201
Em sedas trocou
Quem sempre lá andou
Em uma atafona:
Forro minha cona.
Verão um randeu,
Que quer sem disputa
Ser filho da puta,
Por não ser Judeu:
Se habitos perdeu
Por ser christão novo,
A mim todo o povo
De velho me abona:
Forro minha cona.
Aquelle è de ver
Que a putos aquelles
Explica por elles
Quanto quer dizer:
Não posso soffrer
Que um tangurumanga
Use de pendamga
Com lingua asneirosa:
Forro minha cona.

202
Verão um jumento
De figura rara,
Que anda sempre à vara
Por lhe darem vento:
Notavel portento
N'este tal se enxerga,
Pois traz á chumberga
A barba capona:
Forro minha cona.
Verão um villão
Nado na montanha,
Farto de castanha,
Faminto de pão:
E se bem a mão
Com boi e arado
Cultivou o prado
De Flora e Pomona,
Forro minha cona.
Clerigo verão,
Que porque em Cantabra
Nasceu de uma cabra,
Cresceu a cabrão;
203
Tão fino ladrão,
Que até a filha alhêa
Com ser Cananêa,
Furta à mãi putona:
Forro minha cona.
Verão um Doutor
Em Sofala nascido,
Mais intromettido
Que um grande fedor;
Grande assistidor
De igreja festeira,
Que ao longe lhe cheira
Como mangerona:
Forro minha cona.
Verão um gallego
Grande salvajola,
Veste á mariola,
Anda ao patacego:
Fidalgo Noroego
Com cruz de Calvario,
Que um certo falsario
Nos peitos lhe entona:
Forro minha cona.

204
Verão um innocente,
Que a fidalgo vai,E calando o pai,
A mãi diz sómente:
A este impertinente
Lembrem-lhe o Gondim
Do pai matachim,
E a mãi vendelhona:
Forro minha cona.
Verão um pasgate,
Monstro de vira e prata,
Que sendo uma pata,
É filho de um gato:
A filha de um trato
Poz por seu regalo
Um burro a cavallo
De sella mamona:
Forro minha cona.
Entre outros ladrões
Verão um letrado,
Na mente graduado
De quatro asneirões;
205
Na cara pontões,
Na idéa nem ponto,
E ou tonto, ou não tonto,
De rico blazona:
Forro minha cona.
Verão um alvar,
Fidalgo tendeiro,
Que o pai sapateiro
Lhe fez o solar;
Parocho ultramar,
Que por duas patacas
Ferrou hontem atacas,
E hoje se me entona:
Forro minha cona.
Verão outro zote,
A quem Satanaz
Por culpas de atraz
Farà Galeote:
O tal sacerdote
Prèga sò a doutrina
Da lei culatrina,
Que ensina e abona:
Forro a minha cona.
Verão um Guinéo,
Moço assalvajado,
Fidalgo estirado
Por quedas que deo:
O Goes lhe metteo
Sogro de seu geito,
A torto e direito
Nobreza sevona:
Forro minha cona.
Verão um Garacho
Com sêde tamanha,
Que a palma se ganha
Ao maior borracho;
Beca sem empacho,
Que no mar cahiu,
E o mar lhe fugiu
Por ser borrachona:
Forro minha cona.
Verão outro si
Entregou o Deado
A um desmazelado,
Que nem cuida de si:
 
 
207
Máo villão ruim,
Duas caras traz,
Ambas muito más,
Que tudo inficiona:
Forro minha cona.
Verão borundangas,
Que ao mundo podia,
Vender a Bahia
Por mil bogigangas,;
Figurões de mangas,
Que eu não vi em meus dias
Nas tapeçarias
De Raza e Pamplona:
Forro minha cona.
 

Á gente da Bahia.

Não sei para que é nascer

 
N'este Brazil impestado
Um homem branco e honrado
Sem outra raça.

208
Terra taõ grosseira e crassa,
Que a ningem se tem respeito,
Salvo se mostra algum geito
De ser mulato.
Aqui o cãõ arranha ao gato,
Naõ por ser mais valentaõ,
Senão porque sempre a um cão
Outros acodem.
Os brancos aqui naõ podem
Mais que soffrer e calar,
E se um negro vaõ matar
Chovem despezas.
Naõ lhe valem as defezas
Do atrevimento de um caõ,
Porque acorda a Relaçaõ
Sempre faminta.
Logo a fazenda e a quinta
Vaõ com tudo o mais à praça,
Onde se vendem de graça,
Ou de frado.
 
 
209
Que aguardas, homem honrado,
Vendo tantas sem razo~es,
Que naõ vais para as Naço~es
Da Barbaria?
Porque lá se te faria
Com essa barbaridade
Mais razaõ e mais verdade
Do que aqui fazem.
Por que esperar? que te engrazem
E exgotem os cabedaes
Os que tem por naturaes,
Sendo estrangeiros?
Ao cheiro dos teus dinheiros
Vem é um cabedal taõ fraco,
Que tudo cabe n'um sacco
Que anda ás costas.
Os pés são duas lagostas,
De andar montes, passar vaõs,
E as maõs saõ dois cagalho~es
Já bem ardidos.
Sendo dois annos corridos,
Na loja estaõ recostados
Mais doces e afidalgados
Que os mesmos Godos.
A mim me faltam apodos
Para apodar estes taes,
Maganos de tres canaes,
Té à ponta.
Ha outros de peior conta,
Que entre estes e entre aqueles
Vem cheios de pês, e elles
Atraz do hombro.
De nada d'isto me assombro,
Pois os bota aqui o Senhor
Outros de marca maior,
Gualde e tostada.
Perguntai á gente honrada
Porque causa se desterra?
Diz que tem quem lá na Terra
Lhe queime o sangue.
 
 
211
Vem viver ao pé de um mangue,
E já vos veda o mangal
Porque tem mais cabedal
Que Porto Rico.
Se algum vem de agudo bico,
Lá vaõ prendel-o ao sertaõ,
E eil-o bugio em grilhaõ
Entre galfarros.
A terra é para os bizarros,
Que vem da sua terrinha
Com mais gorda camizinha
Que um traquete.
Que me dizeis do clerguete
Que mandaram degradado
Por dar o oleo sagrado
Á sua puta?
E a velhaca dissoluta,
Déstra em todo o artificio,
Fez co'oleo um maleficio
Ao mesmo zote.
Folgo de ver tão asnote
O que com risinho nos labios
Anda zombando dos sabios
E entendidos.
E porque são applaudidos
De outros da sua facção,
Se fazem co'a descripção
Como com terra.
E dizendo ferra ferra,
Quando vão a pôr o pé
Conhecem que em boa fè
São uns asninhos.
Porque com quatro ditinhos,
De conceitos estudados,
Nam podem ser graduados
Em as sciencias.
Então suas negligencias
As vão conhecendo alli,
Porque de si para si
Ninguem se engana.

212

 
 
213
Mas em vindo outra semana,
Já cahem no peccado velho,
E presumem dar conselho
A um Catão.
Aqui frizava o Frizão
Que foi o hereziarca
Porque os mais da sua alparca
O aprenderam.
As mulatas me esqueceram,
A quem com veneração
Darei o meu beliscão
Pelo amoroso.
Geralmente é mui custoso
o conchego das mulatas,
Que se foram mais baratas
Não ha mais Flandes.
As que presumem de grandes
Porque tem casa, e são forras,
Tem e chamam de cachorras
As mais do trato.

214
Angelinha do Çapato
Valeria um pino de ouro,
Porem tem o cagadouro
Muito baixo.
Traz o amigo cabisbaixo
Com muitas aleivosias,
Sendo que ás Ave-Maria
Lhe fecha a porta.
Mas isso em fim que lhe importa,
Se ao fechar o põe na rua,
E sobre a ver ficar nua
Ainda a veste.
Fica dentro quem a investe,
E o de fóra suspirando
Lhe grita de quando em quando:
Ora isso basta.
Ha gente de tão má casta,
E de tão vil catadura,
Que até esta cornadura
Bebe e verte.
 
 
215
Todos a Agrella converte,
Porque se com tão ruim puta
A alma hade ser dissoluta,
Antes mui santa.
Quem encontra ossada tanta
Dos beijos de uma caveira,
Vai fugindo de carreira,
E a Deus busca.
Em uma cova se offusca,
Como eu estou offuscado,
Chorando o magro peccado
Que fiz com ella.
É mui similhante a Agrella
Á Mingota do Negreiros,
Que me mammou os dinheiros,
E poz-se à orça.
A Manga, com ser de alcorça,
Dá-se a um pardo vaganão,
Que a Cunha do mesmo pão
Melhor atocha.

216
A Marianna da Rocha,
Por outro nome a Pellica,
A nenhum homem já dedica
A sua prata.
Não ha no Brazil mulata,
Que valha um recado só,
Mas Joanna Picaró
O Brazil todo.
Se em gostos não me acommodo,
Ao mais não haja disputa,
Cada um gabe a sua puta,
E haja socego.
Porque eu calo o meu emprego,
E o fiz adevinhação,
Com que tal veneração
Se lhe devia.
Fica-te embora, Bahia,
Que eu me vou por esse mundo,
Cortando pelo mar fudo
N'uma barquinha.
 
 
217
Porque inda que és patria minha,
Sou segundo Seipiaõ,
Que com dobrada razão
A minha idéa
Te diz: = Non possidebis ossa mea.
 

A um amigo havendo-se- lhe respondido pelos mesmos consoantes a um Romance que fizera às femeas de Pernamerim.

 

Tercetos.

 
Gostou da vossa lyra a minha Musa,
Gostou sim pela vida de uma Tona,
Que à custa do seu sangue se me escusa.
Vós devies lavar-vos na Helicona,
Ou beber das torrentes do Pegaso,
Segundo a vossa Musa é folgazona.
Mas senti que cahisses no fracaso
De me não dares novas de Luzia,
Tudo tim tim por tim, caso por caso.

218
Se cuidastes que eu não a sentiria,
Porque um ausente morto se reputa,
Enganou-vos a vossa phantazia.
Que eu sou fino berrante sem disputa
De tudo que são femeas e mulheres,
Seja a dama qualquer, se é dissoluta.
Quem gosa como vós tantos prazeres,
De tanta Nympha amado e obedecido
No dourado tapiz dos bem-me-queres;
Bem se zomba do pobre foragido,
Que rendido ao bom ar de um catona,
Não tem meio de ser favorecido.
Vede amor contra mim quanto blasona,
Que me vejo cercado de peixeiras,
E estou mais tristalhão do que uma mona.
As putinhas d'aqui são molambeiras,
E fedem ao peixú como o diabo,
E importa pouco serem gritadeiras.
 
 
219
Em chegando o repuxo do quiabo
Exhalam a catinga refinada,
Como a Jaratacaca pelo cabo.
Amor me leve a cachoeira honrada
Onde a vermelha enxuta de pentelho
Foda a conana traz polvorisada.
Leve-me amor a ver no rico espelho
De Luzia, que verte um cheiro brando,
Qual se nunca mettera de vermelho:
O como aqui me está sempre lembrando
De Catona a fidalga gravitude,
Bem que saiba mentir de quando em quando.
Que de gabos lhe dera na verdade
Se o Catuge esperána uma só hora,
E não fôra com tal serenidade!
Mas vós fazei presente á tal Senhora,
Que aqui me estou morrendo por beijal-a
N'aquelles dentes perolas da Aurora,

220
N'aquella bocca aljofar de Bengala;
E que espero que Amor me hade dar ora
Em que ella metta a mão na consciencia;
Porque quem m'o impediu me diga agora,
Que sou servo de Vossa Reverencia.

Estando o Poeta em seu divertimento com uns amigos, se ordenava um simples casamento, e lhe pediram que désse regra de bem viver para a noiva, como tambem um dote para o noivo sustentar os encargos.

 

Sylva.

 
Será primeiramente ella obrigada,
Em quanto não fallar, estar calada.
Item por nenhum caso mais se metta
A romper fechaduras de gaveta,
Salvo se, por temer algum agoiro,
Quizer tirar de dentro a prata e oiro.
Lembre-se de ensaboar quem a recrêa,
Porem não hade ser de volta e meia:
 
 
221
E para parecer mulher que poupa
Não se descuide em remendar-lhe a roupa:
Mas porem advertindo que hade ser
Quando elle de raiva a não romper,
Que levar merecia muito açoite
Por essa que rompeu ante- hontem à noite
Furioso e irado
Diante de seu pai e seu cunhado,
Que esteve em se romper com tal azar,
E eu em pontos tambem de me rasgar.
Irá mui poucas vezes á janella,
Mas as mais que puder irá à panella:
Ponha-se n'almofada até o jantar,
E tanto hade cozer, como hade assar:
Faça-lhe um bocadinho mui cazeiro,
Porem podendo ser coma primeiro,
E ainda que elle seja pequenindo
Não lhe dê de comer como a menino.
Quando vier de fóra vá-se a elle,
E faça por se unir pelle com pelle:
Mas em lhe dando a sua doencinha,
De carreira se vá para a cosinha,
E mande a Magdalena com fervor
Pedir á sua mãi agua de flor:

222
Isto deve observar sem mais propostas,
Se quizer a saúde para as costas
Isto deve fazer
Se com o bem estreado quer viver:
E se a regra seguir
Cobrará boa fama por dormir,
Na qual interessado muito vai
Seu cunhado, seu pai, e sua mãi.
E adeus, que mais não posso, ou mais não pude;
Ninguem grite, chiton; e haja saude.
 
 

Dote que se fez ao noivo.


Uma casa para morar ......... de botões.
Com seu quintal ................. de ferro.
Um leito ............................. de cano.
Uma cama .......................... de boubas.
Com seus lançóes ............... de Itapoã.
Suas cortinas ...................... de muro.
Um vestido de seda ............. de cavallo.
Com seus botões ................. de fogo.
Um guardapé ...................... de topadas.
Um vaqueiro ....................... do Sertão.
 
 
223
Dois gibões .......................................... de açoites.
Um com mangas .................................. de mosquetaria.
Outro com mangas ............................... de rêde.
Uma saia ............................................. de malha.
Outra saia ............................................ de dentro para fóra.
Uma cinta .............................. de desgostos.
Um manto de fumo ............................. de chaminé.
Dois pares de meia..................................canadas.
Uns sapatos .......................................... de pilar.

Roupa branca.
Duas camisas ....................................... de enforcado.
Duas fraldas ......................................... de serra.
Dois lenços de cassa .............................. do mato.
Dois guardanapos .................................. da cutilaria.
Para a mais roupa duas peças de pano ... do rosto.

Trastes de casa.

Uma caixa grande ................................ de guerra.

Outra meãa .......................................... de muchachins.

Outra pequenina .................................. de oculos.

Dois contadores da India ...................... Manoel de Faria e Souza, e Fernão Mentes

Pinto.
Duas cadeiras ...................................... de espinhaço

224
Uma esteira para o estrato ...................................... de navio.
Uma armaçãoo fresca para cama .................... de charéos.
Um espelho .................................................... de viola.
Peças de ouro.
Uns brincos para as orelhas .............................. de junco.
Dois cordões para o pescoço ........................... de Franciscano.
Duas manilhas para os braços ......................... de copas e espadas.
Fructas.
Figos ............................................................. femeas.
Limas ............................................................ Surdas.
Maçans .......................................................... de espada e escaravelho.
Para os dias de peixe.
Caldo ............................................................. de grãos.
Agulhas ......................................................... de aço.
Lamprêas ....................................................... d Termo.
Doces.
Morgados ....................................................... sem renda.
Marmellada ................................................... de caro~es.
Cidrão ........................................................... de pé de muro.
E muitos doces .............................................. de affagos.
 
225
Para seus divertimentos.
Uma quinta .......................................... feira.
Com duas fontes .................................. nos braços.
E para os gastos 500 sellos ................... na fralda.

Contra os ingratos murmuradores do bem que actualmente recebem da Mãi universal, que os affaga, se queixa a Bahia, confessando-se das culpas, que lhe dão, pelos preceitos do Decalogo.

 

Romance.

 
Já que me poem a tormento
Murmuradores nocivos,
Carregando sobre mim
Suas culpas e delictos:
Por credito do meu nome,
E não por temer castigo,
Confessar quero os peccados
Que faço, e que patrocino.
226
E se alguem tiver a mal
Descobrir este sigillo,
Não me infame que eu serei
Pedra em poço, ou seixo em rio.
Sabei, Céo, sabei estrellas,
Escutai flores e lirios,
Montes, serras, peixes, aves,
Lua, sol, mortos e vivos.
Que não ha, nem póde haver,
Desde o Sul ao Norte frio,
Cidade com mais maldades,
Nem provincia com mais vicios.
Do que sou eu, porque em mim
Recopilados e unidos
Estão juntos quantos tem
Mundos e reinos distinctos.
Tenho Turcos, tenho Persas,
Homens de nação impios,
Mogores, Armenios, Gregos,
Infieis e outros gentios.
 
 
227
Tenho ousados Mermidonios,
Tenho Judeos, tenho Assyrios,
E de quantas seitas ha
Muito tenho, e muito abrigo.
E senão digam aquelles
Presados de vingativos,
Que santidade tem mais
Que um Turco, e que um Mohabito!
Digam idolatras falsos,
Que estou vendo de continuo
Adorarem ao dinheiro,
Gula, ambição, e amoricos!
Quantos com capa christãa
Professam o judaismo,
Mostrando hypocritamente
Devoção à Lei de Christo!
Quantos com pelle de ovelha
São lobos enfurecidos,
Ladrões, falsos, aleivosos,
Embusteiros e assassinos!
228
Estes por seu máo viver,
Sempre pessimo e nocivo,
São os que me accusam damnos,
E poem labéos inauditos.
Mas o que mais me atormenta
É ver que os contemplativos
Sabendo a minha innocencia
Dão a seu mentir ouvidos.
Até os mesmos culpados
Tem tomado por capricho,
Para mais me difamarem,
Pôrem pela praça escriptos.
Onde escrevem sem vergonha,
Não só brancos, mas mestiços,
Que para os bons sou inferno,
E para os mais paraizo.
Oh velhacos insolentes,
Ingratos, mal procedidos!
Se eu sou essa que dizeis,
Porque não largais meu sitio?
 
 
229
Porque habitais em tal terra,
Podendo em melhor abrigo?
Eu pego em vós? eu vos rogo?
Respondei: dizei mal ditos?
Mandei acaso chamar-vos,
Ou por carta, ou por aviso?
Não viestes para aqui
Por vossos livre alvedrio?
A todos não dei entrada,
Tratando-vos como a filhos?
Que razão tendes agora
De difamar-me atrevidos?
Meus males de quem procedem?
Não é de vós? claro é isso:
Que eu não faço mal a nada
Por ser terra, e mato arisco.
Se me lançais mà semente
Como quereis fructo limpo?
Lançai- a boa, e vereis
Se vos dou cachos oprimos.
230
Eu me lembro que algum tempo,
Isto foi no meu principio,
A semente que me davam
Era boa e de bom trigo
Por cuja causa meus campos
Produziam pomos lindos,
De que ainda se conservam
Alguns remotos indicios.
Mas depois que vós viestes
Carregados, como ouriços,
De sementes invejosas,
E legumes de máos vicios:
Logo declinei convosco,
E tal volta tenho tido,
Que o que produzia rozas
Hoje só produz espinhos.
Mas para que se conheça
Se fallo verdade, ou minto,
E quanto os vossos enganos
Tem difamado meu brio:
 
 
231
Confessar quero de plano
O que encubro por servir-vos,
E saiba quem me moteja
Os premios que ganho n'isso.
Já que fui tão pouco attenta,
Que a luz da razão e o sizo
Não só quiz cegar por gosto,
Mas ser do mundo ludibrio.
Vós me ensinastes a ser
Das inconstancias archivo,
Pois nem as pedras que gero
Guardam fé aos edificios.
Por vosso respeito dei
Campo franco e grande auxilio,
Para que se quebrantassem
Os mandamentos divinos.
Cada um por suas obras
Verá contra quem me explico,
Sem andar escogitando
Para quem se aponta o tiro.
232

Preceito 1º.
Que de quilombos que tenho
Com mestres superlativos,
Nos quaes se ensinam de noite
Os calundús e feitiços!
Com devoção os frequentam
Mil sujeitos femininos,
E tambem muitos barbados,
Que se presam de narcisos.
Ventura dizem que buscam,
Não se viu maior delirio!
Eu que os ouço e vejo, calo
Por não poder divertil-os.
O que sei é que em taes danças
Satanaz anda mettido,
E que só tal Padre mestre
Póde ensinar taes delirios.
Não ha mulher desprezada,
Galan desfavorecido,
Que deixe de ir ao quilombo
Dançar o seu bocadinho.
 
 
233
E gastam bellas patacas
Com os mestres do Cachimbo,
Que são todos jubilados
Em depennar taes patinhos,
E quando vão confessar-se,
Encobrem aos padres isto,
Porque o tem por passatempo,
Por costume, ou por estylo.
Em cumprir as penitencias
Rebeldes são e remissos,
E muito peior se as taes
São de jejuns ou cilicios.
A muitos ouço gemer
Com pezar muito excessivo,
Não pelo horror do peccado,
Mas sim por não conseguil-o.

Preceito 2º.
No que toca aos juramentos
De mim para mim me admiro,
Por ver a facilidade
Com que os vão dar a juizo
234
Ou porque ganham dinheiro,
Por vingança, ou pelo amigo,
E sempre juram conformes
Sem discreparem do artigo.
Dizem que fallam verdade,
Mas eu, pelo que imagino,
Nenhum creio que a conhece,
Nem sabe seus aphorismos.
Até nos confessionarios
Se justificam mentindo
Com pretextos enganosos,
E com rodeios fingidos.
Tambem aquelles a quem
Dão cargos, e dão officios,
Supponho que juram falso,
Por consequencias que hei visto.
Promettem guardar direito,
Mas nenhum segue este fio,
E por seus rodeios tortos
São confusos labyrinthos.
 
 
235
Honras, vidas e fazendas,
Vejo perder de continuo,
Por terem como em viveiro
Estes falsarios mettidos.
Preceito 3º.
Pois no que toca a guardar
Dias santos e domingos,
Ninguem vejo em mim que os guarde,
Se tem em que ganhar gimbo.
Nem aos miseros escravos
Dão taes dias de vazio,
Porque nas leis do interesse
É preceito prohibido.
Quem os vê ir para o templo
Com as contas e os livrinhos
De devoção, julgará
Que vão por ver a Deus Trino.
Porem tudo é mero engano,
Porque se alguns escolhidos
Ouvem missa é perturbados
D'esses, que vão por ser vistos.
236
E para que não pareça
Aos que escutam o que digo
Que ha mentira no que fallo,
Com a verdade me explico.
Entra um d'estes pela igreja,
Sabe Deus com que sentido,
E faz um signal da cruz
Contrario ao do cathecismo.
Logo se põe de joelhos,
Não como servo rendido,
Mas em fórma de besteiro,
C'um pé no chão, outro erguido.
Para os altares não olha,
Nem para os Santos no nicho,
Mas para quantas pessoas
Vão entrando, e vão sahindo.
Gastam n'isto o mais do tempo,
E o que resta, divertidos
Se poem em conversação
Com os que estão mais propinquos.
 
 
237
Não contam vidas de Santos,
Nem exemplos ao divino,
mas sim muita patarata
Do que não ha, nem tem sido.
Pois se ha ser mão, nunca o ouvem,
Porque ou se poem de improviso
A cuchilar como negros,
Ou se vão escapulindo.
As tardes passam nos jogos,
Ou no campo divertidos,
Em murmurar dos governos,
Dando leis, e dando arbitrios.
As mulheres são peiores,
Porque se lhes faltam brincos,
Manga avola, broche, troco,
Ou saya de labyrinto:
Não querem ir para a igreja,
Seja o dia mais festivo:
Mas em tendo estas alfaias,
Saltam mais do que cabritos.
238
E se no Carmo repica,
Eil-as lá vão rebolindo,
O mesmo para São Bento,
Ou Collegio, ou São Francisco.
Quem as vir muito devotas,
Julgará sincero e liso,
Que vão na missa e sermão
A louvar a Deus com hymnos.
Não quero dizer que vão
Por dizer mal dos maridos,
Dos amantes, ou talvez
Cahir em erros indignos
Debaixo do parentesco,
Que fingem pelo appellido,
Mandando-lhes com dinheiro
Muitos e custosos mimos.
Preceitos 4º.
Vejo que morrem de fome
Os pais d'aquelles, e os tios,
Ou porque os veem lavradores,
Ou porque tratam de officios.
 
 
239
Pois que direi dos respeitos
Com que os taes meus mancebinhos
Tratam esses pais depois
Que deixam de ser meninos?
Digam- no quantos o veem,
Que eu não quero repetil-o,
A seu tempo direi como
Criam estes morgadinhos.
Se algum em seu testamento
Cerrado, ou nuncupativo
A algum parente encarrega
Sua alma, ou legados pios:
Trata logo de enterral-o
Com demonstrações de amigo,
Mas passando o requiescat,
Tudo se mette no olvido.
Da fazenda tomam posse,
Até do menor caquinho,
Mas para cumprir as deixas
Adoece de fastio.
240
E d'esta omissão não fazem
Escrupulo pequenino,
Nem se lhes dá que o defunto
Arda ou pene em fogo activo.
E quando chega a apertal-os
O Tribunal dos residuos,
Ou mostram quitações falsas,
Ou movem pleitos renhidos.
Contados são os que dão
A seus escravos ensino,
E muitos nem de comer,
Sem lhe perdoar o serviço.
Oh quantas, e quantos ha
De bigode fernandino,
Que até de noite às escravas
Pedem salarios indignos!
Pois no modo de criar
Aos filhos, parecem simios,
Causa porque os não respeitam
Depois que se veem crescidos.
 
 
241
Criam-nos com liberdade
Nos jogos, como nos vicios,
Persuadindo-lhes que saibam
Tanger guitarra e machinho.
As mãis por sua imprudencia
São das filhas desperdicio,
Por não haver refestella,
Onde as não levem comsigo.
E como os meus ares são
Muito coados e finos,
Se não ha grande recato
Tem as donzelas perigo.
Ou as quebranta de amores
O ar de algum recadinho,
Ou pelo frio da barra
Sahem co'o ventre crescido.
Então vendo-se opiladas,
Se não é do santo vinclo,
Para livrarem do achaque
Buscam certos abortinhos.
242
Cada dia o estou vendo,
E com ser isto sabido,
Contadas são as que deixam
De amar estes precipicios.
Com o dedo a todas mostro
Quantas indica o vaticinio,
E se não querem guardal-o,
Não culpem meu domicilio.
Preceito 5º
Vamos ao quinto preceito,
Santo Antonio vá commigo,
E me depare algum meio
Para livrar do seu risco.
Porque supposto que sejam
Quietos, mansos e benignos,
Quantos pizam meus oiteiros,
Montes, valles, e sombrios:
Póde succeder que esteja
Algum aspid escondido
Entre as flores, como diz
Aquelle proverbio antigo.
 
 
243
Faltar não quero à verdade,
Nem dar ao mentir ouvidos,
O de Cesar dê-se a Cezar,
O de Deus a Jesu-Christo.
Não tenho brigas, nem mortes,
Pendencias, nem arruidos,
Tudo é paz, tranquillidade,
Cortejo com regosijo.
Era dourada parece,
Mas não é como eu a pinto,
porque debaixo d'este ouro
Tem as fezes escondido.
Que importa não dar aos corpos
Golpes, catanadas, tiros,
E que só sirvam de ornato
Espadas e cotós limpos?
Que importa que não se enforquem
Nem ladrões, nem assassinos,
Falsarios, e maldizentes,
E outros a este tonilho?
244
Se debaixo d'esta paz,
D'este amor falso e fingido,
Ha fezes tão venenosas
Que o ouro é chumbo mofino?
É o amor um mortal odio,
Sendo todo o incentivo
A cobiça do dinheiro,
Ou a inveja dos officios.
Todos peccam no desejo
De querer ver seus patricios,
Ou da pobreza arrastados,
Ou do credito abatidos.
E sem outra causa mais
Se dão a dextro, e sinistro,
Pela honra e pela fama
Golpes crueis e infinitos.
Nem ao sagrado perdoam,
Seja rei, ou seja bispo,
Ou sacerdote, ou donzela
Mettida no seu retiro.
 
 
245
A todos em fim dão golpes
De enredos e mexericos,
Tão crueis e tão nefandos,
Que os despedaçam em cisco.
Pelas mãos nada: porque
Não sabem obrar no quinto;
Mas pelas linguas não ha
Leões mais enfurecidos.
E d'estes valentes fracos
Nasce todo o meu martyrio,
Digam todos os que me ouvem
Se fallo verdade, ou minto.
Preceito 6º.
Entremos pelos devotos
Do nefando rei Cupido,
Que tambem esta semente
Não deixa logar vazio.
Não posso dizer quaes são
Por seu numero infinito,
Mas só digo que são mais
Do que as formigas que crio.
246
Seja solteiro, ou casado,
E' questão, é já sabido,
Não estar sem ter borracha,
Seja do bom ou máo vinho.
Em chegando a embebedar-se
De sorte perde os sentidos,
Que deixa a mulher em couros,
E traz os filhos famintos.
Mas a sua concubina
Hade andar como um palmito,
Para cujo effeito empenham
As botas com seus atilhos.
Ellas, por não se occuparem
Com costuras, nem com bilros,
Antes de chegar aos doze
Vendem o signo de Virgo.
Ouço dizer vulgarmente
(Não sei se é certo este dito)
Que fazem pouco reparo
Em ser caro ou baratinho.
 
 
247
O que sei é que em magotes
De duas, trez, quatro e cinco,
As vejo todas as noites
Sahir de seus escondrijos.
E como ha tal abundancia
D'esta fruita no meu sitio,
Para ver.se ha quem a compre
Dão pelas ruas mil gyros.
E é para sentir o quanto
Se dá Deus por offendido,
Não só por este peccado,
Mas pelos seus conjuntivos.
Como são cantigas torpes,
Bailes e toques lascivos,
Venturas e fervedouros,
Páo de forca e pucarinhos:
Quero entregar ao silencio
Outros excessos malditos,
Como do Pai Cazumbà,
Ambrozio, e outros pretinhos.
248
Com os quaes estas formosas
Vão fazer infames brincos,
Governados por aquelles
Que as trazem n'um cabrestilho.
Preceito 7º.
Já pelo septimo entrando
Sem alterar o tonilho,
Digo que quantos o tocam
Sempre o tiveram por critico.
Eu sou a que mais padeço
De seus effeitos malignos,
Porque todos meus desdouros
Pelo setimo tem vindo.
Não fallo, como lá dizem,
Ao ar, ou libere dicto,
Pois diz o mundo loquaz
Que encubro mil latrocinios
Se é verdade, eu o não sei,
Pois acho implicancias n'isto,
Porque o furtar tem dous verbos,
Um furor, outro surripio.
 
 
249
Eu não vejo cortar bolças,
Nem sahir pelos caminhos,
Como fazem nas mais partes,
Salvo alguns negros fugidos.
Vejo que a forca ou picota
Paga os altos de vazio,
E que o carrasco não ganha
Nem dois réis para cominhos.,
Vejo que nos Tribunaes
Ha vigilantes ministros,
E se houvera em mim tal gente,
Andàra a soga em continuo.
Porem se d'isto não ha,
Com que razão, ou motivo,
Dizem por ahi que sou
Um covil de latrocinios?
Será por verem que em mim
É venerado e querido
Santo Unhate, irmão de Caco,
Porque faz muitos prodigios?


001 a 042 ..... 043 a 100 ..... 101 a 154 ..... 155 a 200 ..... 201 a 249 ..... 250 a 300 ..... 301 a 374