155
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:
Anjo bento!
D'estes avaros mofinos,
Que poem na mesa pepinos,
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que queima e arde:
Deus me guarde!
Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão;
E que esgrime em demasia
Quem nunca lá na Sophia
Soube pôr um argumento:
Anjo bento!
D'esse santo emmascarado,
Que falla do meu peccado,
E se tem por Santo Antonio,
Mas em luctas com o demonio,
Se mostra sempre cobarde:
Deus me guarde!
156
Que atropellando a justiça,
Só com virtude postiça,
Se premeie o delinquente,
Castigando o innocente
Por um leve pensamento:
Anjo bento!
 
 
 
Em 1686 diminuiram aquelle valor a que se havia erguido a moeda quando o P. estava na côrte, onde então com seu alto juizo sentiu mal do Arbitrista que assim o aconselhára a El-Rei, como se entende n'aquelles versos contra elle feitos:
Sendo pois o alterar da moeda
O assopro, o arbitrio, o ponto e ardil,
De justiça a meu ver se lhe deve
As honras que teve Ferraz e Soliz.
E agora com experiencia dos males que padecia a Republica n'estas alterações se jacta de o haver estranhado então, julgando estes males por incentivo de outros maiores.
 
 
157
1.
Tratam de diminuir
O dinheiro a meu pezar,
Que para a cousa baixar
O melhor meio é subir:
Quem via tão alto ir,
Como eu vi ir a moeda,
Lhe prognosticou a queda,
Como eu lh'a prognostiquei:
Dizem que o mandou El-Rei,
Quer creais, quer não creiais,
Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
2.
Mandam á força do fado,
Por ser justo que o dinheiro
Baixe a seu valor primeiro
Depois de tão levantado:
O que se vir sublimado
por ter mais quatro mangabas,
Hão de pezal-o ás oitavas,
E por leve hão de engeital-o:
E se com todo este abalo
Por descontentes vos dais,
Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
158
3.
As pessoas de quem rezo
Hão de ser como o ferrolho,
Val pouco tomado a olho,
Val menod tomado a pezo.
Os que prézo, e que desprezo,
Todos serão de uma casta,
E só moços de canasta,
Entre veras e entre chanças
Com pezos e com balanças
Não a justiçar os mais:
Não vos espanteis,que inda lá vem mais.
4.
Porque como em Maranhão
Mandam novelos á praça,
Assim vós por esta traça
Mandareis o algodão:
Haverá permutação,
Como ao principio das gentes,
E todos os contrahentes
Trocarão droga por droga,
Pão por sal, lenha por soga,
Vinhas por canaviaes:
Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
 
 
159
5.
Virá a frota para o anno:
E que leve vos agouro
Se não tudo a pezo de ouro,
A pezo tudo de engano:
Não é o valor deshumano,
Que a cada oitava se dá
Da prata, que corre cá,
Pelo meu fraco conceito:
Mas a cobrar fiel direito,
E obliquo quando pagais:
Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
6.
Bem merece esta cidade
Esta affliccão, que a assalta,
Pois os dinheiros exalta
Sem real autoridade:
Eu se heide fallar verdade,
O aggressor do delicto
Devia ser só afflicto:
Mas se estão tão descançados,
Talvez que sejam chamados
N'esta frota que esperais:
Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
 
160
Ao confessor do arcebispo D. Frei João da Madre de Deus.
 
Eu, que me não sei calar,
Mas antes tenho por mingoa,
Não purgar- se qualquer lingua,
A risco de arrebentar:
Vos quero, amigo, contar
(Pois sois o meu secretario)
Um successo extraordinario,
Um caso tremendo e atroz:
Porem fique aqui entre nós.
Do confessor jesuita,
Que ao ladrão do confessado
Não só absolve o peccado,
Mas os fructos lhe alcovita:
Do precursor da visita,
Que na vanguarda marchando,
Vai pedindo e vai tirando,
O demo hade ser algoz:
Porem fique aqui entre nós.
 
 
161
O ladronaço em rigor
Não tem para que dizer
Furtos, que antes de os fazer
Já os sabe o confessor:
Cala-os, para ouvir melhor,
Pois, com officio alternado
Confessor e confessado
Alli se barbeam sós:
Porem fique aqui entre nós.
Aqui o ladrão se consente
Sem castigo, e com escusa,
Porque do mesmo se accusa
O confessor delinquente:
Ambos alternadamente,
Um a outro, e outro a um,
O peccado, que é commum,
Confessa em commua voz:
Porem fique aqui entre nós.
Um e outro, à mór cautela,
Vem a ser n'este incidente
Confessor e penitente;
Porem fique ella por ella.
162
O demo em tanta mazella
Diz: faço porque façais;
Absolvo, porque absolvais;
Pacho inopinado poz:
Porem fique aqui entre nós.
Não se dá a este ladrão
Penitencia em caso algum;
E sómente em um jejum
Se tira a consolação:
Elle estará como um cão
De levar a bofetada;
Mas na cara ladrilhada
Emenda o pejo não poz:
Porem fique aqui entre nós.
Mecanica disciplina
Vem a impor por derradeiro
O confessor marceneiro
Ao peccador carapina:
E como qualquer se inclina
A furtar e mais furtar,
Se conjura a escavacar
As bolças é um par de enxós:
Porem fique aqui entre nós.
 
 
163
O tal confessor me abysma,
Que releve, e não se offenda,
Que um frade sagrado venda
O sagrado oleo da Chrisma.
Por dinheiro a gente chrisma,
E por cera, havendo queixa,
Que nem a da orelha deixa
Onde chrismando a mão poz:
Porem fique aqui entre nós.
Que em toda a franciscania
Não achasse um máo ladrão,
Que lhe ouvisse a confissão,
Mais que um padre da Apanhia!
N'isto, amigo, ha sympathia;
E é que lhe veio a pêllo,
Que um vá atando no orêllo
O que o outro mette no coz:
Porem fique aqui entre nós.
Que tanta culpa mortal
Se absolva, eu perco tino;
Pois absolve um theatino
Peccados de pedra e cal:
164
Quem em vida monacal
Quer dar à filha um debate
Condemnando em dote ou date,
Vem a dar-lhe o pão e o noz:
Porem fique aqui entre nós.
As freiras com santas sedes
Sahem condemnadas em pedra,
Quando o ladronaço medra,
Roubando pedra e paredes.
Vós, amigo, que isto vedes,
Deveis a Deus graças dar
Por vos fazer secular,
E não zote de albernoz:
Porem fique aqui entre nós.
 
 
165
O Deão André Gomes Caveira se introduziu de tal modo com o Arcebispo Dom Frei João da Madre de Deus em desabono do P. que elle estimulado lhe fez a seguinte obra:
 
Mote.
 
O mundo vai-se acabando,
Cada qual olhe por si,
Porque dizem que anda aqui
Uma caveira fallando.
Glosa.
Chegou o Deão ao Prelado
Tam galhardo e tão luzido,
Tão douto e esclarecido,
Tão nobre e tão illustrado,
Que não houve prebendado
Que para o ir enganando
Se lhe não fosse chegando:
Mas só caveira asnaval
É que com o Prelado val:
O mundo vai-se acabando.
166
Como não hade acabar-se
Se uma caveira tão feia
Ao prelado galanteia
A risco de enamorar-se?
Onde se viu galantear-se
O roxete carmesí
Pela caveira de Hebri?
Não é mentira, é verdade,
Pois para seguridade
Cada qual olhe por si.
Olhe por si cada qual,
E não se dêm por seguros
Sabendo que anda extra muros
Esta caveira infernal:
Ella anda pello quintal,
E d'acolá para aqui:
Eu por mil parte a vi:
O leigo, o frade e o monge
Não a imaginem de longe,
Porque dizem que anda aqui.
 
 
167
Aqui anda, aqui está
Rosnando sempre entre nós,
Deão com cara de arroz,
E pretensões de Boyapá:
Elle é o que os contos dà,
E os vicios vai accusando
Com zelo tenaz e nefando,
Com que nos bota a perder,
Porque quem não hade crer
Uma caveira fallando.
 
 
Os effeitos do cometa apparecido em 1680.
 
Que esteja dando o Francez
Camoezas ao Romano,
Castanhas ao Castelhano,
E figas ao Portuguez?
E que estejam todos tres
Em uma scisma quieta
Reconhecendo esta treta
Tanta à vista, sem a ver?
Tudo será; mas a ser,
Effeitos são do cometa.
168
Que esteja o Inglez mui quedo,
E o Hollandez muito ufano,
Portugal cheio de engano,
Castella cheia de medo?
E que o Turco viva ledo,
Vendo a Europa inquieta?
E que cada qual se metta
Em uma cova a tremer?
Tudo será, mas a ser,
Effeitos são do cometa.
Que esteja o Francez zombando,
E a India padecendo
Italia olhando e comendo,
Portugal rindo e chorando?
E que os esteja enganando
Quem sagaz os inquieta,
Sem que nada lhe prometta?
Será; mas com mais razão,
Segundo a minha opinião,
Effeitos são do cometa.
 
 
169
Que esteja Angola de graça,
O Mazagão cáe, não cáe,
O Brazil feito Combray,
Quando Hollanda feita caça?
E que jogue o= passa passa =
Comnosco a Turco mahometa,
E que assim nos acommetta?
Será, pois é tão ladino;
Porem segundo imagino,
Effeitos são do cometa.
Que venham os Franchinotes,
Com engano surrateiro,
A levar-nos o dinheiro
Por troca de assobiotes?
Que as patacas em pivotes
Nos levem à fiveleta,
Não sei se n'isto me metta:
Porem sem metter- me em rodas,
Digo que estas cousas todas
Effeitos são do cometa.
170
Que venham home estranhos
Às direitas, e às esquerdas,
Trazer-nos as suas perdas,
E levar os nossos ganhos:
E que sejamos tamanhos
Ignorantes, que nos metta
Sem debuxos a gazeta?
Será, que tudo é peior;
Mas porem seja o que for,
Effeitos são do cometa.
Que havendo tantas maldades,
Como experimentado temos,
Tantas novidades vemos,
Não havendo novidades?
E que estejam as cidades
Todas postas em dieta
Máo é; porem por directa
Permissão do mesmo Deus,
Se não são peccados meus,
Effeitos são do cometa.
 
 
171
Que se vejam sem razão,
No extremo em que hoje se veem,
Um tostão feito um vintem,
E uma pataca um tostão?
E que estas mudançãs vão
Fabricadas à curveta,
Sem que a ventura prometta
Nunca nenhuma melhora?
Será, que pois o Céo chora,
Effeitos são do cometa.
Que o Reino em um estaleiro
Esteja, e n'esta occasião
Haja pão, não haja pão,
Haja, e não haja dinheiro?
E que se tome em Aveiro
Todo o ouro e prata invecta
Por certa via secreta?
Eu não sei como isto é:
Porem já que assim se vê,
Effeitos são do cometa.
172
Que haja no mundo quem tenha
Guizados para comer,
E traças para os haver,
Não tendo lurne, nem lenha?
E que sem renda mantenha
Carro, carroça, e carreta,
E sem ter aonde os metta,
Dentro em si tanto acommode?
Pòde ser, porem se póde,
Effeitos são do cometa.
Que andem os officiaes
Como fidalgos vestidos,
E que sejam presumidos
Os humildes como os mais?
E que não possam os taes
Cavalgar sem a maleta?
E que esteja tão quieta
A cidade co'o povo mudo?
Será, mas sendo assim tudo,
Effeitos são do cometa.
 
 
173
Que se vejam por prazeres,
Sem repararem nas fomes,
As mulheres feitas homes,
E os homens feitos mulheres?
E que estejam os Misteres
Enfronhados na baeta,
Sem ouvirem a trombeta
Do povo, que é um clarim?
Será, porem sendo assim,
Effeitos são do cometa.
Que vista, quem rendas tem,
Galas vistosas por traça,
Supposto que bem mal faça,
Inda que mal fará bem?
Mas que as vista quem não tem
Mais que uma pobre saieta,
Que lhe vem pelo estafeta,
Por milagre nunca visto?
Será, mas sendo assim isto,
Effeitos são do cometa.
174
Que não o veja que hade ver
Mal no bem, e bem no mal,
E se metta cada qual
No que se não hade metter?
Que queira cada um ser
Capitão, sem ter gineta,
Sendo ignorante propheta,
Sem ver quem foi, e quem é?
Será, mas pois se naõ vê,
Effeitos são do cometa.
Que o pobre e o rico namore,
E que, com esta porfia,
O pobre alegre se ria,
E que o rico triste se chore?
E que o presumido more
Em palacio sem boleta,
E por não ter que lhe metta,
O tenha cheio de vento?
Póde ser; mas ao intento
Effeitos são do cometa.
 
 
175
Que ande o mundo como anda,
E que ao som do seu desvelo
Uns bailem ao saltarello,
E outros a sarabanda?
E que estando tudo à banda,
Sendo eu um pobre poeta,
Que n'stas cousas me metta,
Sem ter licença de Apollo?
Será; porem se sou tollo,
Effeitos são do cometa.
 
 
Juizo anatomico dos achaques que padecia o corpo da Republica em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.
 
Que falta n'esta cidade? ..............Verdade.
Que mais por sua deshonra? ......... Honra.
Falta mais que se lhe ponha ......... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta
N'uma cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
176
Quem a poz n'este socrocio? .......... Negocio.
Quem causa tal perdição? .............. Ambição
E no meio d'esta loucura? ............. Usura.
Notavel desaventura
De um povo nescio e sandeu,
Que não sabe que o perdeu
Negocio, ambição, usura.
Quaes são seus doces objectos? .......... Pretos.
Tem outros bem mais massiços? ....... Mestiços.
Quaes d'estes lhe são mais gratos? ..... Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.
Quem faz os cirios mesquinhos? ....... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas? ............ Guardas.
Quem a tem nos aposentos? .............. Sargentos.
Os sirios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
 
 
177
E que justiça a resguarda? ........... Bastarda.
É gratis distribuida? .................. Vendida.
Que tem, que a todos assusta? ..... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dà de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
Que vai pela clerizia? .................. Simonia.
E pelos membros da igreja? ......... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha? .... Unha
Sazonada caramunha,
Em fim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e Unha.
E nos frades ha manqueiras? ........... Freiras.
Em que occupam as serões? ............ Sermões.
Não se occupam em disputas ........... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas d'um frade
São freiras, sermões, e putas.
178
O assucar já se acabou? ............... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu? .......... Subiu.
Logo já cov alesceu? .................. Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece,
Cahe na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, e morreu.
A Camara não acode? ................. Não pòde.
Pois não tem todo o poder? ......... Não quer.
É que o Governo a convence? .... Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma Camara tão nobre,
Por ver-se misera e pobre
Não póde, não quer, não vence?
 
 
 
 
 
179
Á fome que houve na Bahia no anno de 1691.
 
Toda a cidade derrota.
Esta fome universal,
E uns dão a culpa total
Á Camara, outros à frota
A frota tudo abarrota
Dentro dos escotilhões,
A carne, o peixe, os feijões,
E se a Camara olha e ri,
Porque anda farta até aqui,
E' cousa que me não toca:
Ponto em boca.
Se dizem que o marinheiro
Nos precede a toda a lei,
Porque è serviço do rei,
Concedo que está primeiro:
Mas tenho por mais inteiro
O Concelho que reparte,
Com igual mão e igual arte,
Por todos jantar e ceia:
Mas frota com tripa cheia,
E povo com pança ôca,
Ponto em boca.
180
A fome me tem já mudo,
Que é muda a boca esfaimada,
Mas se a frota não traz nada,
Por que razão leva tudo?
Que o povo por ser sisudo
Largue o ouro e largue a prata
A uma frota patarata,
Que entrando com véla cheia,
O lastro, que traz de areia,
Por lastro de assucar troca!
Ponto em boca.
Se quando vem para cá
Nenhum frete vem ganhar,
Quando para lá tornar
O mesmo não ganhará:
Quem o assucar lhe dá
Perde a caixa, e paga o frete,
Porque o anno não promette
No negocio que o perder:
O frete por se dever
A caixa porque se choca.
Ponto em boca.
 
 
181
Elle tanto em seu abrigo,
E o povo todo faminto,
Elle chora, e eu não minto,
Se chorando vol- o digo:
Tem- me cortado o embigo
Este nosso General,
Por isso de tanto mal
Lhe não ponho alguma culpa;
Mas se merece desculpa
O respeito, a que provoca,
Ponto em boca.
Com justiça pois me torno
Á Camara nò Senhora,
Que pois me trespassa agora,
Agora leve o retorno;
Praza a Deus que o caldo morno,
Que a mim me fazem cear
Da mà vacca do jantar,
Por falta do bom peccado,
Lhes seja em cristéis lancado;
Mas se a saude lhes toca,
Ponto em boca.
182
A um homem humilde que se metteu a fidalgo.
 
Cançado de vos pregar
Cultissimas prophecias,
Quero das cultinarias
Hoje o habito enforcar:
De que serve o rebentar
Por quem de mim não tem magoa?
Verdades direi como agoa,
Porque todos entendaes,
Os ladinos e os boçaes,
A Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?
O fallar de intercadencia,
Entre silencio e palavra,
Crer que a testa se vos abra,
E encaixar-vos que é prudencia:
Alerta, homem de sciencia,
Que quer o Xisgaraviz
Que aquillo que vos não diz,
Por lh'o impedir a rudeza,
Avalieis madureza,
Sendo ignorancia traidora.
Entendeis-me agora?
 
 
183
Se notais ao mentecapto
A compra de Conselheiro,
O que nos custa dinheiro,
Isso nos sahe mais barato:
E se na meza do trato
Da bolsa, ou da Companhia,
Vires levar Senhoria
Mecanicos Deputados;
Crede que nos seus cruzados
Sangue esclarecido mora.
Entendeis-me agora?
Se hoje vos falla de perna
Quem não podia hontem ter
Ramo, de quem descender,
Mais que o da sua taverna;
Tende paciencia interna,
Pois foi sempre Dom dinheiro
Poderoso cavalheiro,
Que com poderes reaes
Faz iguaes aos desiguaes,
E conde ao villão cada hora.
Entendeis-me agora?
184
Se na comedia, ou sainete,
Vires que um Dom Fidalgote
Lhe dá no seu camarote
A chicara do sorvete;
Havei dò do coitadete;
Pois n'uma chicara sò
Seu dinheiro bebe em pò:
Que o Senhor, cousa é sabida,
Lhe dà a chupar a bebida,
Para chupal-o n'outra hora.
Entendeis-me agora?
Não reputeis por favor,
Nem tenhais por maravilha
Vêl-o jogar a espadilha
Co'o Marquez, co'o grão Senhor;
Porque como é perdedor
O mofino adredemente,
E faz um sangue excellente
A qualquer dos ganhadores,
Qualquer d'aquelles Senhores
Por fidalgo igual o affòra.
Entendeis-me agora?
 
 
185
Epigrammas sobre varios assumptos.
 
1.
Sahia a satyra mà,
E empurraram-ma os perversos,
Porque em quanto a fazer versos
Só eu tenho geito cà:
N'outras obras de talento
Sò eu sou o asneirão;
Mas sendo satyra então
Sò eu tenho entendimento.
2.
Acabou-se a Sé, e envolto
Na obra o Sete caveiras
Enfermou de caganeiras,
E fez muito verso solto:
Tu, que o poeta motejas,
Sabe que andou acertado,
Que pôr na obrao louvado
É costume das igrejas.
186
3.
Correm-se muitos carneiros
Na festa das Onze mil,
E eu com notavel ardil
Não vou ver os cavalleiros:
Não vou ver, não se espantem,
Que algum testemunho temo,
Sou velho pelos que gemo,
Não quero que m'o levantem.
4.
Querem-me aqui todos mal,
E eu quero mal a todos,
Elles e eu por nossos modos
Nos pagamos tal por tal:
E querendo eu mal a quantos
Me tem odio tão vehemente,
O meu odio é mais valente,
Pois sou sò, e elles tantos.
5.
Algum amigo que tenho,
Se é que tenho algum amigo,
Me aconselha que o que digo
O cale com todo o empenho:
 
 
187
Este me diz, diz-me este outro,
Que me não fie d'aquelle,
Que farei, se me diz d'elle,
Que me não fie aquelle outro?
6.
O Prelado com bons modos
Visitou toda a cidade,
É cortezão na verdade,
Pois nos visitou a todos;
Visitou-se a pura escripta
O povo e seus camarcãos,
E os réos de mui cortezãos
Hão de pagar a visita.
7.
A cidade me provoca
Com virtudes tão commuas,
Ha tantas cruzes nas ruas,
Quantas eu faço na boca:
Os diabos a seu centro
Foi cada um por seu cabo,
Nas ruas não ha um diabo
Ha-os de portas a dentro.
188
8.
As damas de toda a côr,
Como tão pobre me veem,
As mais lastima me tem,
As menos me tem amor:
O que me tem admirado
É fecharem-me o poleiro,
Logo acabado o dinhero:
Deviam ter-m'o contado.
 
 
 
A' prisão de duas mulatas por uma querella que d'ellas deu o celebre capitão Domingos Cardozo, de alcunha o Mangarà, pelo furto de um papagaio: assumpto do soneto a pag.
 
A quem não causa desmaio
Esta querella recente,
As mulatas na corrente
Em falta do papagaio?
Eu de verdade não caio
N'esta justiça em rigor:
Ora este tal prendedor
Quem seria, ou quem serà?
Mangará.
 
 
189
Diz que em tudo tinha graça
A Iandaya, abrindo a boca,
Dizendo o seu toca toca,
Meu papagaio, quem passa?
Mangarà, que vai à caça.
Porem na presente perda
Passarà a beber da merda,
Que não faltarà quem và.
Mangarà.
As mulatas no seu mal
Vão disfarçando a paixão,
Pois lhe deu dura prisão
O papagaio real.
Diz que para Portugal
Lindamente dava o pè;
Mas uma articula, que
O contrario provará
Mangarà.
Provará que elle gostàra,
E que não satisfizera,
E muitas cousas dissera
Se o papagaio fallàra:
190
Que o capitão intentàra
Pagar-lhe em bens de raiz,
Pois sendo mangarà quiz
Transfigurar-se em carà.
Mangarà.
Pondo-se o pleito em julgado,
Dar testemunhas procura
Com o primo Rapadura,
E um compadre seu Melado:
Mas hade ficar borrado,
Como o tal primo ficou,
Quando a mulata o purgou
N'aquelle triste araçà.
Mangará.
Na gaiola ou passarada,
Onde as duas pobres vejo,
A primeira entrou sem pejo,
Mas a segunda pejada:
Arrebentou de embuxada
Um presozinho pequeno,
Que criado com veneno
Danno jàmais lhe fará.
Mangará.
 
 
191
Todo o povo, que isto vê,
Pergunta em seu desabono,
Não ao papagaio, ao dono,
Que casta de passaro è:
Eu por lhe fazer mercê
Dou definição cabal:
Um contrafeito asanaval,
Empenhado em Pirajà.
Mangarà.
 
 
 
Distribuição de cornos.
 
Um vendelhão baixo e vil
De cornos poz uma tenda,
E confiado em que os venda
Correu por todo o Brazil:
Para mim de tantos, mil,
Lhe mandei que me guardasse,
Se verdade não fallasse
Sem soborno, e com sojorno,
Um corno.
192
Para o alcaide ladrão
Com despejo, e sem temor,
Que na mão leva o Doutor,
Na barriga a Relação;
E indo à casa de um Sansão,
Entra audaz e confiado,
E faz penhora no estrado
Da mulher, e seus adornos:
Dois cornos.
Para o Escrivão falsario,
Que, sem chegar-lhe à pousada,
Dá a parte por citada,
E dá fé, cobra o salario;
E sendo o feito ordinário,
Como corre à revelia,
Sahe a sentença em um dia
Mais amarga que piorrnos:
Tres cornos.
Para o julgador orate,
Ignorante e fanfarrão,
Que sendo Conde de Unhão,
Já quer ser Marquez de Unhate;
 
 
193
E por qualquer dote, ou date,
Resolve de envés um feito,
E assola a torto e direito
A cidade e seus contornos.
Quatro cornos.
Para o Judas Macabeu,
Que porque no Tribo estriba
Foi de capitão a escriba,
E de escriba a Phariseu;
Pois no officio se metteu
A effeitos sò de comer
Suffragios, que em vez de os ter,
Quiz antes arder em fornos:
Cinco cornos.
Para o bebado mestiço,
E fidalgo atravessado,
Que tendo o pernil tostado,
Cuida que è branco castiço;
E de flatos enfermiço
Se ataca de giribita,
Crendo que os flatos lhe quita,
Quando a vomita em retornos:
Seis cornos.
194
Para as damas da cidade,
Brancas, Mulatas, e pretas,
Que com sortilegas tretas
Roubam toda a liberdade:
E equivocando a verdade
Dizem que são um feitiço,
Não o tendo em o cortiço,
Tanto como caldos mornos:
Sete cornos.
Para o Conego observante
Todo o dia, e toda a hora,
Cuja carne é peccadora
Das completas por diante:
Cara de disciplinante,
Queixadas de penitente,
Que qualquer gimbo corrente
Serve para seus adornos:
Oito cornos.
Para o frade confessor,
Que ouvindo um peccado horrendo,
Se vai pasmado benzendo,
Fugindo do peccador:
 
 
195
E sendo talvez peior
Do que eu, não quer absolver-me,
Talvez porque inveja ver-me
Com tão torpes desadornos:
Nove cornos.
Para o prègador horrendo,
Que a igreja estrugindo a gritos,
Nem elle entende os seus ditos,
Nem eu tão pouco os entendo:
E a vida, que está vivendo,
É lá por outra medida,
E a mim me quiz uma vida
Mais amarga que piornos:
Dez cornos.
Para o tonto da Bahia,
Que murmura do meu verso,
Sendo elle tão perverso,
Que a saber fazer, faria:
E quando a minha Thalia
Lhe chega às mãos e ouvidos,
Faz na cidade alaridos,
E vai gastal-a aos contornos:
Mil cornos.
196
Ao Padre Lourenço Ribeiro, pardo que foi Vigario da Freguezia de Passé.
 
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorancia e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena, ou contradicção:
Milagres do Brazil são.
Que um cão revestido em padre
Por culpa da Santa Sé
Seja tão ousado, que
Contra um branco honrado ladre,
E que esta ousadia quadre
Ao Bispo, ao Governador,
Ao cortezão, ao Senhor,
Tendo mãos e Maranhão?
Milagre do Brazil são.
 
 
197
Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece já,
A mãi lhe lembre que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco coeiro,
Se o cú é tão denegrido,
Mas se no mixto sentido.
Se lhe esconde a negridão,
Milagres do Brazil são.
Prèga o Perro frandulario,
E como a licença o cega,
Cuida que em pulpito prega,
E ladra em um campanario:
Vão ouvil-o de ordinario
Tios e tias do Congo,
E se suando o mondongo
Elles sò o gabo lhe dão,
Milagre do Brazil são.
Que ha de prègar o caxorro,
Sendo uma vil creatura,
Que não sabe de escriptura
Mais que aquella que o pôz forro?
198
Quem lhe dá ajuda e soccorro
São quatro sermões antigos,
Que lhe vão dando os amigos;
E se amigos tem um cão,
Milagres do Brazil são.
Um cão é o timbre maior
Da Ordem predicatoria,
Mas não acho em toda a historia
Que um ção fosse prègador:
Se nunca falta um senhor,
Que lhe alcance esta licença
De Lourenço por Lourença,
Que as pardas tudo farão,
Milagres do Brazil são.
Tè em versos quer dar pennada,
E porque o genio desbroche,
Como um cão a troche moche,
Mette a unha e dà dentada:
O Perro não sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate porque sonha
Que sabe alguma questão,
Milagres do Brazil são.
 
 
199
Do Perro affirmam Doutores
Que fez uma apologia
Ao Mestre da poesia,
Outra ao Sol dos pregadores:
Se da lua aos resplandores
Late um cão a noite inteira,
E ella seguindo a carreira
Luz com mais ostentação,
Milagres do Brazil são.
Que vos direi do mulato,
Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delicto,
Fallar d'elle sem recato?
Não faltará um mentecapto,
Que como villão de enserro
Sinta que dêm no seu perro,
E se ponha como um cão,
Milagres do Brazil são.
Imaginais que o insensato
Do canzarrão falla tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não: senão porque é mulato,
200
2 Seu estoraque de Congo,
1 Ter sangue de carrapato,
Cheirar-lhe a roupa a mondongo,
É cifra de perfeição:
Milagres do Brazil são.
 
 
 
A varios sugeitos da cidade da Bahia.
 
Como nada vêem,
E andam sempre aos tombos,
Querem os Mazombos
Que eu cegue tambem:
Não temo a ninguem,
E se os matulões
Hão medo às prisões,
Eu sou de corona,
Forro minha cona.
Olhe para a terra,
Que está n'estes annos
Gafa de maganos,
Que o Reino desterra:
O pano da Serra


001 a 042 ..... 043 a 100 ..... 101 a 154 ..... 155 a 200 ..... 201 a 249 ..... 250 a 300 ..... 301 a 374