43
Soneto
A Fr. Thomaz da Apresentação prègando.
Padre Thomas, se Vossa Reverencia
Nos prégar as paixões d'esta arte mesma,
Viremos a entender que na quaresma
Não ha mais prègador do que Vossencia.
Prègar com tão laconica eloquencia
Em um só quarto o que escreveu em resma,
Á fè que o não fazia Frei Ledesma,
Que prègava uma resma de abstinencia.
Quando prègar o vi, vi um São Francisco,
Se não mais efficaz, menos chagado,
E de o ter por um anjo estive a risco.
Mas como no prègar é tão azado,
Achei que no Evangelico obelisco
É Christo de burel resuscitado.
44
Soneto
A certa Personagem desvanecida.
Um soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira;
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vá tambem d'esta maneira:
Na setima entro jà com gran canceira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi:
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.
N'esta vida um soneto já dictei;
Se d'esta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei.
45
Soneto
ao Governador Antonio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho mandando
dar um vestido de mercê ordinaria ao Faria, um soldado pobre e
ridiculo, por cuja mulher se canatava em chularia n'aquelle
tempo.
A mulher do Faria
Vai para Angola, S.ª
Senhor, eu sei que Vossa Senhoria
Mandou dar ao Faria um bom vestido,
Sendo que mais o tinha merecido
A mulher do mesmissimo Faria.
Provo: todo o prazer e alegria
Que se tem do Faria deduzido,
Sempre o deu a mulher, nunca o marido,
Que ella ia para Angola, elle não ia.
Assim que se a mulher vai para Angola,
E elle sua na infamia inopinaria
Sua ausencia cruel pondo a viola,
Tiro por consequencia temeraria,
Que à mulher se lhe deve dar a esmola,
Que em critico se diz mercê ordinaria.
46
Soneto
A certo Doutor ignorante mostrando por suas umas Decimas que se
entende eram de Antonio da Fonseca Soares.
Prototypo gentil do Deus muchacho,
Poeta singular o mais machucho,
Que no mais levantado do cartucho
Quiz trazer o Pegaso por penacho.
Triumphante ao Parnaso entrou gavacho
Com decimas do metrico capucho,
Se são suas merece um bom cachucho,
Que por boas conseguem bom despacho.
Mas o sol que na aurora do desfecho
Os parpados abrindo vos viu micho,
Por ser vosso talento de relecho,
Logo disse: não ereis vós o bicho,
Que vos sente nas ancas este secho,´
Que vos limpe essas barbas c'um rabicho
47
Soneto
A Thomaz Pinto Brandão sendo preso e remettido para Angola pelo
Governador Antonio Luiz Gonçalves da Camara.
É uma das mais celebres histó-
A que te fez prender, pobre Thomá,
Porque todos te fazem degradá,
Que no nosso idioma é para Angó-
Oh! se quizesse o Padre Santo Antó-
Que se falsificára este presá-
Para ficar corrido este Frisá-
E moido em salada este chicó-
Mas ai! que lá me vem buscar Matti-
Que n'estes casos é peça de lé-
Adeus, meus camaradas, meu ami-
Que vou levar cavallos a Bengué-
Mas se vou a cavallo em um navi-
Servindo vou a El-Rei por mar e té.
48
Soneto
Enfastia-se o Poeta de visitadores impertinentes no seu retiro da
Villa de S. Francisco.
Devem de ter-me aqui por um orate,
Nascido lá na gemma do Lubeque,
Ou por filho de algum triste alfaqueque,
D'aquelles que trabucam lá em Ternate.
Porque um me dá a glosar um disparate,
E quer que se lhe imprima com crasbeque:
Outro vem entonado como um xeque,
E falla pela lingua de um mascate.
Outro vem, que casou em Moçambique,
E vive co'a razão de vinho e brote,
Que o sogro deu, e o clerigo cassique.
Anda aqui a poesia a todo o trote;
E de mim corre já como um lambique,
Não sendo eu destillador brichote.
49
Soneto
Em uma manhã de inverno dá o poeta conta a um seu visinho do
que passava com o frio.
Que vai por lá, Senhor, que vai por lá?
Como vos vai com este vento Sul?!
que eu já tenho de frio a cara azul,
E mais roxo o nariz que um mangará.
Vós na tipoya feito um cobé-pá
Estais mais regalado que um Gazul,
E eu sobre o espinhaço de um baul
Quebrei duas costellas e uma pá.
Traz Izabel o cachimbo a fazer somno,
E se o somno pezar como o cachimbo,
Dormirei mais pezado do que um mono.
Vem as brazas depois, que valem gimbo,
E eu de frio não durmo, nem resono,
E sem pena nem gloria estou no limbo.
50
Soneto
A Francisco Pereira, musico do sitio de S. Francisco, de quem o
poeta se acompanhava n'aquelle retiro.
Não vem, como mentiu Chico Ferreira?
Ou elle mente mais que uma sigana,
Ou não conhece os dias da semana,
E lhe passou por alto a quarta feira.
Disse-me que ia ver lá na ladeira
O arrozal que plantou na terra lhana,
Porem como olhos tem de porsolana,
Em tres dias não viu a sementeira.
Amanheceu o dia promettido,
Formoso, alegre, claro e prazenteiro:
Bom dia, disse eu cá, para a viagem.
Sahi ao meu passeio mal vestido,
E tomando o officio de gageiro
Não vi véla, e fiquei como um salvagem.
51
Soneto
Ao mesmo Francisco Ferreira, que chamava ao poeta seu mestre na
solfa.
Quem deixa o seu amigo por arroz
Não é homem, nem é de o ser capaz;
É rôla codorniz, pombo trocaz,
Não fallo em papagaios e socós.
Quem diz que vai ficar dous dias sós,
E seis dias me tem n'este solar,
Tão pouco caso do seu mestre faz,
Como faz do seu ruço quatropós.
andará até vir cantar os rés,
E então lhe entoarei tão falsos mís,
Que saiba como pico o meu rvez.
Dai vos a Deus o deixo do aprendiz,
Que a seu mestre deixou tão triste rez
Pos quatro grãos de arroz, quatro seitis.
52
Soneto
Ao baptizado de uma filha de Balthazar Vanique, Hollandez, a que
concorreram outros estrangeiros.
Vieram os Flamengos e o padrinho
A baptizar a filha do Brixote,
E andou em Marapé grande rizote
De vel-os vir com botas n'um barquinho.
Porque não sendo as botas de caminho
Corriam pela gorja a todo o trote,
Foi alli hospedado o dom Bribote
Como convinha não, como com vinho.
Choveu tanto ao domingo, e em tal maneira
Que cada qual Monsiur indo uma braza,
Ficou aguado a gosto, e o vinho aguado.
Porque não quiz a Virgem da Oliveira
Que lhe entrasse pagão na sua casa
Vinho que nunca fôra baptizado.
53
Soneto
Á mesma função dos ditos estrangeiros, em que se brindava à
saude de Quitota, isto é, Maria, que era a menina que se
baptizou.
Se a morte anda de ronda, e a vida trota,
Aprovite-se o tempo, e ferva o Baccho,
Haja galhofa e tome-se tabaco,
Venha rodando a pipa, e ande a bota.
Brinde-se a cada triquite a Quitota,
Té que a puro brindar se ateste a sacco,
E faça-lhe a razão pelo seu caco
Dom Fragaton do Rhin compatriota.
Ande o licor por mão, funda- se a serra,
Esgote-se o tonel, molhem-se os rengos,
Toca tará tará, que o vento berra.
Isto diz que passou entre os Flamengos,
Quando choveu tanta agua sobre a terra,
Como o vinho inundou sobre os podengos.
54
Soneto
Finge o poeta o assumpto para bem lograr esta poesia de
consoantes forçados.
Depois de consoarmos um tremoço,
A noite se passou jogando a polha:
Amanheceu, e poz-se-nos a olha,
De que não sobejou caldo, nem osso.
Rosnou, por não ficar-lhe nada, o moço,
De um berro, que lhe dei, fiz-lhe uma bolha,
Rasguei-lhe uma camisa ainda em folha,
E a cêa se acabou, jantar e almoço.
O moço tal se depediu por isso,
E eu fiquei a beber vinho sem gesso
Sobre ovos molles, que me puz um usso.
N'este tempo topei de amor o enguiço:
Tive com Antonica o meu tropeço,
E parti de carreira no meu ruço.
55
Soneto
Pede a um amigo o seu escravo alfaiate para certa obra, e tem
circumstancia declarar que era Belchior da Cunha Brochado.
É este memorial de um affligido,
Se vos der mais enfado do que devo,
Entendei do papel em que o escrevo
Que dos trapos se fez do meu vestido.
Estou ha vinte mezes retrahido
Por crime que a dizer me não atrevo:
Acutilei por ser já velho e gevo
Um vestido que tinha de comprido.
Com isto está meu pai muito enfadado,
E sobre ver-me roto me descoze,
Porque commigo está desesperado.
Eu como um descozido, como as doze,
E como estou sem vós desabrochado,
Vos peço o alfaiate que vos coze.
56
Soneto
Aos amigos da Cajahiba escreve da ilha de Gonçalo Dias, onde se
achava desgostoso por duvidas que tivera com certa personagem
d'aquelle logar.
Que vai por lá, Senhores Cajahibas?
Vossês se levam vida regalada
Co'a arraia chata, a curimá ovada,
Que lhes forma em dous lados quatro gibas:
Eu n'esta ilha, inveja das Maldibas;
Estou passando a vida descançada:
Como o bom peixe, a fruita sazonada,
À vista de um amor sangue de sibas.
Vossês tem sempre à vista São Francisco,
Povo illustre, metropole dos montes,
A cuja vista tudo o mais é cisco.
Eu não tenho que olhar mais que horisontes,
Mas se ha de olhar-me lá um bazilisco,
Melhor é ver d'aqui a Ilha das fontes.
57
Soneto
A uma Freira que lhe mandou um mimo de doces.
Senhora minha, se de taes clausuras
Tantos doces mandais a uma formiga,
Que esperais vós agora que vos diga,
Se não forem muchissimas doçuras.
Eu esperei de amor outras venturas,
Mas eil-o vai tudo o que é dar obriga,
Ou já seja favor, ou já uma figa,
Da vossa mão são tudo ambrozias puras.
O vosso doce a todos diz: "comei-me"
De cheiroso, perfeito e aceiado,
E eu por gosto vos dar comi e fartei-me.
Em este se acabando irá recado,
E se vos parecer glotão, soffrei-me
Em quanto vos não peço outro bocado.
58
Soneto
Ao Pe. Damaso da Silva a respeito de dizer certa
freira por galantaria jocosa, defendendo as suas prendas, que
emprenhàra e paríra d'elle.
Confessa Sòr Madama de Jesus
Que tal ficou de um só xesmininez,
Que indo-se os mezes, e chegando o mez,
Parira em fim de um conego abestruz.
Diz que um Xisgaravíz viera à luz,
Morgado de um presbytero montez,
Cara frisona, garras de Irlandez,
E bocca de caqueiro de alcatruz.
Dou que nascesse o tal Xisgaraviz,
Que o parisse uma freira vade em paz,
Mas que o gerasse o Senhor Padre arroz.,
Verdade pois o coração me diz,
Que o filho foi sem duvida algum traz
Para as barbas do pai, onde se poz.
59
Soneto
Ao mesmo Padre Damazo da Silva.
Este Padre Frizão, este sandeo,
Tudo o Demo lhe deu e lhe outorgou,
Não sabe Musa muso, que estudou,
Mas sabe as sciencias que nunca aprendeu.
Entre catervas de amor se metteu,
E entre corjas de bestas se acclamou,
Aquella Salamanca o doutorou,
E n'esta Sala cega floreceu.
Que é eum grande alchimistas, isso não nego,
Que alchimista de esterco fazem ouro,
Se cremos seus apocryphos conselhos.
E o Frizão as irmãas pondo ao pespego,
Era força tirar grande thesouro,
Pois soube em ouro converter pentelhos.
60
Soneto
Ao mesmo Padre Damazo da Silva.
Padre Frizão, se Vossa Reverencia,
Tem licença do seu vocabulario,
Para me pôr um nome improprio e vario,
Póde fazel-o em sua consciencia.
Mas se não tem licença, em penitencia
De ser tão atrevido e temerario
Lhe quero dar com todo o calendario,
Mais que a testa lhe rompa e a paciencia.
Magano infame, vil alcoviteiro,
Das fodas corretor por dous tortões,
E em fim dos emangaços alveitar.
Tudo isto é notorio ao mundo inteiro,
Se não seres tu obra dos colhões
De Duarte Garcia de Bivar.
61
Soneto
Ao mesmo Padre Damazo da Silva.
Disparatada idéa por consoantes forçados.
Descarto-me da tronga que me chupa,
Corro por um conchego todo o mappa,
O ar da fêa me arrebata a capa,
O gadanho da linda até a garupa.
Busco uma freira que me desentupa
A via, que o desuso às vezes tapa,
Topo, e em topando todo o bolo rapa
Que as cartas lh'o dão sempre com chalupa.
Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
E na hora de ver repleta a pipa
Darei por quem m'a exgote toda Europa.
Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou soffre uma muchacha que o decipa,
Ou faz da sua mão sua cachopa.
62
Soneto
Ao casamento de Pedro Alvares da Neiva.
Sete annos a nobreza da Bahia
Servia uma pastora Indiana bella,
Porem servia a India, e não a ella,
Que a India só por premio pretendia.
Mil dias na esperança de um só dia
Passava contentando- se com vêl-a,
Mas Frei Thomaz uzando de cautela
Deu-lhe o villão, quitou-lhe a fidalguia.
Vendo o Brazil que por tão sujos modos
Se lhe uzurpava a sua Dona Elvira,
Quasi a golpes de um maço e de uma goiva.:
Logo se arrependeram de amar todos,
Mas qualquer mais amára se não vira
Para tão limpo amosr tão suja noiva.
63
Soneto
Queixa-se o poeta da plebe ignorante e perseguidora das virtudes.
Que me quer o Brazil que me persegue?
Que me querem pasgates que me invejam?
Não vêem que os entendidos me corstejam,
E que os nobres é gente que me segue?
Com seu odio a canalha que consegue?
Com sua inveja os nescios que motejam?
Se quando os nescios por meu mal mourejam
Fazem os sabios que a meu mal me entregue.
Isto posto, ignorantes e canalha,
Se ficam por canalha e ignorantes
No sol das bestas a roerem a palha:
E se os Senhores nobres e elegantes
Não querem que o soneto vá de valha,
Não và, que tem terriveis consoantes.
64
Soneto
A certo Advogado correndo a via-Sacra.
Deixe, Senhor beato, a beati=
Que se a via do céo é via Sa=
Ninguem o póde crer n'esta cidá=
Por ser vossê da casta Issaelí=
Quando devoto corre a Sacra-vi=
E a cada pé de cruz estende os brà=
Parece um entremez da Lei da gra=
Que a todo o Christão velho causa ri=
Deixe-se d'isso, trate do escritó=
Que esse lhe hade render o pão da me=
E o céo se com bom zelo advò=
Mas se por Santo quer que o reconhé=
E na paixão de Deus faz-se gracio=
Embolsará risadas da comé=
65
Soneto
A' mulata Vicencia, amando ao mesmo tempo a tres sugeitos.
Com vossos tres amantes me confundo,
Mas vende-vos com todos cuidadosa
Entendo que de amante e amorosa
Podeis vender amor a todo o mundo.
Se de amor vosso peito é tão fecundo,
E tendes essa entranha tão piedosa,
Vendei-me de affeição uma ventosa,
Que é pouco mais que um selamim sem fundo.
Se tal compro, e nas cartas ha verdade,
Eu terei, quando menos, trinta damas,
Que infunde vosso amor pluralidade.
E dirá quem me vir com tantas chammas,
Que Vicencia me fez a caridade,
Porque o leite mammei das suas mammas.
66
Soneto
Á mesma mulata, que corrida do amante foi morar com Joanna
Gafeira, outra tal que tinha as pernas chagadas de gallico.
Lavai, lavai, Vicencia, esses sovacos,
Porque li n'um prognostico almanaque
Que vos trezanda sempre o estoraque,
E por isso perdestes, casa e cacos.
Hoje que estais visinha dos buracos
Das pernas gafeiraes, dareis mor baque,
Que tanta caca hei medo que vos caque,
E que fujam de vós até os macacos.
Tratai de perfumar-vos e esfregar-vos,
Que quem quer estimar-se anda esfregada,
Se não ide ser freira, ou enforcai-vos.
Porque está toda a terra conjurada,
Que antes de vos tocar, hão- de cheirar-vos,
E lançar-vos ao mar se estais damnada.
.
67
Soneto
A Jeronyma, mulata falladeira e presumpçosa, vulgarmente chamada
Jelû.
Jelû, vós sois rainha das mulatas,
E sobre tudo sois deosa das putas,
Tendes o mando sobre as dissolutas
Que moram na quitanda d'essas gatas.
Tendes muito distantes as çapatas
Por poupar de razões e de disputas,
Porque são umas putas absolutas,
Presumidas, faceiras, pataratas.
Mas sendo vós mulata tão airosa,
Tão linda, tão galharda e folgazona,
Tendes um mal, que sois mui cagajosa.
Pois perante a mais inclyta persona
Desensolando a tripa revoltosa,
O que gentil ganhais, perdeis cagona.
68
Soneto
A' mulata Izabel da Villa de S. Francisco, chamada Beleta,
inficionada de gallico.
Beleta, a vossa perna tão chagada
Ôlha poderá ser pelo podrida,
Mas eu não quero ôlha em minha vida
Podrida pelo mal inficionada.
Estais tão lazarenta e impestada,
Tão ethica, mirrada e carcomida,
Que uma vossa pilhancra bem moida
Servirá de peçonha refinada.
O que vos gabo é ser presumptuosa
Em tal calamidade, em tal mizeria,
Como se a podridão fora formosa.
Mas se acaso vos dòe, Dona Lazeria,
O gume d'este verso, ou d'esta prosa,
Sabei que o vosso humor deu a materia.
69
Soneto
A Uma dama chamada Catharina. Desaires da formozura com as
pensões da natureza.
Rubi, concha de perlas peregrina,
Animado crystal, viva escarlata,
Duas saphiras sobre lisa prata,
Ouro encrespado sobre prata fina.
Este o rostinho é de Catharina,
E porque docemente obriga e mata
Não livra o ser diviina em ser ingrata,
E raio a raio os corações fulmina.
Viu-a Fabio uma tarde transportado,
Bebendo admirações a galhardias,
A quem já tanto amor levantou aras.
Disse qualmante amante e magoado:
"Ah! muchacha gentil, que tal serias
Se sendo tão formosa, não cagáras.
70
Soneto
Finge que visita duas mulatas, mãi e filha, presas por um
Domingos Cardoso de alcunha o Mangará, que tratava com uma
d´ellas pelo furto de um papagaio. Falla com a mãi.
Poeta. Dona Saecula in saeculis ranhosa,
Porque estais aqui presa, Dona Paio?
Mulata. Dizem que por furtar um papagaio,
Porem mente a querela maliciosa.
Poeta. Estais logo por ladra e por golosa:
Naõ vos lembra o jantar de Frei Pelaio?
Mulata. Então traguei de carne um bom balaio,
E de vinho uma celha portentosa.
Poeta. Para tanto peccado é curto a sala,
Ide para a moxinga florescente,
onde tanta vidrada flor exhala.
Mulata. Irei, que todo o preso é paciente,
Porém se hoje furtei cousa que falla.
Amanhã furtarei secretamente.
71
Soneto
Falla agora com a filha da sobredita, chamada Bartola.
Poeta. Bartolinha gentil pulchra e bizarra,
Tambem vos trouxe aqui o papagaio?
Bart. Não Senhor, que elle fala como um raio,
E diz que minha mãi lhe poz a garra.
Poeta. Isso está vossa mãi pondo a guitarra,
E diz que hade pagal-o para Maio:
Bart. Ella é muito mimosa, e eu desmaio
Quando cuido no alcaide que me agarra.
Poeta... Temo que haveis de ser disciplinante
Por todas estas ruas da Bahia,
E que vos hade ir ver o vosso amante.
Bart. Quer me veja, quer não: estimaria
Que os açoutes se dêm ao meu galante,
Porque tambem sei ver, e vêl-o-ia.
72
Soneto
A um barqueiro de Marapé, chamado Manoel Fernandes, presumido de
gentil- homem, valente e namorado.
Gentil homem, valente e namorado,
Trindade vem a ser de perfeições,
Com que à vós triumviro dos varões
Vos teme a morte, e vos venera o fado.
Pelo gentil, Adonis sois pintado,
Pelo valente, o Marte das Nações,
Que unir e conformar contradicções
Só em vós se viu já facilitado
Sobre tudo, Senhor Manoel Fernandes,
Podereis ser de Enéas Palinuro,
E conduzir de Europa Ulysses grandes.
Pois trazieis o barco tão seguro
Quando passei para esta nova Flandes,
Que o mar me parecia vinho puro.
73
Soneto
A um cirioulo chamado o Logra, a quem vazaram um olho por causa
de uma negra.
Està o Logra torto! é cousa rara!
Diz que um olho perdeu por uma puta:
Barato o fez, que ha outra dissoluta,
Que me quer arrancar ambos da cara.
Ó quem tão baratinho amor comprára!
Que um olho é pouco preço sem disputa:
Senão diga-o Betica, que de astuta
Mais de uma duzia de olhos me almoçára.
Sahi d'esta canalha tão roido,
E deixaram- me Harpias tão roubado,
Que não logrei de vista um só sentido.
Não foi o Logra não mais desgraçado:
Porque posto que um olho tem perdido,
Inda outro lhe ficou para um olhado.
74
Soneto
Ao Dez.or Belchior da Cunha Brochado, chegando do Rio
de Janeiro à esta cidade recorre o P. satyrisando um Julgador,
que o prendeu por accusar o furto de uma negra, a tempo que
soltou o ladrão d'ella.
Senhor Doutor, muito bem vinda seja
A esta mofina e misera cidade
Sua justiça agora e equidade,
E lettras com que a todos causa inveja.
Seja muito bem vindo porque veja
O maior disparate e iniquidade
Que se tem feito em uma e outra idade
Desde que ha tribunaes, e quem os reja.
Que me hade succeder n'estas montanhas
Com um ministro em leis tão pouco visto,
Como previsto em trampas e maranhas?
É ministro de imperio mero e misto,
Tão Pilatos no corpo e nas entranhas,
Que solta a um Barrabaz, e prende a um Christo.
75
Soneto
Ao mesmo Julgador, quando acabando o logar se embarcou para o
Reino.
Lobo cerval, phantasma peccadora,
Alimaria christãa, selvage humana,
Que eras com vara pescador de canas,
Quando devias, ser burro de nora.
Leve -te Berzabú, vai-te em má hora,
Levanta d'esta vez fato e cabana,
E não pares senão na Taprobana, estejas tu, morras na rua,
Ou no centro da Lybia abrazadora.
Parta-te um raio, queime-te um corisco,
Na cama...,
Sepultura te dêem montes de cisco.,
E toda aquella cousa que fôr tua
Corra sempre comtigo o mesmo risco,
Oh selvagem christãa! oh besta crua!
76
Soneto
Ao casamento de certa dama por nome Brites.
Senhora Beatriz, foi o demonio
Este amor, esta trampa, esta porfia,
Que não durmo de noite, nem de dia,
Em cuidar n'este negro matrimonio.
Já puz uma candêa a Santo Antonio,
E vendo que sua luz não me allumia,
Ou cuido me negais a serventia,
Ou que não obra em vòs meu antimonio
Não cuideis que eu estou bem aviado,
Pois por não violar essa clausura
Me tem toda essa terra por capado.
Não soffro estes revezes da ventura:
Ou heide desistir do começado,
Ou heide esgravatar na fechadura.
77
Soneto
A certo sujeito que amava a uma dama que nunca havia visto.
Dizem que é mui formosa Dona Urraca:
Quem o sabe, ou quem viu esta minhoca?
Poderá ter focinho de taóca,
E parecer- me a mim uma macaca.
Heide amal-a sem prova da ervilhaca,
Em risco de estar podre a seroróca?
E se ella acaso fôr gallinha choca,
Como heide dar por ella uma pataca?
A mim me tenham todos por velhaco,
Se amar a tal fragona por capricho,
Sem primeiro revêl-a até o buraco.
Que pòde facilmente o muito lixo,
Por não limpar às vezes o mataco,
Ter-lhe do caxundè tapado o esguicho.
78
Soneto
Á procissão de Cinza em Pernambuco.
Um negro magro em sufulié justo,
Dois azorragues de um joá pendentes,
Barbado o Peres, mais dois penitentes,
Seis crianças com azas sem mais custo.
De vermelho o mulato mais robusto,
Tres fradinhos meninos innocentes,
Dez ou doze brixotes muito agentes,
Vinte ou trinta canellas de hombro onusto.
Sem debita reverencia seis andores,
Um pendão de algodão tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de menores.
Atraz um cego, um negro, um mamaluco,
Trez lotes de rapazes gritadores,
É a procissão de Cinza em Pernambuco.
79
Soneto
Aos Caramurús da Bahia.
Um calção de pindoba a meia porra,
Camisa de urucù, mantéo de arara,
Em logar de cotò, arco e taquara,
Pennacho de guaràs, em vez de gorra.
Furado o beiço, sem temer que morra
O pai, que lh'o envasou c'uma titara
Porem a mãi a pedra lhe applicára
Por reprimir-lhe o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
Sem mais leis que as do gosto, quando erra,
De Payayá tornou-se em Abaitè.
Não sei onde acabou, ou em que guerra:
Só sei que d'este Adão de Massapè
Procedem os fidalgos d'esta terra.
80
Soneto
Ao mesmos Caramurús.
Ha cousa como ver um Payayâ
Mui presado de ser Caramurú,
Descendente do sangue de Tatú,
Cujo Porper idioma é Cabepâ?
A linha feminina é Carimâ,
Muqueca, pititinga, carurú,
Mingáo de puba, vinho de cajú
Pizado n'um pilão de Pirajá.
A masculina é um Aricobé,
Cuja filha Cobé, um branco Pahy
Dormiu n'um Promontorio de Passé.
O branco é um Maráo que veio aqui:
Ella é uma India de Maré;
Cobepâ, Aricobé, Cobé, Pahy.
81
Soneto
A certo Fidalgo Caramurú.
Um Payà de Monay bonzo bramà,
Primaz da Creparia do Pegú,
Que sem ser do Pequim, por ser do Acú,
Quer ser filho do sol nascendo cà.
Tenha embora um avô nascido lá,
Cà tem tres pela costa do Cairú,
E o principal se diz Paraguassú,
Descendente este tal de um Guinamá.
Que é fidalgo nos ossos cremos nós,
Pois n'isso consistia o mòr brazão
D'aquelles que comiam seus avós.
E como isto lhe vem por geração,
Lhe ficou por costume em seus teirós
Morder aos que provém de outra nação.
82
Soneto
A uma mulata chamada Antonia da Bahia, achando-se na Cajahiba.
Chegando à Cajahiba vi Antonica,
Indo- lh'o a apolegar, disse-me caca:
Gritou Thomaz: entono de matraca
Um hû pela mulher que foge à pica.
Eu, disse ella, não sou mulher de crica,
Que assoma como rato na buraca,
Quem me lograr hade ter mui boa atraca,
Que corresponda ao vaso que fornica.
Nunca me foi mister dizer: "quem merca:"
Porque a minha belleza é mar, que surca
Alto baixel que traz cutello e forca.
E pois você tem feito com que perca,
Diga essas confianças à sua urca
Que ei sei que em cima de urca é puta porca.
83
Soneto
Descreve o que realmente passàra no Reino de Angola, quando lá
se achava o poeta.
Pasar la vida, sin sentir que pasa,
De gustos, falta, y de esperanzas llena,
Volver atrás pisando em seca arena,
Sufrir un sol que como fuego abraza.
Beber de las cassimas agua baza,
Comer mal pez a medio dia y cena,
Oir por qualquier parte una cadena,
Ver drs açotes sin piedade, ni tara.
Verse uno rico por encantamiento,
Y Señor, quando apenas fué creado,
No tener de quien fue conocimiento.
Ser mentirozo por razon de Estado,
Vivir en ambicion siempre sediento,
Morir de deudas, y pezar cargado.
84
Soneto
Ás exorbitantes direcções da missão que fazia n'aquelle tempo
o Arcebispo na cathedral da Bahia, correndo-se juntamente a
Via-Sacra.
Via de perfeição é sacra- via;
Via do céo, caminho da verdade:
Mas ir ao Céo com tal publicidade,
Mais que a virtude, o boto a hypocrizia.
O odio é d'alma infame companhia:
A paz, deixou- a Deus á christandade:
Mas arrastár por força uma vontade
Em vez de caridade, é tyrannia.
O dar pregões do pulpito é indecencia:
Que de fulano, venha aqui sicrano,
Porque o peccado e peccador se veja...
É proprio de um porteiro de audiencia.
E de n'isto mal digo, ou eu me engano,
Eu me submetto à Santa Madre Igreja.
85
Soneto
Modos para enfidalgar.
Faça misuras de A, com o pé direito,
Os beija- maõs de gafador de pella,
Saiba a todo o cavallo a parentella,
O criador, o dono e o defeito
Se o não souber, e vir rossim de geito,
Chame o lacaio, e posto na janella,
Mande que lh'o passeie à mòr cautella,
Que inda que o não entenda, se ha respeito
Saia na armada, e soffra paparotes,
Damas ouça tanger, não lhe repique,
Lembre-lhe sempre a quinta, o potro, o galgo.
Que com isto e o favor de quatro asnotes,
De bom ouvir e crer, se porá a pique
De um dia amanhecer um grão fidalgo.
86
Soneto
Conselhos a qualquer tolo para parecer fidalgo, rico e discreto.
Bote a sua casaca de veludo,
E seja capitão se quer dois dias,
Converse à porta de Domingos Dias,
Que péga fidalguia mais que tudo.
Seja um magano, um picaro, um cornudo,
Vá a palacio, e apoz das cortezias
Perca quanto ganhar nas mercancias,
E em que perca o alheio, esteja mudo.
Ande sempre na caça e montaria
Dê nova solução, novo epitêto,
E diga-o sem proposito à porfia.
Que em dizendo facção, pretexto, affecto,
Será no entendimento da Bahia
Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.
87
Soneto
Descreve os passatempos que tinha na Villa de S. Francisco.
Ha cousa como estar em São Francisco?
Ver como imos ao pasto tomar fresco:
Passam as negras, falla-se burlesco,
Chamam-se toda, todas cahem no visco.
O peixe roda aqui, ferve o marisco,
Come-se ao grave, bebe-se ao Tudesco,
Vem barcos da cidade com refresco,
Ha já tanto biscoito, como cisco.
Chega a Faisca, falla, e dá um clasco,
Começa ao dia, acaba ao lusco fusco,
Não cannça o paladar, rompe-me a casco.
Joga-se em casa, em sendo o dia brusco:
Vem chegando a pascoa, e se eu m'empasco,
Os lombos da Tatú é o pão que busco.
88
Soneto
Descreve o que era n'aquelle tempo a cidade da Bahia.
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro,
Que a vida do visinho e da visinha
Pesquiza, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à Praça e do Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas uzuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
89
Soneto
Á Florenciana May de Moralva, Dama Pernambucense.
Senhora Florenciana, isto me embaça,
Contares vós de mim tantos agrados,
E estar eu vendo que por meas peccados
Tenho para convosco pouca graça-.
Em casa publicais, no lar da Praça,
Que sou homem capaz de altos cuidados
E nunca me ajudais nos negregados
Que tenho com Madama de Mombaça-.
Eu não sei como passo, ou como vivo
Na pouca confiança que me dèstes,
Depois que fui da Amor aljava ou crivo.
Porque por mais mercês que me fizestes,
Jámais me recebestes por captivo,
Nem menos para genro me quizestes.
90
Soneto
Ao horroroso cometa que appareceu na Bahia poucos dias antes da
memoravel peste chamada a Bicha, succedida no anno de 1686.
Se é esteril, e fomes dá o cometa,
Não fica no Brazil viva creatura,
Mas ensina do juizo a Escriptura,
Cometa não o dar senão trombeta.
Não creio que taes fomes nos prometta
Uma estrella barbada em tanta altura,
Promettera talvez, e por ventura,
Matar quatro Sayoens de Imperialeta.
Se viera o cometa por corôas,
Como presume muita gente tonta,
Não nos ficára clerigo, nem frade.
Mas elle vem buscar certas pessoas:
Os que roubam o mundo com a vergonta,
E os que à justiça faltam, e à verdade.
91
Soneto
Responde a um amigo com as novidades que vieram de Lisboa no anno
de 1658.
França está mui doente das ilhargas,
Inglaterra tem dores de cabeça,
Purga-se Hollanda, e temo lhe aconteça
Ficar mui debilitada com descargas.
Allemanha lhe applica ervas amargas,
Botões de fogo, com que convalesça:
Hespanha não lhe dá que este mal cresça,
Portugal tem saude e forças largas.
Morre Constantinopla, està ungida,
Veneza engorda, e toma forças dobres,
Roma está bem, e toda a Igreja boa.
Europa anda de humores mal regida,
Na America arribaram muitos pobres:
Estas as novas são que ha de Lisboa.
92
Soneto
Por outro cometa que appareceu na era de 1690 chimereavam os
Sebastianistas a vinda do Encuberto porque anticipadamente o
esperavam n'aquelle anno, e o P. os pretende em vão deseganar,
julgando tal apparição por impossivel.
Estamos em noventa, era esperada
De todo o Portugal e suas Conquistas:
Bom anno para tantos Bestianistas,
Melhor para illudir tanta burrada.
Vê-se uma estrella pallida e barbada,
E deduzem agora Astrologistas
A vinda de um rei morto pelas listas,
Que não sendo dos Magos é estrellada.
Oh quem a um Bestianista perguntàra,
Com que razão ou fundamento espera
Um rei, que em terra d'Africa acabára.
E se com Deus me dá, eu lhe dissera:
Se o quiz restituir, não o matàra;
E se o não quiz matar, não o escondêra.
93
Soneto
A uma dama que se riu de ver mijar um estudante.
Inda que de eu mijar tanto gosteis,
Que vos mijeis com rizo e alegria,
Haveis de ver de sizo inda algum dia
Com que de puro gosto vos mijeis.
Então d'estes dois gostos sabereis
Qual é melhor, e qual de mais valia,
Se o mijardes vós na pedra fria,
Se mijando eu tapar que não mijeis.
Á fé que ahi ficareis desenganada,
E então conhecereis de entre ambos nós,
Qual é melhor, mijar ou ser mijada.
Pois se nós nos mijarmos sós por sós,
Haveis de festejar outra mijada
Quando eu entre a mijar dentro de vós.
94
Soneto
Ao casamento de certo Advogado com uma moça mal reputada.
Casou-se n'esta terra esta e aquelle,
Aquelle um gôzo filho de cadella,
Esta tão donzellissima donzella
Que muito antes do parto o sabia elle.
Casaram por unir pelle com pelle,
E tanto assim se uniram que elle e ella
Com seu máo parecer ganha para ella,
Com seu bom parecer ganha para elle.
Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,
Excellentes alfaias, bons adornos,
De que estão os seus quartos bem ornados.
Por signal que na porta e seus contornos
Um dia amanheceram bem contados
Tres bacias de trampa e doze cornos.
95
Soneto
Ao Padre Damazo da Silva por se metter a Procurador universal.
Deu agora a Frizão em requerente,
Fiado em seu saber e boas artes,
Será por essa via homem de partes,
E irá, se fôr a queima, por agente.
Má hora, que elle và por paciente
Sendo agente de tantos Burandartes,
Que atacando-lhe o ventre a puros fartes
Come-os elle, mas não lhe põe o dente.
N'este officio se val da companhia
De um moderno que em vez de pello louro
Pentêa as tranças de carniçaria.
Doutor com borla de osso, mào agouro!
Onde podia achar-se na Bahia,
Que de um manso coelho fez um touro?
96
Soneto
A uns clerigos que foram da cidade à casa do Vigario da Madre de
Deus, achando-se n'ella o poeta.
Vieram sacerdotes dois e meio
Para a casa do grande sacerdote:
Dois e meio couberam em um bote,
Notavel carga foi para o grangeio.
O desgraçado arraes, que ia no meio,
Tanto que em terra poz um e outro zote,
Se foi buscar a vida a todo o trote,
Deixando a carga, a susto e o receio.
Assustei-me de ver tanta clerzia,
Que como o trago enfermo de remella,
Cuidei vinham rezar-lhe a agonia.
Porem ao pôr da meza, e postos n'ella,
Conheci que vieram da Bahia
Não mais que por papar a cabidella.
97
Soneto
Ao Governador Antonio de Souza de Menezes, chamado vulgarmente a
Braço de prata.
Sor Antonio de Souza de Menezes,
Quem sóbe ao alto logar, que não merece.,
Homem sóbe, asno vai, burro parece,
Que o subir è desgraça muitas vezes.
A fortunilha auctora de entremezes
Transpõe em burro heróe, que indigno cresce,
Dezanda a roda, e logo homem parece,
Que é discreta a fortuna em seus revezes.
Homem sei eu que foi Vò Senhoria
Quando o pizava da fortuna a roda,
Burro foi ao subir tão alto clima.
Pois alto: vá descendo onde jazia,
Verá quanto melhor se lhe acommoda
Ser home em baixo do que burro em cima.
98
Soneto
A D. João de Alencastro, vindo succeder no governo da Bahia a
Antonio Luiz Gonçalves da Camara Coitinho.
Quando Deus redemiu da tyrannia,
Da mão de Pharaò endurecido,
Ao Povo Hebreo amado e esclarecido,
Paschoa ficou da redempção o dia.
Paschoa de flores, dia de alegria,
A esse povo foi tão affligido
O dia, em que por Deus foi redemido,
O qual sois vós, Senhor, Deus da Bahia.
Pois mandado pela alta Magestade
Nos remiu de tão triste captiveiro,
Nos livrou de tão vil calamidade.
Quem ser pòde senão um verdadeiro
Deus, que veio extirpar d'esta cidade
Toda a afflição do Povo Brazileiro.
99
Soneto
Descripção da cidade de Sergipe d'El-Rei.
Tres duzias de cazebres remendados,
Seis beccos de mentrastos entupidos,
Quinze soldados rotos e despidos,
Doze porcos na praça bem criados.
Dois conventos, seis frades, tres letrados,
Um Juiz com bigodes sem ouvidos,
Tres presos de piolhos carcomidos,
Por comer dois meirinhos esfaimados.
Damas com sapatos de baeta,
Palmilha de tamanca como frade,
Saia de chita, cinta de racheta.
O feijão, que só faz ventosidade,
Farinha de pipoca, pão que greta,
De Sergipe d'El-Rei esta é a cidade.
100
Soneto
Descripção da Villa do Recife.
Por entre a Beberibe e o Oceano,
Em uma arca safia e alagadiça,
Jaz o Recife, povoação mestiça
Que o Belga edificou, impio tyranno.
O povo è pouco, e muito pouco urbano,
Que vive de uma pura erva linguiça,
Unha de velha insipida e enfermissa,
E camarões de charco em todo o anno.
As damas cortezaãs e mui rasgadas,
Olhas podridas, sopas pestilencias,
Sempre com purgações, nunca purgadas.
Mas a culpa tem Suas Reverencias,
Que as trazem tão rompidas e escaladas,
Com cordões, com bentinhos e indulgencias.
001 a 042 ..... 043 a 100 ..... 101 a 154 ..... 155 a 200 ..... 201 a 249 ..... 250 a 300 ..... 301 a 374