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Vida

do Dr. Gregorio de Mattos Guerra

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Vidado Dr. Gregorio de Mattos Guerra.

Abreviarei a vida de um poeta pouco cuidadoso de estendel a nos espaços da eternidade, que lhe franqueou as postas, escrevendo costumes do Doutor Gregorio de Mattos Guerra, mestre de toda a Poesia Lyrica por especial decreto da Natureza, cujo enthusiastico fusos poderá só retratar-se dignamente, porque de fórma menos viva desconfia a equidade tão excellente materia.

Cousas direi menos decorosas ao sujeito de minha empreza; e por seguir os dictames da verdade historica, quero perder os louros de piedoso advogado contra exemplares famosos, que commentando, ou redimindo as obras de benemeritos talentos affectam justificar-lhe as vidas no resumo d’ellas, de modo que pareça impeccavel aquelle de quem o Céo confiou os esasios da sua profluencia.E se a geral opinião reprovar esta maxima por desabrida, o mesmo sujeito que descrevo me apologisa, cujas doutrinas pesuadem sempre a verdade nua.

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Nasceu na Bahia de Todos os Santos, capital Cidade do Estado do Brazil ao Cruzeiro de S. Francisco, da parte do Norte, em casas cuja figurada cornija de medalhas imperiaes ainda hoje as distingue caprichosamente nobres. Os pais que o deram à luz em 7 de Abril de 1623 foram Pedro Gonçalves de Mattos, Fidalgo da serie dos Escudeiros em Ponte de Lima, natural dos Arcos de Valdever; e Maria da Guerra, matrona geralmente conhecida de respeito em toda a cidade, cujas prendas intellectuaes amarraram uma trindade capaz de resplandecer no coração da mesma Roma. A 15 do dito mez recebeu a graça baptismal com o nome de João, na cathedral que depois o venerando Prelado D. Pedro da Silva e [Sampaio] pela sua occurrencia e milagroso auspicio de SGregorio Magno collocado em Nossa Senhora da Ajuda lhe mudou em Gregorio, mysterioso agouro de que seria Gregorio doutamente grande o tenso afilhado: mas dirigida aquella mudança de algum modo a favorecer a distincção de seus pais.

Eram estes de tal maneira ricos que possuiam com outras fazendas um soberbo canavial na Patatiba fabricado com pesto de cento e trinta escravos de serviço, que repartia a safra por dois engenhos, cujo rendimento suppria largamente os gastos de um...

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liberal tratamento e caridade com os pobres; mas nada disto basta para que um poeta sendo grande se escuse de morrer nos braços da maior miseria.

Foi o Doutor Gregorio de Mattos o ultimo filho de tres varões que nasceram d’ este matrimonio, dotados pela Natureza com os maiores thezouros; mas a fortuna sempre apposta aos morgados da natureza veio a consumir-lhe aquelles nomes, que ambiciosa a fama pedia; e não sem apparencias de virtude, increpando o desalinho e pouca estimação, S.ª achaques que sempre toma de anniquilar os benemeritos, e desgraça repetidas vezes chorada de sua mãi, que com agudeza natural dizia.= "Deu- me Deus tres filhos como tres sóvelas sem cabo." Farei particular menção dos dois primeiros no segundo tomo, para que o ultimo se não queixe do desaire que a minha penna poderia occasionar-lhe, que é menos honra ser um accidentalmente grande, que o ter vinculada sua grandeza na especie generativa.

Gregorio, que d’este triumvirato sapiente é o nosso particular assumpto, criou-se com a boa estimação que inculcavam os sem haveres e as suas honras. Soube mais que seus Brasileiros contemporaneos fatalmente agudos com o tempe-

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ramento do clima, sendo lastima carecerem de mestres para toda a Faculdade: porque Athenas perdera de uma vez aquella soberba, com que se reproduz em despreso do mundo.

Passou a Coimbra, onde não teremos por novidade que aprendesse, ou que admirasse quem tanto de casa levava as potencias dispostas. Direi sómente que arrombou na Goezia: porque Belchior da Cunha Brachado, depois Desembargador na Relação d’este Estado, escreveu a certo cavalheiro da côrte em um periodo succinto o maior elogio do seu enthusiasmo:" Anda aqui (dizia elle) um estudante brazileiro tão refinado na Satyra, que com suas imagens e sem tropos parece que baila Momo as Cançonetas de Apollo." Não devia de haver-lhe visto as valentias amorosas para enviar outra cedula aos apaixonados de João Baptista Marini pelo postilhão de Italia: mas como o maior d’esta materia se destina a perpetuo silencio pela impunidade dos termos que a modestia portugueza não permitte, triumphem os Italianos embora, que lá deve de haver necessidade d’aquillo mesmo que cá se despreza.

Doutorou-se na Faculdade de Leis, e passando a Côrte a praticar os termos da Judicatura

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com um dos melhores Letrados d’ella, lhe conciliou grandes creditos o caso seguinte:

Defendia este Letrado um pleito a certo tiitular, tão volumoso que o conduziam mariólas quando era preciso. Era a causa civel sobre a possessão de um morgados, e expirava contra aquelle cavalheiro, que sómente queria empatar-lhe a execução; e n’esse empenho nenhuma esperança lhe dava o seu advogado com os melhores da Côrte. Mas por animar o affligido pleiteante, resolveu mandal-o ao Doutor Gregorio de Mattos, dizendo que só d’aquella viveza confiava o remedio palliativo a Sua Excellencia, dado que o houvesse. Conduzido aquelle volumoso labyrintho para casa do nosso praticante, com os maiores encarecimentos lhe supplicou o Fidalgo que pozesse os olhos n’aquelle instrumento de sua perdição, examinando-lhe os menores incidentes para embargos, cuja extensão dirigia a concertar-se com a parte vencedora por meio de algum respeito.

Era meio-dia, foi-se o Fidalgo, e não lhe soffrendo descanso o seu alvoroço antes de vesperas partiu a examinarse se desvelava ou não com os autos o novo Letrado; mas

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grande litteratura e rectissimo proceder, e d’aqui se foi engolfando em merecimentos. Com promessa de logar na Supplicação o mandava Sua Alteza ao Rio de Janeiro devassar dos crimes de Salvador Correa de Sá Benavides, mercê que fatalmente rejeitou. Uns dizem que por temer as violencias de tão poderoso quão resoluto réo, quando no firme proposito de observar justica: outros, que com algum atrevimento indecoroso capitulara com o Soberano a mercê antecipada do serviço, dando a entender que se fiava pouco em promessas, ainda que Reaes.

Isto é o que se conta, e sempre o ou vi dizer a pessoas de melhor notícia; mas como se faz merecedor do engano ( diz Camões) quem acredita mais o que lhe dizem, que o que vê, affirmarei que o Doutor Gregorio de Mattos cahiu da graça do Soberano à pesuasão de algum prejudicado em suas satyras, sem que atrevida ou temerosamente recuzasse mercês. Thomas Pinto Brandão, em um resumo que faz da sua mesma vida, diz que viera ao Brazil na companhia d’elle, que se retirava descontente de lhe negarem aquillo mesmo com que rogavam a outros, e isto fror ser Poeta e jurista famoso.

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Procurei ir me chegando

A um Bacharel mazombo,

Que estava para a Bahia

Despachado, e desgostoso

De lhe não darem aquillo

Com que rogavam a outros,

Pelo crime de poeta,

Pobre jurista famoso.

D’aqui infiro que invejas indignas occasionaram que o Doutor Gregorio de Mattos se retirasse desgostoso para a Patria d’aquellas injustiças, que de ordinario padecem na Côrte os benemeritos. E com elle mesmo provarei o que digo, que é auctor sem suspeita, escrevendo umas decimas a D. João de Alencastre.

Ma inda que desterrado

Me tem o fado e a sorte

Por um juiz de má morte, Sª

Esta queda do conceito de El-Rei devia de occasionar-lhe certo semivalido, contra quem indignado soltou o meu poeta os diques à sua musa, mostrando desde Lisboa ao mundo a mais ve-

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nenosa satyra que podéra excogitar o mesmo Apollo. Sempre que leio este ramalhete de viboras me recordo do miseravel Bupalo, que desesperado de honra se

enforcou por haver sido assumpto de outra menos viva talvez do que esta: cujo heroe devia de amar menos a honra, do que a vida.Foi tal esta obra, que o mesmo Soberano a decorou, fazendo glorioso apreço das suas figuradas consonancias.

Despachado e desgostoso, que são termos encontrados, diz Thomas Pinto que viera para a patria o Doutor Gregorio de Mattos: e veio desgostoso por lhe negar El-Rei o adiantamento que merecia, mas despachado porque sendo provido na dignidade de Thesoureiro- mór da Sé da Bahia, D. Gaspar Barata de Mendonça, primeiro Arcebispo d ’esta, lhe commetteu o cargo de Vigario Geral, que acceitou, e com estes empregos se embarcou para a patria, desenganado de poder lograr o fructo de suas virtuosas lettras em uma côrte que o reconheceu agudo, para temel-o ousado. O Desembargador Christovão de Burgos de Contreiras, natural da Bahia, que depois o foi na Relução de Lisboa, lhe facilitou a passagem na sua conducta, e em Julho de 1681

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entrou a exercer de Ordens menores aquelles cargos que trouxera, trajando porem o habito secular todo aquelle tempo que lhe ficava livre das obrigações ecclesiasticas: capricho que principiou a assufal-o com os Governadores do Arcebispo : porem os erros do habito eram n’elle menores que os do costume n’aquelles, cuja parcialidade se augmentára por horas em contraposição da luz: e o padecente, que conhecia o seu damno com vista clara, queria reparar a inimizade de todos com a sua. Elle o pinta magistralmente n’estes versos:

Querem-me aqui todos mal,

Mas eu quero mal a todos,

Elles e eu por varios modos

Nos pagamos tal por qual:

E querendo eu mal a quantos

Me tem odio tão vehemente,

O meu odio é mais valente,

Pois sou só, e elles são tantos.

Algum amigo que tenho,

Se é que tenho algum amigo,

Me aconselha que o que digo

O cale com todo o empenho. V.ª

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Era o Doutor Gregorio de Mattos acessimo inimigo de toda a hypocrisia, virtude que, se podéra, devia moderar, attendendo ao costume dos presentes seculos, em que o mais retirado anacoreta se enfastia da verdade crua. Mas seguindo os dictames da sua natural impertinencia, habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude, como de nunca houveram de acabar- se as singelezas da primeira idade; e bem que se communicava com os doidos, d’aquella prodigiosa chuva nunca se resolveu a molhar a cabeça, como admiravelmente o diz na obra em que redargue a doutrina ou maxima de bem viver, que seguem muitos politicos, de involver-se na confusão de homens perdidos e nescios, a qual o Leitor veja, por me fazer mercê, e d’esta contumacia lhe nasciam os quebradouros. Nem havia lisonja que desmentisse as durezas d’aquelle engano: o que se prova com esta decima.

A nossa Sé da Bahia,

Com ser um mappa de festas,

É um presepe de bestas,

Se não for estrebaria:

Varias bestas cada dia

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Vejo que o sino congrega:

Caveira mula gallega,

Deão burrinha bastarda,

Pereira mula de albarda,

Que tudo da Sé carrega.

Pareceu a certo conego que não ia incluido n’esta decima, onde o seu nome se não mostrava, e promptamente-lhe veio agradecer com palavras humildes; mas o Bravo lhe respodeu: "Não, Senhor padre, lá vai nas bestas.". É verdade que n’aquelle tempo eram poucos ou nenhum os Formados que vestiam murça, e tanto que para acceitarem aquelles logares capitulavam conveniencias os benemeritos, pelo contrario do que agora passa.

Com esta singular opinião passou o Doutor Gregorio de Mattos de uma côrte de sabios, que o representavam grande, a uma colonia de presumidos, que o aborreciam critico, experimentando por peior condição d’esta troca desigual o entregar-se nos braços da propria patria, onde o mais purificado sempre tem o desar de o haverem visto menino. E como aquelle que olhou para o sol, que qualquer sombra depois lhe parece abysmo; a elle com a vista proxima de Lisboa, se representavam in-

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-fernos as confusões da Bahia.

O genio satyrico, o orgulho intrepido, não ha duvida que de justiça providencial se devia ao desgoverno d’estas conquistas, onde cada um trata de fazer a sua conveniencia, gema quem gemer, e se notou que de algum modo moderarão os viciosos seus depravados costumes: de que veio a dizer o grande Padre Antonio Vieira que maior fructo faziam as satyras de Mattos, que as missões de Vieira; mas bem podéra deixar de dizer muitas cousas, sem inteira informação, do que ao depois como christão se arrependeu, dizendo ao Vigario da Muribeca em Pernambuco, Antonio Gomes Baracho, que lhe doía na alma o que dissera de Fr. Basilio.

Com este genio pois e com esta valentia se fez Gregorio de Mattos aborrecido de uns, e temido de outros. Estes lhe fingiam amizade, pelo que receiavam; aquelles lhe machinavam odio, pelo que já sentiam: sendo o primeiro golpe da commum vingança fazerem-lhe despir a murça capitular com despreso por sentença do Arcebispo D. Fr. João da Madre de Deus, successor d’aquelle em cujo tempo a vestira; se não é que elle de moto proprio abandonou o beneficio por se não accommodar às pensões da sua residencia.

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Poucos dias antes pretendeu este Prelado com piedosas mostras pesuadir ao poeta que tomasse ordens sacras, para conservar-lhe os cargos; mas elle respondeu com inteira revolução que não podia votar a Deus aquillo que era impossivel cumprir pela fragilidade de sua natureza,; e que a troco de não mentir a quem devia inteira verdade, perderia todos os thesouros e dignidades do mundo: que o ser mau secular não era tão culpavel e escandaloso, como ser mau sacerdote.

E esta resposta esperava sem duvida o Arcebispo, conhecida a inteireza de Gregorio de Mattos. Sendo certo que se o quizera conservar nos cargos não eram as Ordens condição necessaria, valentia foi sem duvida offender a um homem que para despicar-se não respeitava caracter, nem potestade, trajando por espada a mesma foice de Saturno amolada nas esquinas da eternidade.

D’esta segunda declinação da fortuna, que com os bens patrimoniaes muito antes havia vacillado, nasceu o precipicio terceiro, que se encadeam os males, casando com Maria dos Povos, viuva honestissima, quando formosa; mas tão pobre que seu mesmo tio Vicente da Costa Cordeiro, lastimado do seu abatimento, intentou despersuadil-o. Mas vendo ser impos-

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-sivel, fez da sua fazenda um donativo, para que a sobrinha não fosse totalmente destituida. Era o gosto de Gregorio de Mattos, e não se trocava pelos maiores interesses, que nunca o dinheiro foi capaz de lhe apaixonar o animo Vendeu já necessitado por tres mil crusados uma sorte de terras, e recebendo em um sacco aquelle dinheiro, o mandou varar no canto da casa, d’onde se distribuia para os gastos sem regra, nem vigilancia.

Posto já na obrigação de sustentar encargos de matrimonio, e aberto as portas o escriptorio da vocacia, poucos eram os defendidos, porque a inteireza do seu animo patrocinava sómente a mesma razão em materias civeis, sendo inimigo voraz d’aquelles advogados, que por juntarem cabedal enredam as partes no labyrintho de incertas opiniões. Se algumas vezes defendeu contra o que entendia, eram as causas crimes, onde a summa justiça se reputa por summa iniquidade. Ninguem se acorda que lhe regeitassem embargos, e toda a materia d’elles se corporisava em quatro palavras d’aquelle espirito laconico, que sem offender gigantes formas conseguia a diminuição plausivel das materias, logrando na curta esphera de qualquer laconismo alma substancia, visivel graça,

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e intelligencia commua, como ninguem. Por exemplo contarei com brevidade alguns casos.

Pleiteava Pedro o cabedal que havia dado com sua filha em dote a Paulo, o qual depois de adornar a defunta esposa com palma e capella, publicava que havia fallecido intacta. Defendia por parte do autor o nosso jurista, e provada legalmente razoou o feito com esta vulgaridade:

Gaita de folles não quiz tanger,

Olhe o Diabo o que foi fazer.

Banhou-se em aguas de flor o patrono adverso accusando de ridicularia indecente este razoado na extensa formalidade do seu: mas um e outro Senado confirmando

aquella sentença, veio a conhecer o realmente passava; e foi que o Doutor Mattos fallando pouco para merecer o menos, dizia muito para conseguir o mais.

Outro laconismo se nos envolve na historia de um Religioso, para cuja intelligencia já dissemos o grande aborrecimento que tinha a todo o fingido. Venerava os Religiosos verdadeiros tanto quanto abomminava os que com este santo titulo apenas merecem o nome de Frades. Elle o diz com graça n’estes versos:

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Se virdes um Dom abbade

Sobre o pulpito cioso,

Não lhe chameis religioso,

Chamai-lhe emboba de frade.

Um d’estes frades pois se valeu do Doutor Mattos pedindo embargos para seu sobrinho sentenciado à morte natural por haver furtado a naveta da sua sachristia. Mas elle absolutamente o desenganou que não estava em hora de o servir. Instava o Religioso por saber ao menos a razão da difficuldade, e com tudo não poderei eu doirar a pilula da resposta. " É (dizia elle) que n’este instante se foi d’aqui Maria de S. Bento muito agastada, e fez aquella cruz na minha porta em juramento de não entrar mais por ella." "Ila-hei buscar (tornou o Religioso) se n’isso está o valer- me V. M.." E logo foi representar à mulata quanta necessidade tinha de leval-a a quebraro seu juramento. Caprichosa era ella, mas em tal caso carictativa acompanhou o triste pretendente, e posta já na presença d’esse singular e esquisito genio, ouviu que lhe dizia assim: "Não eras tu, ridicula, quem fez aquella cruz de aqui não tornar? Bem se vê que morrias por esta

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introdução. Ora vai, que agora te mando eu" Foi-se a mulata exhalando veneno pelos olhos; e à vista dos autos fez elle a seguinte trova por embargos.:

A naveta, de que se trata,

Era de latão, e não de prata.

À vista dos autos digo, porque o processo n’elles estava em termos de lhe valerem, como valeram, ganhando sempre applausos pela attenção com que examinava os menores incidentes.

Com a folhinha do anno livrou a outro condemnado, contra quem as testemunhas com verdade haviam jurado de vista sobre um furto de noite escura a peditorio de seu amigo João dos Rei, Mordomo então da Misericordia.

Um homem de baixa esphera, que por aquella iniquidade a que no Brazil chamam fortuna, subiu a desconhecer seu amo, comprando a Vara de Juiz Ordinario na Villa de Igaraçû em Pernambuco, fez um auto criminal contra este, por lhe faver chamado por Vós, como antes de o ver Juiz costumava. Defendia o nosso jurista ao réo, e confessando a culpa, mostrou que o não era começando as razões com este

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argumento.:

Se tratam a Deus por tu,

E chamam a El-Rei por vós,

Com chamaremos nós

Ao Juiz de Igaraçû?

Tu e vós, e Vós e tu.

Estas e outras obras de mais agigantado peso no seu officio canonisaram o Doutor Gregorio de Mattos pelo melhor jurista; de sorte que no dia de sua morte disse o Ouvirdor de Pernambuco, que lhe não era affeiçoado: " Já morreu quem entendia o direito." Mas se o dinheiro é inimigo declarado da virtude, mal poderia Gregorio de Mattos adquiril-o, defendendo o justo, e aconselhando o verdadeiro, arrebatado maior- mente pelo furor das Musas, cuja condição totalmente se encontra com os labyrinthos de Bardo e Bartolo. Conta- se que muitas vezes aconteceu entrarem- lhe as partes com dinheiro consideravel, e os amigos com assumptos menos dignos, e que elle despresava aquellas, por attender a estes, passando lastimosas necessidades.

Era a esposa um pouco impaciente, talvez pelo pouco pão que via em casa, e tal pelo

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distrahimento de seu marido, cujas desenvolturas claro se patenteam d’estas obras:como veremos pelas rubricas de cada uma, posto que nem a todas se deva dar inteiro credito: e enfadada de uma e outra desesperação sahiu de casa, e entou pela de seu tio, que depois de a reprehender asperamente veio rogar ao poeta com razões de amigo que a fosse buscar, ou consentisse ao menos que elle lh’a trouxesse: e foi- lhe respondido que de nenhum modo admittiria sua mulher em casa sem vir atada em cordas por um capitão do mato, como escrava fugitiva. Assim se fez pelo mais decoroso modo, e elle a recebeu, paga a tomadia do regimento; protestando chamar Gonçalos aquelles filhos que nascessem de tal matrimônio; porque a sua caza se podesse dizer de Gonçalo, com mulher tão resoluta.

Acossado da pobreza, e sem esperança alguma de remedio em uma terra, onde somente o tem para triumphar da fortuna quem por estradas de iniquidade caminha, se entregou o poeta a todo o furor da sua Musa, ferindo a uma e outra parte como raio com edificios altos a materia mais debilitada. E não achando a resistencia, que talvez desesperado pre-

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tendia (negação fatal em tempos bellicosos), elegeu peregrinar pelas casas dos amigos, e sahiu ao Reconcavo povoado de pessoas generosas, pela multidão florentissima de engenhos d’assucar, preciosa droga, que perdendo com o valor a estimação, levou consigo a dos Magnates Brasilienses.

Por este Paraiso de deleites estragava a cithara de Apollo suas harmoniosas consonancias com assumptos menos dignos de tão relevante estrondo. Lascivas mulatas e torpes negras se ufanizaram dos tropos e figuras de tão delicada poesia. Mas que muito, se quando naufraga o baixel quaesquer barbaros galeam a mais preciosa mercadoria! Não quero persuadir que a desesperação lhe occasinou desenvolturas; mas direi que do genio, que já tinha, tirou a mascara para manuzear obcenas e petulantes obras em tanta quantidade, que das que tenho em meu poder tão indignas do prelo, como merecedoras da melhor estimação, se póde constituir um grande volume.

Mas a prodiga diffusão de mal applicados conceituosos dispendios nascia das enchentes prodigiosas d’aquella Musa, que sem esperan-

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ça de que seus descuidos correriam na futura estimação, barateava versos à conjucção dos acasos, facilitando linguagem ao genio dos sugeitos. Da mesma sorte que o celebrado pintor Raphael de Urbino, que disfarçado em sua criminosa peregrinação pintava aos oleiros louça, e taboletas de mezão aos estalajadeiros, sem prevenir que em sua posterioridade seriam resgatados por alto preço aquelles borrões milagrosos da sua malograda idéa.

Assistia-lhe n’estas desenvolturas com outros do mesmo genero aquelle celebrado trovador de chistes, a quem uma titular lisonja proporcionou Thalia por ama sêcca, que se prezava muito de ministrar-lhe assumptos, a prezar dos melhores amigos, que d’estas companhias lhe prognosticavam sempre a fatal ruina.

Governava então D. João de Alencastre, secreto estimador das valentias d’esta Musa, que à toda a diligencia lhe enthesourava as obras desparcidas, fazendo-as copiar por elegantes letras; quando de uma náo de guerra desembarcou o filho de certa personagem da côrte com ânimo vingativo contra o poeta por dizer-se que havia satyrisado toda a honra de seu pai: e bem

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que disfarçava sua maligna intenção, toda a intenção maligna percebeu D. João dos meninos disfarces d’ella. Era este cavalheiro generosamente compadecido, e excogitando meios de livrar uma vida em que a natureza depositára tão singulares prendas, achou traças de segurar-lhe o perigo nos fingimentos de rigoroso justiceiro.

Ordenou aos Officiaes de milicia que sahindo fóra da cidade a toda a cautela lhe trouxessem preso o Doutor Gregorio de Mattos. Mas não pôde effeituar a diligencia, porque suspeitoso d’ella o Vigario da Madre de Deus Manoel Rodrigues, homem virtuoso que o hospedava, soube consumir n’aquella Ilha as mesmas presumpções de ser achado. Mas o Governador impaciente com esta tyranna piedade, que lhe frustrava os meios da sua piedosa tyrannia, communicou a intenção ao Secretario d’Estado Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, pessoa de bom entendimento, e como tal estimador do poeta, e accordaram que o mesmo Secretario fingisse que o chamava para dar-lhe importantes avisos, que não poderiam ser menos de pessoaes; e com carta de sua letra se enviou portador interessado nas melhoras do perseguido.

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Conhecida a letra pelo Doutor Gregorio de Mattos, e confiado na muita honra de Gonçalo Ravasco, promptamente veio a fallar-lhe no logar determinado, que era a casa de Antonio de Moura Rolim, tambem amigo, para que se veja que quando os amigos grandes se juntam empenhados a favorecer um desditado poeta, será para o prenderem e desterrarem por modo de fineza. Sempre tenho que d’estas tres amizades a primeira arrastou com sagacidade as duas por temer em seu governo os atrevidos córtes d’esta penna.

Alli pois o prenderam sem poder dar um desafogo ao discursivo; e mettido na caza que chamam Leoneira, na mesma portada de Palacio, mandou que alli não deixassem chegar pessoa de qualidade nenhuma: e por mãos de um confidente criado lhe remettia para sustentar-se os manjares de sua meza particular: e d’esta particular prisão o trasladaram depois à cadêa, mal seguros de seu perigo.

Trabalhou o infeliz Gregorio por justificar-se, lisongeando a um tempo aquelle Magistrado, cujas entranhas dominava pias; mas D. João o desenganou, intimando-lhe que por

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sua conhecida culpa e necessario remedio havia de embarcar-se para Angolla em uma náo, que promptamente carregava a tropa de cavallos de El-Rey para Benguella. Era o Doutor Gregorio de Mattos consumado solfista, e modulando as melhores letras d’aquelle tempo, em que a solfa portugueza se avantajava a todas as de Europa, tangia graciosamente. A proposito do que me pareceu escrever aqui esta decima, que por isso lhe fez Gonçalo Soares da Franca, nobre engenho da Bahia:

Com tanto primor cantais,

Com tanta graça tangeis,

Que as potencias suspendeis,

E os sentidos elevais:

De ambas sortes admirais

Suspendido o bravo Eolo,

Mas eu vos digo sem dolo,

Que de mui pouco se admira

Pois tocais de Orpheo a lyra,

E a pluma tendes de Apollo.

Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas curiosas mãos fizera de ca-

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-baço, frequentado divertimento de seus trabalhos, e nunca sem ella foi visto nas funções a que seus amigos o convidavam, recreando.se muito com a brandura suave de suas vozes. Por esta viola, que havia deixado na Madre de Deus, fazia extremos taes, receiando que sem ella o embarcassem, que o vigario Manoel Rodrigues, a quem feriam na alma suas desgraças, promptamente lh’a mandou com um liberal donativo para as cordas d’ella.

D. João, chegada a hora de embarcar, o mandou vir à sua presença, e tratando-o com humanildade de Principe lhe pediu que evitasse as occasiões de sua perdição ultima; porque era lastima que uma pessôa, a quem o Céo enriquecêra de talento para melhor fama, comprasse o seu discredito com o discredito irremediavel de tantos. Decorosamente o fez embarcar, não se olvidando de recommendal-o ao Governador de Angola Pedro Jacques de Magalhães, a quem com a causa d’aquelle degredo insinuava os perigos que em qualquer parte corria sua pessôa.

Chovendo maldições e praguejando satyras peregrinou os mares aquelle que por

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instantes naufragava nas tempestades da terra. Dizia elle que com razão sobrada podia articular o non possidebis ossa mea de Scipião; e fallou com rigoroso acerto: porque se houveeram patrias no mundo que desterraram seus benemeritos filhos, não consistiu talvez essa desgraça tanto na malicia d’ellas, como no destino d’estes. Porem a Bahia dos muitos habitos de desprezar seus naturaes fez natureza para aborrecel-os e perseguil-os. A melhor pintura d’esta verdade se póde ver nas vozes que sobre ella declama o mesmo Poeta, onde sem hyperbole de Musas resplandece a propriedade tal, que eu com ser estrangeiro acreditava a poesia com o juramento dos Santos Evangelhos.

As personagens de quem poeta justamente se queixa em suas satyras são comparadas a uma herva natural de Guiné, chamada n’aquelle terreno Nheriquè, e transplantada n’este com o nome de Melão de S. Caetano, por virem as primeiras a um sitio d’este nome; a qual de sorte se apoderou do Brazil em toda a parte, que não ha logar sem ella, nem planta que prevaleça com sua inutil visinhança. As casas de religião enriquecidas e illustradas pelos curiosos e liberaes

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Mazombos, e sempre n’ellas laborando petulantes opposições a parcialidade dos Reinóes admittidos alli por commiseração. Ingratos hospedes! Mas se algum tivesse desejos de padecer martyrio, fallar n’esta materia queixoso causaria ao menos um degredo similhante ao do Doutor Gregorio de Mattos.

Não poderá negar-me a razão, que choro, quem sabe que no anno de 1740 mandou o Provincial de S. Francisco conduzir do Posto uma chusma de pobretões, em desprezo dos pacientissimos naturaes da Terra, para adorno da sua Religião, e nunca o demonio acertou com esta destreza para combater o animo de Job. Chegam finalmente a aborrecer os mesmos filhos sem maior causa que haverem nascido no Brazil, onde receberam cabedal, e inundando por toda a parte em que os Brazileiros os honram e estimam, em nenhuma d’ellas querem soffrer que haja honra nem estimação nos Brazileiros.

Fazendo porem verdadeira distincção nos nossos naturaes que são comprehendidos n’esta miseria, culparei sómente os das fecundissimas Provincias da Beira e Minho (salvando os nobre), e é de reparar que sendo estes os que com

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maior necessidade se lançam a buscar dinheiro, são estes mesmos aquelles cuja soberba é tão formidavel a quem as remedeia. Vejamos esta queixa allegorisada pela nossa aguia sobre o gato de um meirinho:

Não posso comer ratinhos,

Porque cuido, e não me engano,

Que de meu amo são todos

Ou parentes, ou paisanos:

Porque os ratinhos do Douro

São grandissimos velhacos,

Em Portugal são ratinhos,

E cá no Brazil são gatos.

Mas deixando esta materia por irremediavel, e não por temer as unhas d’estes gatos, irei seguindo o meu infeliz poeta em sua fatal navegação.

Chegando ao Reino de Angola, miseravel paradeiro de infelizes, a quem com a propriedade costumada chamou armazem armazem de pena e dor, e exercendo na cidade de Loanda o officio de advogado, aconteceu que amotinada a infantaria da guarnição d’aquella praça, e posta em armas fóra da cidade, entrou uma chusma de solda-

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-dos pela casa de Gregorio de Mattos, forçando-o a que os fosse aconselhar sobre as capitulações que tinham com o Governador seu General, e posto com effeito entre os amotinados no campo, clamou que o levassem à casa para trazer certa cousa que lhe esquecêra, sem a qual não podia obrar à medida de suas satisfações. Entenderam os soldados que seria livro de direito, e não duvidaram de romper segunda vez o perigo de entrar na praça; mas aquelle que imaginavam instrumento de solido conselho, outra cousa não era mais que a sonora cabaça do poeta; do que se infere o como charqueou este Democrito das alterações da fortuna.

Muito pago ficou o Governador d’esta galantaria geralmente celebrada. Serviu-se d’elle para adjunto na condennação dos cabeças d’aquelle motim, que foram arcabuzados pelos ouvidos; e desempenhando a recommendação de D. João de Alencastre deu-lhe liberdade para embarcar-se a Pernambuco. Posto n’aquella Capitania, governada então por Caetano de Mello de Castro, com o semblante perturbado pela indecencia do habito demandou a presença d’este fidalgo, que lastimado de ver o miseravel estado a

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que chegára homem tão mimoso da natureza, lhe fez donativo de uma bolsa bem provida, e com palavras um pouco severas lhe mandou que n’aquella Capitania cuidasse muito em cortar os bicos à pennas, se o quizesse ser por amigo. Não sei se era zelo publico, se particular temor. Gregorio de Mattos o prometteu fazer assim, e em algumas occasiões mostrou quão violentado estava com aquelle preceito: seja uma d’ellas o caso que refiro.

Picadas de ciumes se encontraram duas mulatas meretrizes junto à porta do poeta, e renovando suas paixões de uma e outra parte se descompunham em vozes petulantes. Passaram de lingua a braços, e atracadas tenazmente cahiram por terra em ridicula visão a tempo que avisado da grita sahiu a vel-as o poeta, e dando n’aquelle espectáculo deshonesto começou a gritar: ai que de El- Rei contra o Sr. Caetano de Mello. Perguntaram-lhe os circumstantes que queixa tinha do Governador: "Que maior queixa (respondeu) que a de prohibir-me fazer versos quando se me offerecem similhantes assumptos?" Notavel argumento do respeito d’este fidalgo, se Gregorio de Mattos não tomára depois algumas licenças de satyrisar.

Os nobres de Pernambuco conten-

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-diam ambiciosas demonstrações de urbanidade com elle, venerando em sua pessôa prendas, de que já os havia a fama informado por escriptos. De uma em outra fazenda passava Gregorio de Mattos uma regalada vida, e sem offender a nobreza d’este paiz me persuado a crer que o adoravam à maneira que os antigos idolatras com politica religião faziam sacrificios ao gorgulho para não destruir-lhe as sementeiras, e à peste para perdoar-lhe as vidas. Mas sempre é digno de louvvor quem sabe lisongear o damno porque o teme. Na Bahia perdeu muitos amigos pelo meio de os ganhar; e em Pernambuco os ganhava pelo meio de perdel-os. Referirei dous casos, que sirvam de exemplo a este ultimo reparo.

Certa pessôa muito principal em Pernambuco, de quem o poeta era hospede, ouvia d’elle os encarecimentos com que relatava a desgraça em que nascêra, e sua desterrada peregrinação com todos os acontecimentos tristes, e como attribuia seus infortunios à rigorosa força de estrella; e mal persuadido d’esta rhetorica triste lhe respondeu atalhando n’esta fórma:" Sñr. Doutor, nós mesmos somos os autores da nossa fortuna, e cada um colhe o que semêa." — "Não ha duvida (res-

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-pondeu o poeta) mas é desgraçado aquelle contra quem se conjurou a malicia, que das mesmas virtudes lhe fazem delictos: verbi gratia, alli vem aquelle boi (e mostrou um da fazenda do mesmo sujeito); elle tem um só corno, como estamos vendo, mas se eu lhe chamar boi de um corno, Deus me livre da indignação de seu dono." E sendo esta materia por toque ou remoque muito melindrosa em Pernambuco,disfarçou este homem o proposito, sendo certo que foi o maior amigo que teve n’aquella terra o Doutor Gregorio de Mattos.

O vigario da Muribeca Antonio Gomes Baracho, atravessado com o seu coadjutor, não lhe podia soffrer as presumpções de solfista. Ordenou ao seu trombeta que tocasse desesperadamente em ouvindo cantar como sempre o coadjutor. Mas este que percebeu a burla, tambem se armou de um caracol marinho, com que apupava a trombeta de seu inimigo. O vigario, a quem o grande odio descompunha o entendimento, se foi querelar do caso perante o Vigario Geral, com quem privava. Recebida a queréla, e segura o Coadjutor, chegou o caso à noticia de Gregorio de Mattos, e posto a caminho sobre a besta de um farinheiro entrou com seis leguas de jornada por casa do crimi-

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-noso, a quem pediu procuração para defender-lhe a causa, asseverando que o não trouxera alli outro algum negocio, e que de graça o queria servir. Ia o Padre a agradecer-lhe tanta fineza, mas o Doutor lhe atalhou, dizendo: "Não, Señr. Padre, não m’o agradeça, que o meu interesse é saber d’este Juiz qual é a lei que condemna a quem toca um buzio." Avisado o vigario do excesso que fizera aquelle homem, a quem conhecia douto e respeitava poeta, logo o foi buscar à casa do mesmo coadjutor, concedendo a este pazer, e ficándo em particular amizade com elle.

Honravam -no todos seriamente; mas arrebatado de seu fresco e esparcido genio fugia dos homens circunspectos, e se inclinava (como na Bahia) a musicos e folgazões. E sendo naturalmente aceiado e gentil, descompunha a sua autoridade vivendo entre estes ao philosopho: de sorte que invejava aos barbaros gentios do Brazil a liberdade de andarem nus pelos arvoredos, lastimando-se d’aquellas pensões a que nos obriga a policia. Como outros costumam adornar seus escriptorios de odoriferos pomos, que regalam a vista e olfacto, adornava elle o seu de bananas que chamam do Maranhão; que mais servem ao sustento que ao gosto: e isto em

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demasiada quantidade, que provocando riso a quem as via, dava em razão: -- adornemo-nos de proveito, que em quanto as tenho, rio-me da fome.

Uma rigorosa febre lhe attenuou os dias, de sorte que desenganados os piedosos Pernambucanos de remir-lhe a vida, chamaram o vigario do Corpo Santo Francisco da Fonseca Rego, pessoa que suppunham de mais autoridade, para que o dispozesse a morrer como catholico. Mas como este parocho era na opinião do poeta mal recebido, sem poder disfarçar n’esta hora o genio livre, soltou algumas palavras, que pozeram as chimeras do vulgo em suspeitas, de que nasceu um rumor menos decoroso à sua consciencia; o qual chegando as ouvidos do Illustrissimo Prelado D. Fr. Francisco de Lima, logo desde uma legua de caminho se arrojou como bom pastor a tomar em seus hombros a ovelha que suppunha desgarrada; e não foi assim, porque não só o achou dispisto a morrer como verdadeiro christão, mas em signal de que lhe servira, o entendimento no maior conflicto, viu em uma folha de papel escripto com caracteres tremulos o grande soneto que offerecemos.

Assistiu-lhe o piedoso Bispo até o ultimo valle, e logo seu corpo foi levado por homens

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principaes ao Hospicio de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos Francezes, o dia em que chegavam as novas da restauração do famoso Palmar a Pernambuco, que havia de ser o sexto da victoria, pois tanto gasta um caminheiro apressado de um logar a outro. Mas é em vão buscal-o em Pitta, auctor moderno que disto trata como se não tratára. E mais me escandalisa que passasse em sua mesma patria por um

poeta de tal nome seu contemporaneo, com quem devia gastar parte d’aquelles elogios. Moreu finalmente no anno de 1696 com idade de setenta e tres annos.

Este é o mais abreviado resumo que posso dar da vida do meu suspirado, quão dilectissimo poeta lyrico; e oxalá podéra eu publicar os prodigiosos fundamentos do meu amor, derramando entre as gentes o manancial thesouro de suas graças! Singular foi a estrella que dominou em seu engenho; porquea toda a circumferencia das luzes apollineas brilhou com igualdade senhoril; e não menos prodigioso aquelle não sei que de sua guarda, porque offendendo às claras muitas pessôas, de quem o menor movimento seria sem duvida uma tyranna morte, sempre se atreveu, e nunca de seu moto proprio cautelou perigos; morrendo intacto de tão prolongados mezes.

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Muitos eram os feridos do seu ferro que consultaram o remedio no mesmo instrumento da chaga, beijando a Achilles a lança que os traspassára. Raro testemunho d’esta fatalidade foi a resposta que deu a um queixoso certo Governador severamente resoluto: "Não faça V. M.caso disso, porque isso tambem passa por mim, sem que por mim passe a minima tenção de o castigar.

Testemunho d’esta fatalidade são as duas quartas de um soneto, que se fez em sua morte; o qual não escrevo por inteiro em razão de que se os seus principios professam a verdade pura, os fins todavia contém temeraria petulancia.

Moreste em fim, Gregorio esclarecido,

Que sabendo tirar por varios modos

A fama, a honra, o credito de todos,

D’esses mesmos te viste applaudido.

Entendo que outro tal não tem nascido

Entre os Romanos, Gregos, Persas, Godos,

Que comtigo mereça ter apodos

Nos applausos, que assim has adquirido.

Muitas vezes quiz elle refrear o genio, que co-

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nhecia prejudicialmente peccaminoso, fazendo os actos de Christão que em seu logar veremos,; mas debalde o intentava, porque o seu furor intrepido imperava dominante na massa sanguinaria contra os desacertos d’aquella idade, castigados por Deus com tão horrorosa peste e tão repetidas fomes: como tambem veremos pelo discursso d’estas obras. E não é de admirar que disparadas do throno da divina justiça aquellas duas lancas de sua ira, seguisse a terceira com tão exquisito genero de guerra em um homem, que de sua mãi unicamente tomou este appellido entre outros partos: ella o deu appellidando-se = da Guerra =, e elle o foi sem aquella proposição da por ser a mesma guerra, e não o instrumento d’ella. Isto parece que prophetizou certo inimigo seu, respondendo-lhe a uma satyra com outra na seguinte fórma:

Porem se em nada ès guerreiro,

Para que te chamar guerra,

E a fazes a toda a terra

Com a lingua, que é mór damno S.ª.

Deixou o Doutor Gregorio de Mattos um ª.

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filho de sua mulher Maria de Povos chamado Gonçalo de Mattos, cujo amor publica em varias obras este livro, que em seus logares se verão seres enfadosas citas.

............... o quente da cama

Com Gonçalo, e com sua ama,

Dizendo estava comei-me Sª.

Por vida do meu Gonçalo,

Custodia formosa e linda Sª.

Madrasta do Gonçalinho,

Que é lindo enteado a fé Sª.

Sim por vida de Gonçalo Sª.

Mas por vida de Gonçalo Sª.

D’este moço, que com sua mãi ficou em summa pobreza e desamparo, correm noticias muito geraes que totalmente degenerára d’aquella massa scientifica de seus estupendos progenitores. Bem pudera eu duvidal-o em uma terra, onde sempre se hão de tomar os ecos da fama pelo contrario; pois nunca vi n’ella abonar um sujeito que não mereça ser desterrado por máo, nem vituperar outro que ao contrario desmereça elogios de bom.

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Mas para cumprir com os relativos d’esta historia consultei dous sujeitos que se criaram com Gonçalo de Mattos, ambos de instincto capaz para uma informação, e entre elles achei a contradicção, póde servir de exemplo a quem se informa: um affirma com juramento que era poeta natural, o outro jurando nega que tal fosse, dizendo que elle nem o Padre Nosso era capaz de repetir. A este seguem muitos, e nenhum àquelle: mas o primeiro chamado Christovão Rodrigues diz que em sua adolescencia lhe dera o seguinte mote:

Com que, porque, para que.

Defendia-se o Gonçalo temeroso de uma maldição condicional de sua mãi, em respeito da qual não queria pegar na penna para fazer versos, posto que no animo lhe pulsavam as Musas (tal foi o escarmento que deixaram ellas n’aquelles cadaveres da paciencia lastimosa.) Mas como a condição do preceito tinha sua clausula, em que fundar-se uma heresia graciosa, respondeu importunado: "Pegai vós na penna, porque a maldição de minha mãi parece que não me prohibe fazer versos, mas sim pegar na penna para elles." Repetiu-me então esta decima, que tanto ella co-

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mo a resposta, se são verdadeiras, vem a ser uns relampagos esphera do fogo:

Glosa.

Deus Clori que me amava

Para o intento que tem,

O qual não disse a ninguém,

Nem o porque declarava:

Eu então lhe perguntava

Com que genero de fé!

Suspensa a dama se vê!,

Com o nada respondeu,

Não pude saber o seu

Com que, porque, para que.

Persuado a crer o caso pelas suas circumstancias, e muito mais quando vejo aqui umas reliquias mais separadas d’aquelle humor, ou ramas menos fortes do enxerto do Doutor Pedro Mattos seu tio, onde não ha resposta sem equivoco sem substancia de genero mais nobre.

Foi o Doutor Gregorio de Mattos de boa estatura, sêcco do corpo, membros delicados, poucos cabellos e crespos, testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, olhos garços, nariz agui-

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-lenho, bocca pequena e engraçada, barba sem demazia, e no trato cortezão. Trajava commumente seu collete de pelles de ambar, volta de fina renda, e era finalmente um composto de perfeições como Poeta portuguez, que sao Esopos os de outras nações. Tinha phantasia natural no passeio, e quando algumas vezes por recreação sulcava os quietos mares da Bahia a remo compassado, com tão bizarra confiança interpunha os oculos, examinando as janellas da sua cidade, que muitos curiosos iam de proposito a vel-o.

Fiz tirar d’elle a presente copia, por um antigo pintor, que foi seu familiar, e conferindo-a com as memorias que d’elle tem algumas pessoas antigas, tenho-a por mui conforme a seu original. N’aquelle tempo era pouco versado o uso das cabelleiras, e elle a trajava: mas pareceu-me capial-o sem ella, porque os homens de talento devem patentear-nos as offícinas capitaes que o produzem para informação dos judiciosos.


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