250
Sem questão deve de ser,
Porque este Unhate maldito
Faz uns milagres que eu mesma
Não sei como tenho tino:.
Póde haver maior milagre
(Ouça bem, que tem ouvidos)
Do que chegar um Reinol,
Por Lisboa, ou pelo Minho;
Ou degradado por crimes,
Ou por moço ao pai fugido,
Ou por não ter que comer
No logar onde é nascido:
E saltando no meu caes,
Desçalso, roto, e despido,
Sem trazer mais cabedal
Que piolhos e assobios;
Apenas se offrece a Unhate
De guardar seu compromisso,
Tomando com devoção
Sua regra, e seu bentinho,
251
Quando umas casas aluga
De preço e valor subido,
E se põe em tempo breve
Com dinheiro, e com navios!
Pòde haver maior portento,
Nem milagre encarecido,
Como de ver um Mazombo
D'estes cá do meu pavio,
Que sem ter eira, nem beira,
Engenho, ou juro sabido,
Tem amiga, e joga largo,
Veste sedas, põe polvilhos?
D'onde lhe vem isto tudo?
Cahe do Cèo? tal não affirmo:
Ou Santo Unhate lh'o dà,
Ou do Calvario é prodigio:.
Consultem agora os sabios,
Que de mim fazem corrilhos,
Se estou illesa da culpa,
Que me dão sobre este artigo.
252
Mas não quero repetir
A dor e o pezar que sinto,
Por dar mais um passo ávante
Para o oitavo supplicio.
Preceito 8º.
As culpas que me dão n'elle,
São que em tudo quanto digo
Do verdadeiro me aparto
Com animo fementido.
Muito mais é do que fallo,
Mas è grande barbarismo.
Quererem que pague a albarda
O que commette o burrinho.
Se por minha desventura
Estou cheia de precitos,
Como querem que haja em mim
Fé, verdade, ou fallar liso?
Se como atraz declarei,
Se puzera cobro n'isto,
Apparecera a verdade
Cruzando os braços commigo.
253
Mas como dos Tribunaes
Proveito nenhum se ha visto,
A mentira está na terra,
A verdade vai fugindo.
O certo é que os mais d'elles
Tem por gala, e por capricho,
Não abrir a bocca nunca
Sem mentir de ficto a ficto.
Deixar quero os pataratas,
E tornando a meu caminho,
Quem quizer mentir o faça,
Que me não toca impedil-o.
Preceito 9º. e 10º.
Do nono não digo nada,
Porque para mim é vidro,
E quem o quizer tocar
Vá com o olho sobre aviso.
Eu bem sei que tambem trazem
O meu credito perdido,
Mas valha sem sel-o ex causa,
Ou lh'os ponham seus maridos.
254
Confesso que tenho culpas,
Porem humilde confio,
Mais que em riquezas do mundo,
Da virtude n'um raminho.
Graças a Deus que cheguei
A coroar meus delictos
Com o decimo preceito
No qual tenho delinquido.
Desejo que todos amem,
Seja pobre, ou seja rico,
E se contentem com a sorte,
Que tem e estão possuindo.
Quero finalmente que
Todos quantos tem ouvido,
Pelas obras que fizerem
Vão para o Céo direitinhos.
255
Satyrisa allegoricamente a varios ladrões da Republica.
Romance.
Hontem, Nise, á prima noite
Vi sobre o vosso telhado,
Assentados em cabido,
Cinco ou seis formosos gatos.
Estava a noite mui clara,
Fazia um luar galhardo,
E porque tudo vos diga,
Estava eu em vós cuidando.
O presidente ou deão,
Na cumieira assentado,
Era um gato macilento,
Barbirruço e carichato.
Os demais em boa ordem,
Pela cumieira abaixo,
Lavandeiros de si mesmos
Lavavam punhos e rabos.
256
Tão profundo era o silencio,
Que não se ouvia um miào,
E o deão o interrompeu
Dando um mio acatarrado.
Tossiu, tossiu, e não pôde
Articular um miáo,
Que de puro penitente
Traz sempre o peito serrado.
Eis que um gatinho Reinol,
Muito estitico e mui magro,
Relambido de feições,
E de tono afalcetado,
Quiz por primeiro fallar,
E fallára em todo o caso,
Se outro gato casquiduro
Lhe não sahira aos embargos.
Eu sou gato de um meirinho,
Disse, que pelos telhado
Vim fugindo a todo o trote
Do poder de um Saibam quantos.
257
Com que venho a concluir,
Que servindo a taes dois amos,
Heide fallar por primeiro,
Porque sou gato de gatos.
Falle, disse o presidente,
Pois lhe toca por anciano:
E elle tomando-lhe a venia
Foi o seu conto contando.
Em casa d'este escrivão
Me criei com tal regalo,
Que os de mais gatos de casa
Eram commigo uns bichanos.
Mas cresci e aborreci,
Porque se cumprisse o adagio,
Que official de teu officio,
Teu inimigo declarado.
Foi- me tomando tal odio
Porque foi vendo-e notando,
Que era eu capaz de dar-lhe
Até no officio um gatazio.
258
Topou-me em uns entreforros,
E tirando-me porraços,
Eu lhe miava os narizes,
Quando elle me enchia os quartos.
Fugi, como tenho dito,
E me acolhi ao sagrado
De uma vara de justiça,
Que é valhacouto de gatos.
Sahe meu amo aos prendimentos,
E eu fico em casa encerrado
Por caçador de balcões,
Onde jejuo o trespasso.
Porque em casa de um meirinho,
Nas suas arcas e armarios,
É quaresma toda a vida,
E temporas todo o anno.
Não posso comer ratinhos,
Porque cuido, e não me engano,
Que de meu amo são todos
Ou parentes, ou paisanos.
259
Porque os ratinhos do Douro
São grandissimos velhacos,
Em Portugal são ratinhos,
E cá no Brazil são gatos.
Eu sou gato virtuoso,
Que a puro jejum sou magro:
Não como por não ter que,
Não furto por não ter quando.
E como sobra isto hoje,
Para me terem por santo,
Venho a pedir que me ponham
No calendario dos gatos."
Acabada esta parlanda,
Muito ethico de espinhaço
Sobre as moletas das pernas
Se levantou outro gato,
Dizendo: ha annos que sirvo
Na casa de um boticario,
Que a recipe de pancadas.
Me tem os bofes purgados.
260
Queixa-se que lhe comi
Um boião de unguento branco,
E lhe bebi n'essa noite
Um cangirão de rhuibarbo.
Diz bem, porque assim passou,
Mas eu fiquei tão passado,
Como de tal solutivo
Dirá qualquer matasanos.
Fique de humores exangue,
Tão escorrido e exhausto,
Que não sou gato de humor,
Porque nem bom, nem máo gato.
Supplico ao Senhor Cabido
Que de um homem tão malvado
Me vingue com ter saude,
Por não gastar-lhe os emplastos."
Apenas este acabou,
Quando ergueu outro gato,
E entoando o jube domne,
Disse humilde e mesurado:
261
Meu amo è um alfaiate
Gerado sobre um telhado.,
Na maior força do inverno
Alcoviteiro dos gatos.
É pardo rajado em preto,
Ou preto embutido em pardo,
Malhado, ou já malhadiço
Do tempo em que fôra escravo:
Tão caçador das ourellas,
Tão murador dos retalhos,
Que com onças de retroz
Brinca qual gato com rato.
E porque com fio e meio
Joguei o sapateado,
Houve de haver por tão pouco
Uma de todos os diabos.
Estrugiu-me a puros gritos,
E plantou-me no pedrado,
Que elle pelo cabo é cão,
E eu fiquei gato por cabo.
262
Que de verdades dissera,
A estar menos indignado!
Que para fallar de um cão
É mui suspeitoso um gato.
Pelo menos quando eu corto,
Nunca dobro a téla em quatro,
Por dar um córte a seu dono,
E outro a mim pelo trabalho.
Nem menos peço dinheiro
Para retroz, e o não gasto,
Porque o gavetão do cisco
Me dá o retroz necessario.
Não sizo covado e meio
Por dar um colete ao diabo,
Nem vendo de téla fina
Retalhinhos de tres palmos.
Tudo em fim se hade saber
No universal cadafalso,
Que no tribunal de Deus
Não se estylam Secretarios.
263
Requeiro a vossas mercês
Que me ponham com outro amo,
Porque com este heide estar
Sempre como cão com gato."
Á vista d'este alfaiate,
Disse o Cabido espantado,
Somos nós gatos mirins,
Que inda agora engatinhamos.
O gato tome amo novo
Em qualquer convento honrado,
Seja fundador Barbonio,
Ou sachristão mor do Carmo.
A proposito do que
Se foi erguendo outro gato,
E amortalhado de maõs
Armou os hombros em arco.
E dizendo o jube domne,
Se poz em terra prostrado,
E eu disse logo, me matem,
Se não é dos Franciscanos.
264
Sou gato de refeitoreiro,
Disse, ha tres ou quatro annos
Pagem do refeitorio,
Do despenseiro criado.
Fui custodio da cozinha,
E dei má conta do cargo,
Porque sizando rações
Fui guardião de tassalhos.
Era eu em outro tempo
Mui gordo e mui anafado,
Porque os da esmola então vinham
Despejar em casa os saccos.
Mas hoje que já da rua
Vem os bolsos despejados,
Veio a ser o refeitorio
Uma Thebaida de gatos.
Não póde o pão das esmolas
Manter tantos remendados,
Que em lhe manter as amigas
Sendo infinitas, faz arto.
265
Dei com isto em tizicar-me
E esburgar-se-me o espinhaço,
Não tanto já de faminto,
Quanto de escandalisado.
Não posso viver entre homens,
Que se remendam seus panos
É mais por nos enganar,
Que porque lhes dure o anno.
E hoje que na Casa nova
Gastam tantos mil cruzados,
São gatos de maior dura,
Pois de pedra e cal são gatos.
Palavras não eram ditas,
Quando zunindo e silvando
Sentiram pelas orelhas
Um chuveiro de bastardos.
E logo atraz disso o tiro
De um bacamarte atacado,
Que disparou de um quintal
Um malfazejo soldado.
266
Descompoz-se-lhe a audiencia,
E cada qual por seu cabo
Pela campanha dos ares
Foram de telha em telhado.
E depois que legua e meia
Tinha cada qual andado,
Parando olharam atraz
Attonitos e assustados.
E vendo-se desunidos,
Confusos, dezarranjados,
Usaram da contra senha,
Miáo aqui, alli miáo.
E depois que se ajuntaram,
Disse um gato castelhano:
Cada qual a su cabana,
Que hoje de boa escapamos.
Chuviscou n'aquelle instante,
E safaram-se de um salto,
Porque sempre de agua fria
Ha medo o gato escaldado.
267
Descreve o poeta racional e verdadeiramente queixoso os extravagantes meios com que os estranhos dominam indignamnte sobre os naturaes na sua patria.
Romance.
Senhora Dona Bahia,
Nobre e opulenta cidade,
Madrasta dos naturaes,
E dos estrangeiros madre.
Dizei-me por vida vossa
Em que fundais o dictame
De exaltar os que aqui vem,
E abater os que aqui nascem
Se o fazeis pelo interesse
De que os estranhos vos gabem,
Isso os paisanos faziam
Com conhecidas vantagens.
268
E suppondo, que os louvores
Em bocca propria não valem,
Se tem força essa sentença,
Mór força terá a verdade.
O certo é, patria minha,
Que foste terra de alarves,
E inda os ressabios vos duram
D'esse tempo, e d'essa idade.
Haverá duzentos annos,
Nem tantos podem contar-se,
Que ereis uma pobre aldêa,
Hoje sois rica cidade.
Então vos pizavam Indios,
E vos habitavamm Cofres,
Hoje chispais fidalguias,
E arrojais personagens.
A essas personagens vamos,
Sobre ellas será o debate,
E Deus queira que o vencer-vos
Para envergonhar-vos baste.
269
Sahe um pobrete de Christo
De Portugal ou do Algarve,
Cheio de drogas alheias
Para d'ahi tirar gages.
O tal foi sota tendeiro
De um christão novo em tal parte,
Que por aquelles serviços
O despachou a embarcar-se.
Fez-lhe uma carregação
Entre amigos e compadres,
E eil-o commissario feito
De linhas, lonas, beirames.
Entra pela barra dentro,
Dá fundo, e logo a entonar-se
Começa a bordo da náo
C'um vestidinho flammante.
Salta em terra, toma casas,
Arma a botica dos trastes,
Em casa come balêa,
Na rua antoja manjares.
270
Vendendo gato por lebre,
Antes que quatro annos passem
Já tem tantos mil cruzados,
Conforme affirmam pasguates.
Começam a olhar para elle
Os pais, que já querem dar-lhe
Filha e dote,porque querem
Homem que coma, e não gaste.
Que esse mal ha nos mazombos,
Tem tão pouca habilidade
Que o seu dinheiro despendem
Para haver de sustentar-se.
Casa-se o meu matachim,
Põe duas negras e um pagem,
Uma rede com dous Minas,
Chapéo de sol, casas grandes.
Entra logo nos pelouros,
E sahe do primeiro lance
Vereador da Bahia,
Que é notavel dignidade.
271
Já temos o canastreiro,
Que inda fede aos seus beirames,
Metamorphosis da Terra,
Transformado em homem grande:
E eis aqui a personagem.
Vem outro do mesmo lote,
Tão pobre, e tão miseravel,
Vende os retalhos, e tira
Commissão com coiro e carne.
Co'o principal se levanta,
E tudo emprega no Iguape,
Que um engenho e tres fazendas
O tem feito um homem grande.
E eis-aqui a personagem.
De entre a chusma e a canalha
Da maritima bagagem,
Fica ás vezes um christão,
Que apenas benzer-se sabe.
Fica em terra resoluto
A entrar na ordem mercante,
Troca por covado e vara
Timão, balestilha, e mares.
272
Arma- lhe a tenda um ricaço,
Que a Terra chama magnate,
Com pacto de parceiria,
Que em Direito é sociedade.
Com isto o marinheiraz
Do primeiro jacto ou lance
Bota fóra o cú breado,
As mãos assimilla em quantes.
Vende o cabedal alheio,
E dá com elle em levante,
Vai e vem, e ao dar das contas
Diminue, e não reparte.
Prende aqui, prende acolá,
Nunca falta um bom compadre,
Que ou entretenha o credor,
Ou faça esperar o alcaide.
Passa um anno, e outro anno,
Esperando que elle pague,
Que uns lhe dão para que ajunte,
E outros para que engane.
273
Nunca paga, e sempre come,
E quer o triste mascate,
Que em fazer a sua estrella
O tenham por homem grande.
O que elle fez foi furtar,
Que isso faz qualquer birbante,
Tudo o mais lhe fez a Terra,
Sempre propicia aos infames:
E eis-aqui a personagem.
Vem um clerigo idiota,
Desmaiado como um gualde,
Os vicios com seu bioco,
Com seu rebuço as maldades.
Mais santo do que Mafoma
Na crença dos seus Arabes,
Letrado como um matullo,
E velhaco como um frade.
Hontem simples sacerdote,
Hoje uma grau dignidade,
Hontem salvagem notorio,
Hoje encoberto ignorante.
274
A tal beato fingido
É força que o povo acclame,
E os do governo se obriguem,
Pois edifica a cidade.
Chovem uns e chovem outros
Co'os officios e os logares,
E o beato tudo apanha
Por sua muita humildade.
Cresce em dinheiro, e em respeito
Vai remettendo as fundagens,
Compra toda a sua Terra,
Com que fica um homem grande:
E eis- que a personagem.
Vem outros lotes de requiem
Que indo a tomar o caracter,
Todo o Reino inteiro cruzam
Sobre a chança viandante.
De uma provincia para outra
Como dromedarios partem,
Caminham como camellos,
E comem como selvagens.
275
Mariolas de missal,
Lacaios missa cantantes,
Sacerdotes ao burlesco,
Ao serio ganho~es de altares.
Chega um d'estes, e toma amo,
Que as capellas dos magnates
Saõ rendas que Deus creou
Para estes Orate frates.
Fazem-lhe certo ordinario,
Que é dinheiro na verdade
Que o Papa reserva sempre
Das cêas edos jantares.
Não se gasta, antes se embolsa,
Porque o Reverendo Padre
E' do santo neque demus
Meritissimo confrade.
Com este cabedal junto
Já se resolve a embarcar-se,
Vai para a sua Terrinha
Com fumos de ser abbade:
E eis-aqui a personagem.
276
Vêem isto os filhos da Terra,
E entre tanta iniquidad
São taes que nem inda tomam
Licença para queixar-se
Sempre veêm, se sempre callam,
Até que Deus lhes depare
Quem lhes faça de justiça
Esta satyra à cidade.
Taõ queimada e destruida
Te vejas, torpe cidade,
Como Sodoma e Gomorra,
Duas cidades infames.
Que eu zombo dos teus visinhos,
Sejam pequenos ou grandes,
Gozos, que por natureza
Nunca mordem, sempre latem.
Porque espero entre os Paulistas
Na Divina Magestade,
Que a ti Saõ Marçal te queime,
E a mim Saõ Paulo me guarde.
277
Despede-se o Poeta da Bahia quando foi degradado para Angola.
Adeus praia, adeus cidade,
E agora me deverás,
Velhaca, dar eu a Deus
A quem devo ao Demo dar.
Quero agora que me devas
Dar- te a Deus, como quem cahe,
Sendo que estás taõ cahida,
Que nem Deus te quererá.
Adeus povo, adeus Bahia,
Digo canalha infernal,
E naõ fallo na nobreza,
Tabula em que se naõ dá.
Porque o nobre em fim é nobre,
Quem honra tem, honra dá,
Picaros daõ picardias,
E inda lhes fica que dar.
278
E tu cidade és taõ vil,
Que o que em ti quizer campar
Naõ tem mais do que metter-se
A magano, e campará.
Seja ladrão descoberto,
E qual Aguia Imperial
Tenha na unha o rapante,
E na vista o perspicaz.
A uns compre, a outros venda,
Que eu lhe seguro o medrar,
Seja velhaco notorio,
E tramoeiro fatal.
Compre tudo, e pague nada,
Deva aqui, deva acolá,
Perca o pejo e a vergonha,
E se cazar caze mal.-
Porfiar em ser fidalgo,
Que com tanto se achará:
Se tiver mulher formosa,
Gabe-a por esses poiaes.
279
De virtuosa talvez,
E de entendida outro tal,
Introduza- se ao burlesco
Nas casas onde se achar.
Que ha donzellas de belisco,
E aos punhos se gastára,
Trate- lhes uns galanteio,
E um frete, que é o principal.
Arrime-se a um poderoso,
Que lhe alimente o gargaz,
Que ha pagadores na terra
Taõ duros como no mar.
A estes faça alguns mandados
A titulo de agradar,
E conserve o affectuoso
Confessando o desigual.
Intime-lhe a fidalguia,
Que eu creio que lh'o crerá,
E que fique ella por ella
Quando lhe ouvir outro tal.
280
Vá visitar os amigos
No engenho de cada qual,
E comendo- os por um pé
Nunca tire o pé de lá.
Que os Brazileiros são bestas,
E estarão a trabalhar
Toda a vida por manterem
Maganos de Portugal.
Como se vir homem rico,
Tenha cuidado em guardar,
Que aqui honram os mofinos,
E mofam dos liberaes.
No Brazil a fidalguia
No bom sangue nunca está,
Nem no bom procedimento:
Pois logo em que pòde estar?
Consiste em muito dinheiro,
E consiste em o guardar,
Cada um a guardar bem,
Para ter que gastar mal.
281
Consiste em dal-o a maganos
Que o saibam lisonjear,
Dizendo que é descendente
Da Casa de Villa Real.
Se guardar o seu dinheiro,
Onde quizer cazará,
Que os sogros naõ querem homens,
Querem caixas de guardas.
Naõ coma o genro, nem vista,
Que esse é genro universal,
Todos o querem por genro,
Genro de todos será.
Oh! assolada veja eu
Cidade taõ suja e tal,
Avesso de todo o mundo,
Só direita em se entortar.
Terra, que naò se parece
N'este mappa universal
Com outra; e ou saõ ruins todas,
Ou ella sómente é má.
282
A Pedro Alvres Da Neiva quando embarcou para Portugal.
Romance.
Adeus amigo Pedro Alvre
Que vos partistes d'aqui
Para geral desconsolo
D'este povo do Brazil.
Partiste-vos, e oxalà
Que entaõ vos vira eu partir,
Que sempre um quarto tomára
A livra por dous seitiz.
Poz era o quarto em salmoura,
E no fumeiro o pernil,
O pé naõ, porque me dizem
Que vos fede o escarpim.
Guardára o quarto de sorte,
Que se vos podéra unir
Na surreição dos auzentes
Quando tornasseis aqui.
283
Mas vós não fostes partido,
Mente quem tal cousa diz,
Antes fostes muito inteiro,
E sem se vos dar de mim.
Saudades naò as levastes,
Deixastel-as isso sim,
Porque de todo este povo
Ereis o folgar e rir.
Dezenfado dos rapazes,
Das moças o perrexil,
O burro da vossa casa,
E da cidade o rocim.
Lá ides por esses mares,
Que saò vidraças do anil,
Semeando de asnidades
Toda a vargem zaphir.
O piloto e a companha
Apostarei que já diz,
Que vai muito arrependido
De ires no seu camarim.
284
O homem e vê, se dezeja,
E desesperado em fim,
Acceita que a náo se perca,
Por vos ver fóra de si.
Deseja ver-vos lutando
Sobre o elemento subtil,
Onde um tubarão vos parta,
Vos morda um darim darim-.
Deseja que os peixes todos
Tomem acordo entre si
De vos darem nos seus buchos
Sepultura portatil.
Sente que em amanhecendo
A fina força hade ouvir
Os bons dias de uma bocca,
Cujo bafo é taò ruim.
Sente que naõ empregando
Nem um só maravedí
Em queijos frescos, a elles
Vos trezande o chambaril.
285
Mas vós heis de ir a Lisboa
Apezar de villaõ ruim,
E El-Rei vos hade fazer,
Com mil mercês, honras mil.
Os cavalheiros da côrte,
Trazendo-vos junto a si,
Vos haõ de dar como uns doidos
Piparotes no nariz.
E como vós sois doente
De fidalgos frenezís,
Por ficar afidalgado
Toda a mofa heis de rustir.
O que trazeis de vestidos,
Uns assim, outros assim,
Serei o moda das modas,
E o modelo dos Torins.
A conta disto me lembro,
Quando em Marapé vos vi
Vestido de pimentão,
Com fundos de flor de liz.
286
Em verdade vos affirmo,
Que entaõ vos suppuz e cri
Surrada tapeçaria,
Tismado guadamecim.
O que direis de menntiras,
Quando tornardes aqui,
Amizades de um visconde,
Favores de um Conde viz.
Valido de um tal ministro,
Cabido de um tal juiz,
E até do mesmo Cabido
Leiguissimo mandarim.
El-Rei me fez mil favores,
Mil favores, mais de mil,
Bem fez com que eu lá ficasse,
Mas naõ o pude servir.
Quem cazou, como eu cazei
Com mulher taõ senhoril,
É captivo de um ferreiro,
Naõ me posso dividir.
287
De El-Rei é a minha cabeça,
Porem o corpo gentil
Todo é de minha mulher,
Naõ tem remedio, heide me ir.
Achou-me razaõ El-Rei,
E na hora de partir,
Ponde-me a maõ na cabeça,
Me disse: Perico, adí.
Ide- vos Perico embora,
Ide- vos para o Brazil,
Que quem vos tirou da côrte
Naõ vos tirará d'aqui.
E pondo em seu peito a maõ,
Eu que a fineza entendi
Chorei por agradecel-a
Lagrimas de mil em mil.
Botei pelo paço fóra,
Metti- me no bergantim,
Cheguei a bordo, embarquei-me,
Levámos ferro, e parti.
288
Os cavalheiros da côrte
Choraram tanto por mim,
Como por uma commenda
De Santiago ou de Aviz.
Hontem avistámos terra,
E quando na barra vi
Coqueiros e bananeiras,
Disse commigo: Brazil.
A Henrique da Cunha chegando do sitio da Itapema à Cajahiba.
Romance.
Senhor Henrique da Cunha,
Vós que sois lá na IItapema
Conhecido pelo brio,
Graça, garbo, e gentileza:
Vós que aonde quer que estais
Todo o mundo se vos chega
A escutar a muita graça
Que vos chove à bocca cheia:
289
Vós que partindo de casa,
Ou seja ao remo, ou à véla,
Bem que venhais sem velame,
Vindeis fiado na verga.:
E apenas tendes chegado
A esta Cajahiba amena,
Logo Saõ Francisco o sabe,
Logo Apollonia se enfeita:
Logo chovem os recados,
Logo a canôa se apresta,
Logo vai, e logo encalha,
Logo a toma, volta e chega:
Logo vós a conduzis
Para a Casa das galhetas,
Onde o melado se adoça,
Onde a garapa se azeda:
Entra ella, e vós tambem,
Assenta-se, e vós com ella
E assentada lhe brindais
A' saude das parentas:
290
Vós: mas baste tanto vós,
Se bem que a Musa burlesca
Anda taõ desentoada,
Que em vez de cantar, vozea.
Ás vossas palavras vamos,
Vamos às vossas promessas,
Que com serem infinitas,
Naõ saõ mais que as minhas queixas.
Prometteste-me, ha dous annos,
De fazer-me aquella entrega
Da viuva de Naim,
Que hoje é gloria da Itapema.
Naõ me mandaste comboy,
Necessaria diligencia,
Para um triste que naõ sabe
Nem caminho, nem carreira.
Taõ penoso desde entaõ
Fiquei com tamanha perda,
Que ou a pena hade acabar-me,
Ou hade acabar-se a pena.
291
Mas inda fio e confio
Na Senhora Dona Tecla,
Que nas dez varas de hollanda
Heide amortalhar a peça.
Disse amortalhar, mal disse,
Melhor resurgir dissera,
Que em capello tal resurge
A mais defunta potencia.
Vós me tiraste o ganho:
Sois meu amigo, paciencia;
Por isso diz o rifão
Que o maior amigo apega.
Só vós soubestes logral-a,
Que sois com summa destreza
Grande jogador de gorra,
Pela branca e pela negra.
Jogais a negra e a branca,
E tudo na escola mesma,
Bem haja escrava e senhora,
Que uma de outra se naõ zela.
292
Esta é a queixa passada,
Porém a presente queixa
É que a todos os amigos
Mandastes mimos da Terra.
A uns peças de piassabas,
A outros fizeste a peça,
E eu já essa peça tomára,
Por ter de vós uma prenda.
Enviai-me alguma cousa,
Mais que seja um páo de lenha,
Terei um páo para os caens,
Que é o que ha na nossa terra.
Lembre-vos vosso compadre,
Que o tal Duarte de Almeida
Co'a obra parou,em quanto
A piassaba naõ chega.
Mandai-me uma melancia,
Que ainda que é fruita velha,
Naõ importa o ser passada,
Como de presente venha.
293
Mandai-me um par de tipoyas,
Das que se fazem na Terra
A dous cruzados cada uma,
Que eu mandarei a moeda.
Mandai-m'as sem zombaria,
Que eu vol-as peço de veras,
Porque naõ peço de graça,
Quanto a dinheiro se venda.
Mandai-me boas novas vossas,
E em que vos sirva e obedeça,
Que como vosso captivo,
Irei por mar e por terra.
Mandai-me novas da mãi,
Das filhas muitas novellas,
Pois em fazel-as excedem
Cervantes e outros poetas.
E perdoai disparates
De quem tanto vos venera,
Que por em tudo imitar-vos
Vos quer seguir na pespega.
294
Ao Braço forte estando preso por ordem do Governador Braço de prata.
Romance.
Preso entre quatro paredes
Me tem Sua Senhoria,
Por regatão de despachos,
Por fundidor de mentiras.
Dizem que eu era um velhaco,
E mentem por vida minha,
Que o velhaco era o Governo,
E eu a velhacaria.
Quem dissera, quem pensára.
Quem cuidára, e quem diria,
Que um braço de prata velha,
Pouca prata, e muita liga.
Tanto mais que o braço forte
Fosse forte, que poria
Um Cabo de calabouço,
E um soldado de golilha?
295
Porem eu de que me espanto,
Se n'esta terra maldita
Póde uma ovelha de prata
Mais que dez onças de alquima?
Quem me chama de ladraõ
Erra o trincho á minha vida,
Fui assassino de furtos,
Mandavam-me, obedecia.
Despachavam-me a furtar,
E eu furtava, e abrangia:
Seraõ boas testemunhas
Inventarios e partilhas.
Eu era o ninho de guincho,
Que sustentava e mantinha
Co'o suor das minhas unhas
Mais de dez aves rapinas.
O povo era quem comprava,
O General quem vendia,
E eu triste era o corretor
De taõ torpes mercancias.
296
Vim depois a aborrecer,
Que sempre no mundo fica
Aborrecido o traidor,
E a traição muito bem quista.
Plantar o ladraõ de fóra
Quando a ladroice fica,
Será limpeza de maõs,
Mas de maõs mui pouco limpas.
Elles guardaram o seu
Dinheiro, assucar, farinhas,
E até a mim me embolsaram
N'esta hedionda enxovia.
Se foi bem feito, ou mal feito,
O sabe toda a Bahia,
Mas se à traição m'o fizeram,
Com elles a traiçaõ fica.
Eu sou sempre o Braço forte,
E n'esta prisaõ me anima
Que se é casa de peccados,
Os meus foram ninharias.
197
Todo este mundo é prisaõ,
Todo penas e agonias,
Até o dinheiro está preso
Em um sacco que o opprima.
A pipa é prisaõ do vinho,
E da agua fugitiva,
Sendo taõ livre e ligeira,
E' prisaõ qualquer quartinha.
Os muros de pedras e cal
Saõ prisaõ de qualquer villa,
Da alma é prisaõ o corpo,
Do corpo é qualquer almilha.
A casca é prisaõ da fruita,
Da rosa é prisaõ a espinha,
O mar é prisaõ da terra,
A terra é prisaõ das minas.
Do ar é carcere um odre,
Do fogo é qualquer pedrinha,
E até de um Céo outro Céo
É uma prisão crystallina.
298
Na formozura e donaire
De uma muchacha divina
Está presa a liberdade,
E na paz a valentia.
Pois se todos estaõ presos,
Que me cansa ou me fadiga,
Vendo-me em casa de El-Rei,
Junto a Sua Senhoria?
Chovam priso~es sobre mim,
Pois foi tal minha mofina,
Que a quem dei cadêas de ouro,
De ferro m'as gratifica.
No Boqueiirão de S. Antonio do Carmo, dentro de uma peça de artilharia descavalgada esteve muitos dias uma cobra Surucucú assaltando aos que passavam com morte de varias pessoas, sendo Governador Antonio Luiz Gonçalves da Silva, digo, da Camara. É este o assumpto da poezia que se lê na pagina seguinte.
299
Romance.
Acabou-se esta cidade,
Senho, já naõ é Bahia.
Já naõ ha temor de Deus,
N'em d'El-Rei, nem da Justiça-
Lembra-me que ha poucos annos,
Inda naõ ha muitos dias,
Que para qualquer funçaõ
De um crime a prisaõ se urdia.
iIam por esse sertaõ
Ao centro da Jacobina
Prender algum matador,
Inda que fosse à espadilha.
Mas hoje dentro na praça,
Nas barbas da infantaria,
Nas bochechas dos Granachas,
Com polé e forca à vista:
Que esteja um Surucucú
Com soberana ousadia
Feito Parca da cidade,
Cortando os fios às vidas!
300
Com tantas mortes às costas,
E que naõ haja uma rifa
De páos, que ao tal matador
Lhe sacuda o basto em cima.
É mui barbaro rigor
O d'esta cobra atrevida,
Que esteja na estrada porsta
Fazendo assaltos à vista.
Onde está Gaspar Soares,
Que naõ vai à espora fita
Na lazaõ lançar-lhe a garra,
E mettel-a na enxovia?
Se está no mato emboscada,
No seu mocambo mettida,
Mandem-lhe um terço ligeiro
De Infantes de Henrique Dias.
Se dizem que está na peça,
Dem-lhe fogo à colubrina,
Já que faz peças taõ caras,
Cust-lhe esta peça a vida.
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