica o triste mazullo
Em solitaria estaçaõ
Dizendo missa aos defuntos.
311
Quando o Frizaõ considero,
O menos que d'elle cuido
E' ser parocho boneco,
Feito de trapos immundos.
Isto sois, minha Bahia,
Isto passa em vosso burgo,
Toda sois burgo rural,
Cidade nobre até os muros.
A Thomaz Pinto Brandão, que padecendo uma mula lhe dava diversos
nomes.
Romance.
Fabio, essa bizarria,
Essa flor, donaire e gala,
Mui mal empregada está
Em uma cara caraça.
Sobre ser caraça o rosto,
Diz em que a dita mulata
De mui dura e rebatida
Tem já o couro couraça.
312
Item, que está muito podre,
E naõ escusa esta Paschoa
Para seccar os humores
Fazer de salsa salsada.
Naõ me espanto que nascessem
Taes effeitos de tal causa,
Que de mulata sahe mula,
Como de mula mulata.
Um dia dizeis que é ingoa,
No outro que naõ é nada,
E eu digo, se naõ for mula,
Que será burra burrada.
Mas direi por vossa honra,
Que é quebradura sem falta,
Que de cantar e saltar
Mil vezes o tallo estalla.
Ponde de contra rotura
Um parche na parte inchada,
Com funda, porque a saude
Fique na funda fundada.
313
Despede-se o Poeta de Pernamerim muito saudoso sobre um cavallo
chamado o Tainha.
Romance.
Adeus meu Pernamerim,
Que me vou sobre o Tainha
Eugasgado em crueldades,
E espinhado em Tyrannias.
Adeus, visinhas do pasto,
Que na varanda de cima
Nos mataram a Marrada,
E a comemos de rebimba-.
Adeus, rica Cachoeira
Onde a vermelha cohabita,
Co'o peregrino que passa,
Co'o morador que a visita.
Adeus, Casa principal
Aos olhos nunca escondida,
Por ser sobre o monte posta,
Como se canta na missa.
314
Adeus, Catona bizarra,
Adeus, gente da cosinha,
Adeus putissima Samba,
E honestissima Luzia.
Adeus Gracia falladeira,
Bem que com graça infinita,
Adeus a outra Ma~y monda
Que se chama Clara Dias.
Adeus Moroçongo alegre,
E o Fofô da estribaria,
Adeus Borrozo de baixo,
Adeus Catuge de cima.
Adeus, ó fresca varanda,
Onde joga a rapazia
Castanhas com mil trapaças,
E trapaças com mil brigas.
Adeus, Maria Pereira,
Que sempre à mesa assistias
Diligentemente alegre
Co'a comida e co'a bebida.
315
Adeus, Brites gavachona,
Que inda que sois concubina
Do Gabriel, que vos sangra,
Nunca vos deixa ferida.
Adeus, terras agradaveis,
Cheias de cannas taõ ricas,
Que estaõ dizendo comei-me
A quem passa, a quem caminha.
Adeus, Ignez amuada,
Que por uma negra pinga
Tres dias me não fallaste,
E me xingaste tres dias.
Morto de vossas saudades
Me vou por estas campinas
A risco de chegar morto,
Se naõ fôra no Tainha.
Adeus, amigo Fernando,
Que ao som de uma guitarrinha
Attrahís à vossa casa
Toda a Angola e toda a Mina.
316
Adeus Ignacia, adeus flor,
Que na vossa almo fadinha
Cantaveis sem tom nem som
Todos os Kirios da missa.
Adeus Antonico, que
Cantando em doce harmonia,
O mesmo fizera eu,
A ter garganta taõ fina.
Adeus Joanna Perú,
Que perdestes por preguiça
Os dois tosto~es que vos davam,
Para andares taõ mofina.
Adeus ricas cachimbadas,
Que á primeira luz do dia
Vinham flammantes de fogo;
E de fumo presumidas.
Adeus, e outra vez adeus,
Até à primeira vista,
Se naõ me aleija a doenca,
E a morte naõ me engolipa.
317
Saudoso de Pernamerim, e por occasião de haver visto na villa de
S. Francisco, onde estava, um moleque chamado Moçorongo, que
tambem se envolveu no Romance antecedente, escreve a um amigo
d'aquelle sitio.
Romance.
Veio aqui o Moçorongo
Taõ occulto e escondido,
Que naõ sei se o tenha a elle,
Se a vós por meu inimigo.
Chegou terça feira à tarde
Metteu-se em casa de Chico,
Passou a tarde e a noite,
E o peior é que dormindo.
Porque havia de dormir
O Moçorongo maldito,
Sabendo que estava eu
Desvelado e affligido?
318
Amanheceu quarta feira,
Chegou o nosso Arcebispo,
Gastou-se toda a manhaã
Com visitas e visitos.
Deu meio-dia, e fui eu
Para casa dos amigos
Esfaimado como um caõ,
E como um lobo faminto.
Quando o cão do Moçorongo
Sahiu do seu escondrijo,
E sem lhe occorer o encontro
Deu de focinhos comigo.
Alegrei-me, e enfadei-me,
Que ha casos em que é preciso
Que se mostre ao mesmo tempo
Alegre um peito e mofino.
Amofinou-me a traiçaõ
Com que elle esteve escondido,
E alegrei-me de encontrar
Com gente d'esse districto.
319
Perguntei logo por vós,
Por Ignacio e Antonico,
Por Luzia e por Catona,
E mais gente d'esse sitio.
Todos estaõ com saude,
Me disse o crioulo esquivo,
Um tanto triste da cara,
Pouco alegre do focinho.
Mas eu fiz-lhe muita festa,
Assim por ser seu amigo,
Como por ser cousa vossa,
E n'esse pasto nascido.
Perguntei se me escreveras,
Zombom disso, e deu-me um trinco,
Zombou com cara risonha,
Trincou com dedo tangido.
Disto formo a minha queixa,
Disto fico mui sentido,
Pois sei que tendes papel,
Tinteiro, penna, e juizo.
320
Mas andar lá nos veremos,
E vereis que de sentido
Nos heide estrugir a vozes,
E me heide espojar a gritos.
Meus recados a Luzia,
E que estou já de caminho,
Porque só ella me farta,
E à fome aqui me entizico.
Escreve tambem queixoso a seu amigo Ignacio morador em
Pernamerim, em quem falla no Romance antecedente.
Romance.
Senhor Ignacio, é possivel,
Que quizestes desdizer
D'aquella boa opiniaõ,
Que eu tinha na vossa fé?
É possivel que um amigo,
De quem tanto confiei,
Nem por escripto me falla,
Nem em pessoa me vê?
321
E possivel que uma ausencia
Tanta potestade tem,
Que ao vivo morto reputa
No que toca ao bem querer?
Se isto vós a ausencia faz,
Como em meu peito o naõ fez?
Naõ sois vois o meu ausente,
Que em meu peito viveis?
O certo é, meu amigo,
Disse amigo, mas errei,
Que naõ sois amigo já,
Sois o meu socio talvez.
Fostes socio nos caminhos
D'aquella terra infiel,
Onde Luzia traidora,
E Catona descortez,
Me privaram dos sentidos,
E me deixaram crueis
O corpo uma chaga viva
A golpes de seus desdens.
322
Mas eu me naõ queixo d'ellas,
Que de nenhuma mulher,
Má ou boa, hade queixar-se
Homem que juizo tem.
Quexo-me de vosso tio,
Que se foi por me empecer
Esta terceira jornada
Para acabar o entremez
Praza a Deus que ache Simoa,
A quem amante foi ver,
Como hade achar Antonica
Farta de xesmininez.
D'aquella Antonica fallo,
Que pôz no negro poder
Das Guitas, para que a guardem,
E a guardaram ao revez.
Que a Silvestre a entregaram,
O qual, como vós sabeis,
Apezar dos dias santos
Lhe deu tanto que fazer.
323
Mas pois em Pernamerim,
E em suas cousas toquei,
N'este mesmo assumpto quero
Me façais uma mercê.
Dizei-me se está o Antonio
Recolhido a seu vergel,
Onde era geral Adão
Das Evas que Deus lhe deu.
E se acaso tiver vindo,
Vos peço que lhe mandeis
Este romance fechado
Em um molhado papel.
Porque no molhado veja
O choro com que lancei
Estes versinhos taõ tristes
Por amar e querer bem,
A elle, que me fugiu
D'esta casa, ha mais de um mez,
E à Catona que o imita
No esquivo e no infiel.
324
E com isto, e outro tanto,
Que me fica por dizer,
Adeus, até que tenhais
Quem vos traga a meu vergel.
A Bento Pereira.
Romance.
Amigo Bento Pereira,
Que em todo o nosso Brazil
Sois homem de muitas prendas,
Tendo taõ pouco quatrim.
Assim agradára eu
A quatro villo~es ruins,
A quem n'esta terra enfado,
Como me agradais a mim.
Vós sois um homem honrado
De generosa raiz,
Nobre com ventosidade,
Honrado com retintins.
325
Sois galan com artificio,
Aceiado com ardil,
Só vós sois homem honrado,
Os de mais homens gentis.
Todo o mundo vos quer bem,
Porque tendes, e é assim,
Cara de ter mil amigos:
Mil amigos? mais de mil.
Sois muito leal com todos,
Cousa que naõ se usa aqui,
Por isso sois mal servido
De quantos costumam servir.
Empeçou-vos a fortuna,
Que a fortuna é villaã ruim,
Para os seus sempre a chegar-se,
E de vós sempre a fugir.
Agradais-me dentro d'alma,
Que como eu tambem cahi
E os semelhantes se amam,
Por semelhante vos quiz.
326
Tende-me em conta d'amigo,
E tereis sempre de mim
Excessos de par em par,
Finezas de mil em mil.
Descreve o rico feitio de um celebre Gregorio de Negreiros, em
que varias vezes falla, moço com quem gracejava com divertimento
n'aquelle sitio.
Romance.
Eu vos retrato Gregorio,
Desde a cabeça à tamanca,
C'um pincel esfarrapado
N'uma pobrissima tabua.
Taõ pobre é vossa gadelha,
Que nem de lendias é farta,
E inda que cheia de anneis,
Saõ anneis de piassaba.
327
Vossa cara é tão estreita,
Taõ faminta e apertada,
Que dá inveja aos Buçacos,
E que entender às Thebaidas.
Tendes dois dedos de testa
Porque da frente a fachada
Quiz Deus a vossa miseria
Que naõ chegue a pollegada.
Os olhos dois ermita~es,
Que em uma lobrega estancia
Sempre fazem penitencia
Nas grutas da vossa cara.
Dois arcos quizeram ser
As sobrancelhas, mas para
Os dois arcos se acabarem
Até de pello houve falta.
Vosso pai vos amassou
Porem com miseria tanta,
Que tremeu a natureza
Que algum membro vos faltára.
328
Deu-vos tão curto o nariz,
Que parece uma migalha,
E no tempo dos defluxos
Para assoar-vos naõ basta.
Vós devieis de ser feito
No tempo em que a lua se acha
Pobrissima já de luz,
Correndo à minguante Quarta.
Pareceis homem meminho,
Como o meminho da palma,
O mais pequeno na rua,
E o mais pobresinho em casa.
Vamos aos vossos vestidos,
E peguemos na casaca
Com tento, porque sem tento
A leva qualquer palavra.
Anda taõ rota,Senhor,
Que tenho por cousa clara
Que no Tribunal da Rota
De Roma está sentenciada.
329
A vossa grande pobreza
Para perpetua lembrança
Dedico à de Manoel Trapo,
Que foi no mundo affamada.
A' Brites, uma parda dama vulgarmente chamada Betica, pedindo-lhe
cem mil réis.
Romance.
Betica, a bom mato vens
Com teu dá cá, com teu toma,
O Diabo te enganou,
Naõ póde ser outra cousa.
Viste-me acaso com geito
De commissario de frotas,
Que faz roupa de Francezes
Dos brocados de Lisboa?
Sou eu acaso o Mafullo,
Que do que tem de outras contas
Dá sem conta em cada um anno
Cem mil cruzados à Rola?
330
Sou matachim por ventura,
Que vim ante-hontem de Angola,
Que dos escravos alheios
Faço mercancia propria?
Menina eu bato moeda?
Eu sou um pobre idiota,
Que para um tostaõ ganhar
Estudo uma noite toda.
Cem mil réis me vens pedir?
A mim cem mil réis, demonia?
Se eu algum dia os vi juntos,
Deus mos dê, e tu mos comas.
Se eu nascêra Genovez,
Ou fôra Viz-.Rei de Goa,
Vinte quatro de Sevilha,
Ou quarent'oito de Roma:
Dera-te, minha Betica,
Pela graça, com que tomas,
Mais ouro que vinte minas,
Mais seda que trinta frotas.
331
Mas um pobre estudantaõ,
Que vive á pura tramoia,
E sendo leigo se finge
Cleriguissimo Corona.
Que póde, Betica, dar-te
Se naõ que versos, nem prosas?
Eu naõ dou senaõ conselhos,
Se mos paga quem mos toma.
Se me hade custar taõ caro
Erguer-te uma vez a roupa,
Com outra antes de barrete,
Do que comtigo de gorra.
Para que sendo taõ rica
Pedes como pobretona,
Se esses teus dentes de prata
Estorvam dar-se-te a esmola¿
Que mais cabedal desejas,
Se és taõ rica de parolas,
Que com varios chistes pedes
Todo um dia a mesma cousa?
332
Tu pedindo, e eu negando,
Que cousa mais preciosa,
Que val mais do que desejas,
E a ti nada te consola.
Cem mil réis de uma só vez!
Pois, pobreta, a outra porta:
Deus te favoreça, irmãa,
Naõ ha trocado, perdoa.
Naõ ha real em palacio:
Ando baldo, perdi a bolsa,
Que saõ os modos com que
Se despede uma pidona.
A' Annica, outra semelhante parda, pedindo-lhe um cruzado para
pagar uns sapatos.
Romance.
Um cruzado pede o homem,
Annica, pelos sapatos,
Mas eu ponho isso à vista
Na postura do cruzado.
333
Diz que saõ de sete pontos,
Mas como eu tanjo rasgado,
Nem n'esses pontos me metto,
Nem me tiro d'esse trastos:
Inda assim se eu naõ soubera
O como tens trastejado
Na banza dos meus sentidos,
Pondo-me a vista em cacos:
O cruzado pagaria,
Já que fui taõ desgraçado,
Que boli co'a escaravelha,
E-toquei sobre o buraco.
Porem como já conheço,
Que o teu instrumento é baixo,
E saõ taõ falsas as cordas,
Que quebram a cada passo:
Naõ te rasgo, nem ponteio,
Naõ te ato, nem desato,
Que pelo tom que me tanges,
Pelo mesmo tom te danço.
334
Busca outros temperilhos,
Que eu já estou destemperado,
E estou na quinta do Pegas
Minhas cousas cachimbando.
Se tens o cruzado, Annica,
Manda tirar os sapatos,
E senaõ lembre-te o tempo,
Que andaste de pé rapado.
E andavas mais bem segura,
Que isto de pizar em saltos
E' susto para quem piza,
E a quem paga é sobresalto.
Quem te curte o cardavaõ
Porque naõ te dá sapatos?
Mas eu que te rôo o osso
E' que heide pagar o pato?
Que diria quem te visse
No meu dinheiro pizando?
Diria que quem t'o deu
Ou era besta, ou cavallo.
335
Pois porque naõ digam isso,
Leve-me a mim Saõ Fernando:
Se os der, e se tu os calçares,
Leve-te, Annica, o Diabo.
De mais, que estou de caminho,
E seria mui grande asno
Estar para dar a sola,
E a ti deixar-te os sapatos.
Agora se cà tornar,
Trarei pelles de veado
Para dar-te umas chinelas
Duraveis, que é mais barato.
Fica-te na paz de Deus,
Saudades até quando,
Vem-te despedir de mim,
Porque de hoje a oito parto.
336
A uma dama que se achava com o fluxo mensal.
Romance.
O teu hospede, Catita,
Foi muito atrevido em vir
A tempo que eu hei mister
D' aposento para mim.
Naõ vou topar-me com elle,
Porque havemos de renhir,
E hade haver por força sangue,
Porque é grande espadachim.
Tu logo trata de pôr
Fóra do teu camarim
Um hospede caminheiro,
Que anda sempre a ir e vir.
Um hospede impertinente,
De máo sangue e villaõ ruim:
Por mais que Cardeal seja,
Vestido de carmizim.
Despeje o hospede a casa,
Pois lhe naõ custa um seitil,
E a occupa de ordinario
Sem pagar maravedí.
337
Naõ tenhas hospede em casa
Taõ ascaroso e taõ vil,
Que até os que mais te querem
Fujam por força de ti.
Um hospede aluado,
E sujeito a frenesís,
Que em sendo quarto de lua
A' fina força hade vir.
Que demonio hade soffrel-o,
Se vem com taõ sujo ardil
A fazer disciplinante
Quem foi sempre um seraphim?
Acaso o teu passarinho
E' pelicano serril,
Que esteja vertendo sangue
Para os filhos que eu naõ fiz?
Vá-se o mez, e venha o dia,
Em que se possa acudir
A taõ crueis lancetadas
Com lanceta mais subtil.
Deixa já de ensanguentar-te,
Porque os peccados que eu fiz
Naõ é bem que os pague em sangue
O teu passaro por mim.
338
A umas moças que costumavam ir a uma roça.
Romance.
Vamos cada dia à roça,
Se é que vai a camarada,
Que ri e folga à franceza,
E pinta á italiana
Vamos, e fiquemos lá
Um dia ou uma semana,
Que em quanto as gaitas se tocam
Sabe a roça como gaitas.
Vamos à roça, inda que
Nos fique em tantas jornadas
Cada meia sem palmilha,
E sem sola cada alparca.
Vá Mané, e vá Marcella,
Vá toda a nossa prosapia,
Excepto a que por cazar
Naõ po~e pé fóra de casa.
Caze, e taõ cazada fique,
Que nem para fazer caca
Jámais o marido a deixe,
Nem se lhe tire da ilharga.
339
Caze, e depois de cazar-se
Tanto gema, e tanto paira,
Que caia em meio das dores
Na razaõ das minhas pragas.
Caze, e tanto se arrependa,
Como faz toda a que caza,
Que nem para descazar-se
A via da igreja saiba.
E nós vamos para a roça
Co'nosso feixe de gaitas,
Até ver-me descazada,
Para me rir de quem caza.
A Belata ou Izabel, uma mulata da Villa de Saõ Francisco, sendo
satyrisada pelo poeta com a obra a f-, lhe mereceu pelas suas
lagrimas esta satisfação burlesca.
Romance.
Beleta, eu zombeteava,
Que nunca fallo de veras,
Satyrisando as amigas,
Senaõ contando finezas.
340
Vós naõ dormís co'o Alexandre,
Nem o rapaz tal intenta:
Nem da janella saltou,
Nem foi passado por merda.
Tudo é embuste de moços,
Tudo saõ contos de velhas,
E se o sitio o diz assim,
Mente o sitio e toda a terra.
Mas quem a amor tirará
Que mil cuimes conceba
Das mais pequena mentira,
E da mais leve suspeita?
Eu ouvia e escutava,
E passava estas mizerias,
De manhã pelos ouvidos,
De tarde pelas orelhas.
Entendi que assim seria,
Imaginei que assim era,
Porque a um amor de bom gosto
Sempre acompanha a má estrella.
Senti a minha fortuna,
Queixei-me da vossa offensa;
Quem com finezas enfada,
Como agradará com queixas?
341
Muger llora y vencerás,
Dizia o douto poeta:
Vós chorastes e vencestes
E eu choro por quem vença
Estais tão justificada
No juizo das suspeitas,
Que amor vos absolve já
Se lhe prometteis emenda.
Retirai-vos de rapazes,
Que é gente que se conversa
É força que infame acasa
Pelas cócegas que deixa.
Enxugai, Beleta, o pranto,
Em riso se torne a queixa,
Comei cajús e voltai,
Que a minha fruita está certa.
A uma moça por nome Barbara.
Romance.
Babú, como hade ser isto?
Eu me sinto já acabar,
E estou taõ intercadente,
Que naõ chego té amanhã.
342
Morro da vossa belleza,
E se ella me hade matar,
Como eu creio que me mata,
Formosa morte será.
Mas seja formosa ou feia,
Se o Deaõ me hade enterrar,
Por mais formosa que seja,
Sempre caveira será.
Todos já aqui desconfiam,
Tudo é já desconfiar,
Da minha vida os doutores,
E eu de vosso natural.
Desconfio de que abrande
Vosso rigor pertinaz;
E a minha vida sem cura
Sem duvida acabará.
Porque se estais incuravel,
E taõ sem remedio está
O achaque de naõ querer-me,
E o mal de querer-me mal:
Que esperança posso eu ter,
Ou que remedio ha capaz,
Se vós sois a minha vida,
E morreis por me matar?
343
Amor é uniaõ das almas
Em conformidade tal,
Que porque estais sem remedio,
Por contagio me mataes.
Curai-vos de mal querer-me,
E do fastio em que estais
A minha triste figura,
Que ao Demo enfastiará,
Comei, e seja o bocado,
Que com gosto se vos dá,
Porque em vós convalescendo,
Heide eu também melhorar.
Assim sararemos ambos,
Porque se vós me enfermais
Pelo contagio, o remedio
Por sympathia será.
Vós, Babú, virais-me as costas,
Pois eu faço outro por tal:
Estou às portas da morte,
A falla me falta já.
Quero fazer testamento,
Mas já naõ posso fallar,
Que vós por costume antigo
Sempre a falla me quitais.
344
Mas testarei por acenos,
Que tudo em direito ha,
E se por louco o naõ posso,
Posso por louco em amar.
Todos meus bens, se os tivera,
Os deixára a vós naõ mais,
Mas deixo-vos para outrem,
Que é o mais que posso deixar.
Se heide deixar-vos a vós
Quantos bens no mundo ha,
Em vos deixar a vós mesma,
Arto herdada assim ficais.
Em suffragios da minha alma
Naõ gasteis o cabedal,
Que aos vossos rigores feita
Penas naõ hade estranhar.
Mas se por minhas virtudes,
E se por vos jejuar,
E se por tantas novenas,
Que à vossa imagem fiz já,
Vos mereço algum perdaõ
Dos peccados que fiz cá,
Assim em vos perseguir,
Como em vos desagradar:
345
Com as maõs postas vos peço
Que no vosso universal
Juizo mandeis minha alma
Ao vosso Céo descansar
Naõ a mandeis ao Inferno,
Que arto inferno passou cà:
Adeus, e apertai-me a maõ,
Que eu me vou a enterrar.
A uma mulata chamada Cordula.
Romance.
Cordula da minha vida,
Mulatinha da minha alma,
Leda como as Alleluias,
E garrida como as Paschoas:
Valha-te Deus por cabrinha,
Valha-te Deus por mulata,
E valha-me Deus a mim,
Que me metto a guardar cabras.
Quando te apolego as tetas,
Como uns marmelos inchados,
Me daõ tentaço~es, porque
Cuido que saõ marmelada.
346
Tu me matas por donzela:
Porque, Cordula, te gabas
De virgo, sendo que Virgo
Nunca em Capricornio anda.
Passei pela tua porta,
Estavas junto da casa,
Chamei-te, achei-te cortez,
Vieste, e foste tyranna.
Porque apenas t'o pedi,
Quando me virastes a anca,
E é um cabaço que fingís
Me destes mil cabeçadas.
Em fim me destes o sim,
Com que creio que me enganas,
Porque se ha xim xim de brancos,
Tu és o xim xim das cabras.
Por esta cara te juro
Que em levando a virotada,
Me hasde rondar pela porta,
Me hasde puchar pela capa.
347
A' mulata Joanna Gafeira, estando queixosa do Poeta a haver
satyrisado.
Romance.
Naõ posso cobrar-lhes medo,
Joanna, a vossos focinhos,
Que como sois taõ formosa,
Cede à verdade o fingido.
Tanta olhadura a travez,
Tanto focinho torcido,
Tanto pescoço empinado,
Tanto esguelhado beicinho,
Saõ modos taõ estrangeiros,
Alheios e peregrinos
Das perfeiço~es naturaes
Do vosso rosto divino,
Que jámais podem fazer
No meu peito amante e fino
Retroceder as tenço~es,
Nem arribas os designios.
Sempre caminhando ávante,
Nunca deixando o caminho,
Ando atraz de ver se posso
Chegar a vosso captivo.
348
Se me ferraes esta cara
C'um favorzinho de riso,
Me heide rir de farto entaõ
Do mundo e seus regosijos
Heide pôr-me a rir então
De sorte que a riso fito
Me haõ de ter em todo o orbe
Por Democrito dos risos.
Olharei para a Beleta,
E me rirei dos meninos,
Que andam sempre a beliscal-a
Qual mono com seus bogios
Olharei para Apollonia,
E de a ver entre os corrilhos,
De tanta canastra honrada,
Que é a nobreza do sitio.
Rirei de ver cada um
Ir-se d'aqui despedido,
Entonces mais carregado,
Porque entonces mais vazio.
A elles pelas estradas
Suspirando pelo sitio,
A ella pelos oiteiros
Zombando de taes suspiros.
349
A elles tomando o tolle
Para o sertaõ fugitivos,
Tanto fugindo dos amos,
como da conta fugindo.
A ella por capoeiras
Estreando co'os meninos
A baetinha dos pobres,
A serafina dos ricos.
Para a Ursula olharei,
E rirei de a ver no Sitio
Parafuzando pivetes
Pela tarracha do embigo.
Rirei de ver os amantes,
Rirei de ver os queridos,
Que tendo-se por ditosos,
Saõ em seus gostos mofinos.
E só feliz eu serei,
Se logro os vossos carinhos,
E me impigís n'esta cara
Da vossa bocca um beijinho.
Tende-me na vossa graça,
E a queixa se torne em riso,
A malquerença em amor,
E o desfavor em carinho.
350
A Damazia, outra mulata que chamava seu um vestido que trazia de
sua Senhora.
Romance.
Muito mentes, mulatinha,
Valha-te Deus por Damazia,
Naõ sei quem sendo tu escura,
Te ensina a mentir às claras.
Tal vestido, e com tal pressa!
Naõ vi mais ligeira saia:
Mas como a seda é ligeira,
Foi a mentira apressada
Tal vestido naõ é teu,
Nem tu tens, Damazia, cara
Para ganhar um vestido,
Que custa tantas patacas.
Tu ganhas dous, tres tosto~es
Por duas ou tres topadas,
Naõ chegam as galadura
Para deitar uma gala.
Nem para os feitios chegam
Os troquinhos que tu ganhas,
Pois naõ vale o teu feitio
Mais que até meia pataca.
351
De soldado até sargento,
Ou até cabo de esquadra,
Naõ passa o teu roçagante,
Nem te chega a triste alçada.
Estes que te podem dar
Mais que uma vara de cassa,
Uma cinta de baeta,
E saia de persiana;
Collete de chamalote,
E de vara e meia a fralda,
Que fazem oito mil réis,
Que é valor da pobre farda:
Todos sabem que o vestido,
Que em verdes campos se esmalta,
É verdura de alguma besta,
Que em tua Senhora pasta.
Mas o que é d'ella teu é,
Que é outra que tal jangada,
E talvez por to emprestar
Se ficaria ella em fraldas.
Apostemos que naõ vestes
Outra vez a verde saia!
E nem de a vestires mais
Te ficam as esperanças.
352
Ora toma o meu conselho,
E vive desenganada,
Que em quanto fores faceira
Naõ has de ganhar pataca.
A uma mulata Esperança.
Romance.
Na Catalla me encontrei
Ante hontem com Esperança,
E porque à Catalla fui,
Dizem que fui a catal-ª
Mentem por vida de El-Rei,
Que mal podia ir buscal-a
Quem em sua negra vida
Naõ tinha visto tal parda.
Dei em buscal-a depois,
Porque a boa da mulata
Deu com dar-se por perdida
Nos meios de ser buceada.
Dei com ella, e perguntando-lhe
Onde vivia e morava,
De quem era, a quem servia,
E se andava amancebada:
353
Ella respondeu em fòrma,
Me disse as formaes palavras:
"Eu, meu Senhor dos meus olhos,
E meu Doutor da minha alma,
Sou captiva de vossê,
De Luiz Corrêa escrava:
Onde vivo é lá na ponta,
Onde moro é na Catalla:
Porque segundo estou vendo
De seu rendimento e ancias,
Creio que a Catalla é
Onde a minha vida mata.
Amancebada naõ sou,
Porque a sorte me aguardava
Este encontro de vossê,
Para enlaçarmos as almas.
Aqui estou a seu serviço,
Veja agora o que me manda,
Que se me manda assentar,
Ver-me-ha logo deitada."
Agradeci-lhe o favor
Com meu par de pataratas,
E chegando-me para ella,
Lhe fui logo erguendo as fraldas.
354
Pelas fraldas fui ao monte,
E quando lhe puz a palma,
Foi pouco para cobril-o,
Porque o monte era montanha.
Outra gala me pediu,
Que eu prometti com mão larga,
E heide gallal-a mais vezes
Para cumprir-lhe a palavra.
Extravagante acontecimento com tres mulheres menstruadas.
Romance.
Que tem os mentruos comigo?
Ordinarios que me querem?
Que de ordinario me matam
E a cada hora me perseguem?
Estive os dias passados
Esperando por um frete:
Tardou, naõ veio, enganou-me,
Costume de más mulheres.
355
Fui logo saber a causa,
E no caminho lembrei-me
De fazer este discurso,
Que é cousa em que lido sempre.
Esta mulher me faltou,
Aposto que hade dizer-me,
Que está um disciplinante,
Desde o joelho até o ventre.
Meu dito, meu feito, fui,
Entrei, e ao ver-me presente,
Me disse logo a velhaca
Carinhosamente alegre:
"Ai! meu Senhor da minha alma!
Nada póde hoje fazer-se,
Dei palavra hontem de tarde,
E à noite me veio elle."
Quem é elle? perguntei:
Vossê faz que naõ me entende,
Disse ella, quem hade ser?
O hospede impertinente.
Um hospede que nas luas
Me visita e me acommette
Com tal furor, que me po~e
De sangue um rio corrente.
356
Botei pela porta fòra,
E no primeiro cazebre
Me collei de uma putaina
Mais negra do que um pivete.
Indo entrando para dentro,
Fui ter à cama e deitei-me,
Que as pretas tambem tem camas,
Se sa putas mecatrefes.
Chamei-a, acudiu-me logo,
E me disse cortezmente,
Naõ estou para deitar-me,
Bastará que me atravesse.
Atravessou-se-me aos pés,
E ficou como uma serpe,
Naõ de geito ao appetite,
Para o meu corpo alicerce.
Olhei para a negra entaõ,
E disse comigo, os mezes
Contra mim se deram de olho,
Pois taõ juntos me perseguem.
Naõ era o discurso feito,
Quando ella diz: que pretende?
Estou co'o mez, e mostrou-m'o
Mais negro do que uma peste.
357
Puz-me logo no pedrado,
E comecei a benzer-me
Do demonio, que em figura
De ordinario me persegue.
Fui-me para minha casa,
E no dia subsequente
Me escreveu certa Senhora
Que uma palavra lhe dèsse.
Como era minha Senhora,
Fui eu logo obedecer-lhe,
Fiz-lhe a visita na sala,
E fomos para o retrete.
Vi alli a sua cama,
Vinha cansado, deitei-me,
Deitou-se ella comigo,
Do que fiquei mui contente.
Mas na maõ que lhe corria
Junto já ao sarambeque,
Me agarrou ella e me disse
Tá que estou por cá doente.
Valha-me amor n'este caso,
Que achaque póde ser este?
Aluada estou, disse ella,
Mas em meu juizo sempre.
358
Fiquei taõ desesperado,
Que se ella me naõ promette
De estar boa no outro dia,
Naõ chegára a outros mezes.
Que tem os mentruos comigo?
Que casta de achaque é este?
Que nunca a ninguem matou
Quando de continuo fere?
A quem succede no mundo
Isto que a mim me succede,
Pois tres mezes me passaram
Dentro em dois dias sòmente?
Tornei lá no outro dia,
E achei a pobre doente
Mui sêcca para a visita,
Mui humida para o frete.
Vim, e fui terceira vez,
E se fôra tres mil vezes,
Co'a mesma sangria a achára,
E co'os mesmos accidentes.
Que contracto faz a lua
De arrendamento às mulheres,
Para lhe estarem pagando
A pensaõ todos os mezes?
359
Despedi-me da mulher
D'aqui para todo o sempre,
E vendo- a passada entonces
Lhe disse os males presentes.
Senhora, discreta sois,
Mas naõ sei se me entendestes,
Para uma vida tão curta,
Duram muito os vossos mezes.
Testamento de um cabra da India chamado Pedro, que se dizia ser
feiticeiro.
Romance.
Eu Pedro, Cabra da India,
Que me sinto morrer já
D'uma doença que Deus
Foi servido de me dar:
Naõ sabendo a hora certa
Em que Deus me levarà,
Se é possivel que Deus leve
Um feiticeiro infernal:
360
Posto à gineta na cama,
Se é cama uma cama tal,
Feita de taboa e tabúa,
Uma dura, outra molar:
Em meu perfeito juizo,
Que Deus me deu tal ou qual,
Faço este meu testamento
Solemne de se notar.
Primeiramente declaro
Que eu Cabra Oriental,
Filho da Igreja Romana
Por ceremonia naõ mais,
Creio na Trindade Santa;
Porem creio muito mais
Na trindade das mulatas
De Dona Mendes Sobral,
Nas quaes espero salvar-me,
Principalmente na irmaã
Mais velha, que chamam Guita,
Que é jangada universal.
Deixo muito encommendado
Ao Vigario do logar,
Que naõ me enterre em sagrado,
Que interdicto ficará.
361
Naõ porque và excommungado
Por bulla alguma papal,
Porque sempre vivi faminto
De Papas e Cardeaes:
Mas naõ quero que me enterrem
Na igreja parochial,
Porque fica muito perto
De quatrinca cavallar:
E temo que à meia noite
Me venham desenterrar
Este miseravel corpo
Com unhas e com queixaes.
Este miseravel corpo,
Que sendo taõ natural,
Querem que seja feitiço,
E feitiço hade fícar.
Com que uma e mil vezes peço
Ao Cura, que é taõ sagaz,
Pois haõ de fazel-o em caldos,
Que o mande lançar ao mar.
Là o comam caranguejos,
Que ver serà menos mal
Um homem nos caranguejos,
Que os homens caranguejar.
362
E se infeitiçar os peixes,
Comendo o meu rosalgar,
Com peixes enfeitiçados
Que mal às Guitass irá?
Ao primeiro piscar de olho
Os mandará Guita entrar,
E o que naõ deitar comsigo,
Ao menos o chamará.
A casa se verá farta,
E de sorte abundará,
E descanse a Cajahiba
E as negras de mariscar.
iIrá crescendo nas honras
Mandú caraça, que já
Se jacta de ter cunhado
Taõ fidalgo e taõ galan:
Porque me dizem que diz:
Muito devo à minha irmaã,
Que se dorme com fidalgos
Só por mais me authorizar.
Naõ serei vil pecador,
Ninguem me verá jamais
Sobre a prôa em siroulinhas
Deshonrando as taes irmaãs.
363
Mil honras devo a Marianna,
Que se veio a amancebar
No segundo anno de puta
C'um fidalgo principal.
Outro tanto devo à Guita,
Que lh'o soube aconselhar,
Ensinando-lhe os meneos
De que é mestra e capataz.
E a boa da rapariga
( Muito póde o natural)
Sendo um ranho, uma criança,
Sahiu puta singular
Tal conta se tem comsigo,
Que sabe as noites contar
Em que lhe falta a raçaõ,
E um pleito por ella faz.
Mette-lhe a maõ na barguilha
Ao mano, que a dorme já,
E quer queira, quer não queira,
A tamina hade pagar.
Sobre isto ha muita galhofa,
Que, bendito Deus, tem já
Marana tanta gracinha,
Que aos mortos enfadara.
364
Mas tornando ao testamento,
Que me importa já acabar,
Porque anda a morte de ronda
Com mil demonios atraz
Quero herdeiro instituir,
Pois sei que naõ valerá
Em instituiçaõ de herdeiro,
Conforme Marana o traz.
Instituo a Guita em fim
Por herdeira universal
Dos moveis e das raizes
Que ganhei com Satanaz.
O meu cabaço das ervas,
Combuca de carimá,
A tijella dos angús,
O tacho de aferventar.
O surraõ de pelle de onça,
Que todo cheio achará
De cousas mui importantes
Para ventura ganhar.
Um baraço de enforcado,
Dois dentes, quatro queixaes,
Buço de lobo marinho,
Sangue de pombo trocaz.
365
O olho do gato preto,
Sebo de touro negral,
As enxundias da rapoza,
E a caquinha de um rapaz.
Mijo de velha roupeira,
Remella do lagrimal
De negro torto e cambaio,
Tanharós e mangarás
O que tudo val um reino,
Se o souber aferventar
Nas noites de Saõ Joaõ
Por adros e por quintaes,
Na fórma que lhe ensinei,
Quando me vinha chupar
A pica todas as noites,
Té que vim a arrebentar.
Quando a pica me chupava,
E Antonica por detraz
Nos companheiros pegava
Para o cano endireitar.
Marana se punha a rir,
Mas tratava de ajudar
A Antonica se cansava
Co'o pezo de dois quintaes.
366
E quando entrava Izabel,
Como sentia cheirar
O fervedouro das ervas,
Que no fogareiro está;
Como é golosa de tudo
Quanto aos outros vê mascar
Lhes dava com seu remoque:
Que bello e que lindo está!
Como embruxado acabei,
E chupado pelo caralho,
Sendo um cabra taõ mirrado,
Que naõ tinha que chupar!
Mas eu lhe perdôo a Guita,
Porque me quero salvar,
E porque como aprendia,
Chupava, que chuparas.
A minha benção lhe deixo,
E a encommendo a Barrabaz
Que na sua graça a tenha,
Para o seu goso alcançar.
Com isto tenho acabado
Meu testamento, e me praz
Que inteiramente m'o cumpra
Minha herdeira universal.
367
A Maria, ou Cota Vieira.
Romance.
Senhora Cota Vieira,
Deus me naõ salve a minha alma
Se me vós naõ pareceis
Uma linda e gentil dama.
Risonha como uma Aurora,
Alegre como umas Paschoas,
Mais buliçosa que o fogo,
E mais corrente do que a agua.
Picara, como nascida
Na Picardia de França,
E assim Franceza nas obras,
Portugueza nas palavras.
Tudo chamais por seu nome,
Taõ propriamente e taõ clara,
Que ao cono chamais cono,
E chamais caralha a caral~ha.
Malditas da maldiçaõ
De Deus sejam as velhas,
Que descaradas nas obras
Po~em de bioco as palavras.
368
Ha cousa como fallar
Como o pai Adaõ fallára,
Paõ por paõ, vinho por vinho,
E bisnaga por bisnaga?
E quem pôz o nome à crica,
A' crica que se esporcalha,
Senaõ nosso pai Adaõ
Quando com Eva brincava?
E se poz o nome às cousas
O pai de toda a prosopia,
Porque Deus o permittiu,
Nós porque hemos de emendal-as?
Mas tornando aos vosso garbo,
Sois, Maricas, taõ bizarra
Que estive, nem mais nem menos,
Por vos dar a piçalhada.
Quando a culatra vos vi
Taõ tremente e rebolada,
Logo metti maõ à porra,
E estive saca, naõ saca.
Esteve na ponta da lingua
O pedir-vos uma lasca,
A nata dos vossos leites,
Pois que tem codea essa nata.
369
Mas logo eu adverti
Que alli o capitaõ estava,
Senhor das minha acço~es,
E dono da vossa casa.
Que inda que elle sempre diz,
Que assentou comvosco a espada,
Eu creio no que Deus disse,
Naõ no que um berrante falla.
Quem o que deve a um amigo
Em respeitos lhe naõ paga,
Naõ é amigo, nem é homem,
E' uma besta assalvajada.
Ora andar como elle embora,
Que isso naõ importa nada:
Teremos amores seccos,
Secco é o biscoito e...
Fallaremos sempre aos choros,
E riremos às canadas:
Folgaremos, que amor secco
Sem malhor beiço se passa.
Assim se passa uma vida
Taõ santa e taõ ajustada,
Que ganharemos o céo
Na Sacravia às braçadas.
370
Meus recados à visinha,
Outros tantos à mulata,
A' moça dos pimento~es,
E às vossas damas pintadas.
Reprovações portuguezas.
Se sois homem valeroso,
Dizem que sois temerario,;
Se valente, espadachim;
E atrevido se esfoçado.
Se resoluto arrogante,
Se pacifico sois fraco,
Se precatado medroso,
E se naõ sois confiado.
Se uzais jusiça um Herodes,
Se favoravel, sois brando,
Se condenais, sois injusto,
Se absolveis, estais peitado.
Se vos daõ sois um cobarde,
E se dais sois deshumano,
Se vos rendeis sois traidor,
Se rendeis, afortunado.
371
Se sois plebeo, sois humilde,
Soberbo se sois fidalgo,
Se sois segundo sois pobre,
E tolo se sois morgado.
Se galeais, sois fachada,
E se naõ, naõ sois bizarro,
Se vestís bem, sois gram moda,
Se mal vestís, sois um trapo.
Se comeis muito, goloso,
E faminto se sois parco,
Se comeis bem, regalaõ,
E se mal, nunca sois farto.
Se não soffreis, imprudente,
Se soffreis sois um coitado,
E se perdoais sois bom homem,
E se naõ, sois um tyranno.
Se brioso, tendes fumos,
E se naõ, sois homem baixo,
Se sois serio, descortez,
Se cortez afidalgado.
Se defendeis, sois amigo.,
Se o naõ fazeis, sois contrario,
Se sois amigo, suspeito,
E se o naõ sois, afeiçoado.
372
Se obrais mal, sois ignorante,
Se bem obrais, foi acaso,
Se naõ servis, sois isento,
E se servis, sois criado.
Se virtuoso, fingido,
Hypocrita se beato,
Se zeloso, impertinente,
E se naõ, sois um pastrano.
Se sois sizudo, intratavel,
Se sois devoto, sois falso,
Pertinaz, se defendente,
Se arguinte, porfiado.
Se discreto, prevenido,
E se naõ, sois insensato,
Se sois modesto, sois simples,
E se o naõ sois, sois um diabo.
Se sois gracioso, sois fatuo,
E se naõ sois, um marmanjo,
Se sois agudo tresledes,
E se naõ sois, sois um asno.
E se não compondes, sois um nescio,
Se escreveis, sois censurado,
Se fazeis versos, sois louco,
E se os naõ fazeis, sois parvo.
373
Se previsto, feiticeiro,
E se naõ, desmazelado,
Se verdadeiro, bom homem,
Muito humilde, se sois lhano.
Se robusto, sois grosseiro,
Se delicado, sois brando,
Se descansado, ocioso,
Se para pouco, sois tranco.
Se sois gordo, sois balôfo,
Sois tizico, se sois magro,
Se pequeno, sois anaõ,
E gigante se sois alto.
Se sois nobre, sois pelaõ,
E se official, sois baixo,
Se solteiro, extravagante,
Se noivo, sois namorado.
Se coroado, figadal,
Descorado, se sois alvo,
Se grande nariz, Judeu,
Se trigueiro, sois mulato.
Se liberal, sois perdido,
E se o naõ sois, sois escasso,
Se sois prodigo, vicioso,
E avarento se poupado.
374
Se naõ despendeis, mesquinho,
Se despendeis, sois mui largo,
Se naõ gastais, miseravel,
Se gastais, esperdiçado.
Se honesto sois, naõ sois homem,
Impotente, se sois casto,
Se naõ n amorais, fanchono,
Se o fazeis, sois estragado.
Se naõ luzís, naõ sois gente,
Se luzís, sois mui prezado,
Se pedis, sois pobretaõ,
E se naõ, fazei calvarios.
Se andais de vagar, mimoso,
Se depressa, sois cavallo,
Mal encarado, se feio,
Se gentil, afeminado.
Se fallais muito, palreiro,
Se fallais pouco, sois tardo,
Se em pé, naõ tendes assento,
Preguiçoso, se assentado.
E assim naõ póde viver
N'este Brazil infestado,
Segundo o que vos refiro,
Quem naõ seja reprovado.
001 a 042 ..... 043 a 100 ..... 101 a 154 ..... 155 a 200 ..... 201 a 249 ..... 250 a 300 ..... 301 a 374